maio 14, 2011

"Potlatch", por Bruno Cava

PICICA: "Organizar e produzir coletivamente dependem da arte dos bons encontros: constante incremento da potência de todos. Daí a política consistir também na organização afetiva da produção. Uma organização tanto melhor e mais democrática quanto mais proliferar, justapor e entrelaçar os desejos — contra toda paranóia unitária e totalizante, logo moral."

Crítica da economia política dos afetos

Afetos são ativos quando compõem relações produtivas. O bom encontro aumenta a alegria de viver, e potencializa o relacionamento das pessoas. Mas são passivos se as decompõem, e causam impotência e tristeza. É o encontro ruim, quando o santo não bate. A vida confronta-se com o acaso numa sucessão caótica de bons e maus encontros.

Organizar e produzir coletivamente dependem da arte dos bons encontros: constante incremento da potência de todos. Daí a política consistir também na organização afetiva da produção. Uma organização tanto melhor e mais democrática quanto mais proliferar, justapor e entrelaçar os desejos — contra toda paranóia unitária e totalizante, logo moral.

Os afetos têm valor. Esse valor das relações, contudo, não tem medida. A todo momento, esse valor escapa das tentativas de fixá-lo numa identidade, de embalá-lo e por-lhe preço. Nem tudo tem seu preço. O relacionamento entre as pessoas, com efeito, não tem preço. O que pode um corpo? relacionar-se ao infinito, em todas as direções, na procura esfaimada por bons encontros. Existe um certo modo de sentir —- de agir, de querer, de olhar, de perceber as coisas, — que corresponde a esse amor desmedido e bárbaro.

Só que, por possuírem valor, os afetos sistematicamente têm sido explorados. Expropriados do comum das relações. Eis vários exemplos, interdependentes:


1) A esfera do sagrado, — mãe de todas as expropriações, — separa a produção simbólica da circulação livre e ritualiza o seu uso. O objeto sacro não se encontra disponível para todos — a sua dimensão afetiva foi sacralizada. Isto hoje se chama propriedade. Noutras palavras, a errônea percepção de que é preciso ter algo para si para se vivenciar esse algo e ao redor dele travar relações. 


2) As inúmeras formas históricas de tirania ou ditadura funcionam pela indução dos afetos passivos. Com isso, o tirano consegue organizar as paixões tristes, — o medo, a esperança, a paranóia — e governa os súditos. Não por acaso, a revolução se dá justamente quando o medo muda de lado e as pessoas param de esperar, e lutam. Agem porque desejam.

3) O fascismo se constitui como máquina de manipulação dos afetos. Martela o ressentimento e mobiliza as suas massas de manobra, a serviço de uma lógica excludente.

O capitalismo não sobreviveria sem explorar afetos. Toda a publicidade se constrói ao redor dos afetos: dos sentires, dos desejos, dos prazeres. Vendem-se a autoestima, a felicidade, a satisfação, — uma realização permanente e extasiante. Esse modo de produção reconhece a importância vital do relacionar-se bem, da adaptabilidade social, das habilidades comunicativas, da sensibilidade social (starts with you). É a dita “inteligência emocional”, o global care, o networking de que tanto fala a nova economia.

Em suma, o capitalismo taxa os encontros, comercializa as relações e espetaculariza a esfera comum — tudo isso para extrair lucro a partir dos muitos e em benefício de poucos.

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A arte de viver do amor

Por aí também se pode interpretar o imperativo da fidelidade amorosa (no sentido estrito). Ela não se resume somente a um modo simples e efetivo de submeter e controlar o corpo da mulher, — pois muito residuamente o do homem, —  o eterno feminino culpado (e estapeado e cuspido na cara e apedrejado), de Eva, de Helena, de Lady MacBeth e Desdêmona, da Capitu de Machado ou da María de Sábato. Mais que isso, a regra da fidelidade parece sobredeterminada pela forma mercantil, na base da exploração afetiva. Com ainda mais razão se se basear nalgum pacta sunt servanda entre sujeitos (em última análise) egoístas, mesmo que (ou sobretudo quando) disfarçado de grandes sentimentos.

Porque a fidelidade impõe a lei da escassez no mundo superabundante dos afetos. Em certa medida, isso também vale para a heteronormatividade. O exclusivo e separado intervêm num campo excessivo por excelência, livre das injunções de carestia e racionamento. E assim se forja um mercado. E, como em todo mercado, impõem a oferta e a procura, e por conseguinte as várias formas de competir pelas melhores posses (de aparência, de dinheiro, de comodidades…), de medir as pessoas em seu rendimento futuro, de angariar pelo menos um princípio de equivalência entre os sujeitos interesseiros. Saem a desmedida e o compartilhamento, entram o valor de troca e o toma-lá-dá-cá.

Amor ou ego? não seria esse modo de sentir uma desistência?
Não, não é dar vivas à putaria, ao obaoba. Pelo menos, não é precisamente isso. Me refiro a um modo de sentir mais vívido e bárbaro do que falsos grandes sentimentos, no inferno entre quatro paredes ou conforme algum sufocante comercial de margarina. Me refiro a sentir o mundo das relações em sua contingência e instabilidade, em sua irremediável imperfeição, em sua poesia comunista e maldita, de qualquer modo amaldiçoada. Uma política comunista dos afetos além de qualquer processo de separação, de reificação, de limitação artificiosa, de regime de exclusão e acumulação. Uma ética preocupada com a intensidade, a duração, a produtividade desses afetos, voltada ao infinito de que somos capazes. Apesar de tudo.

A bem da verdade, pode-se criticar com facilidade este discurso-bonito-mas-impraticável (?). Mais um! que, no fundo, culmina em jogos infantis de gratificações estereotipadas, excitadas por uma economia do prazer, igualmente capturada pelo capitalismo. Discurso belo porém hipócrita, que veste Rambo com roupas de guerrilheiro. O hedonismo vulgar igualmente mercantilizado em boates ensurdecedoras e romantismos de MSN.

Ora, afetos são ativos quando constroem no compartilhamento, no “entre-” que não somos, nessa estranha abertura por onde saímos do eu e ingressamos no outro — e nunca meramente quando satisfazem expectativas prévias de um ego atrás do gozo interminável. Fazer-se sentir vai além do excitar-se e saciar-se, num retorno tedioso do mesmo. Estou falando do retorno do diferente. Se a fidelidade monogâmica pode compensar o deserto de solidão e carência do dia-a-dia contemporâneo, e nisso almejar um sentido contra-hegemônico; por outro lado são estabelecidos limites e interdições que, na dimensão ético-política, repercutem um bloqueio da riqueza comum, da potência infinita da multidão, da democracia radical.
Talvez nada com o prefixo mono possa ser revolucionário. Fica confinado. Embora fora disso, dessas táticas de sobrevivência diante de um real que golpeia de todos os lados, realmente dê medo tentar algo diferente. Pois o próprio sistema social se encarrega de dificultar a nossa vida comum, por meio da moral, da distribuição das culpas, do direito civil. Mas a coragem costuma ser a virtude maior dos resistentes.

O leitor não me tome por esquerda festiva. Considere-me pós-festiva.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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