maio 02, 2011

"A que civilização pertence Lélia Abramo?", por Jair Alves


Lélia Abramo representa para a Cultura Nacional, com certeza, a manifestação viva de um mundo que mesmo esfacelado ainda insiste em recompor-se. Ela nada tem dos personagens de Nelson Rodrigues, nada tem de decadente, nada tem de doentio, ela é a mais completa expressão trágica. Trágico, no sentido de um povo que atingiu a sua perfeição. E a qual povo pertence à atriz e militante da qual falamos?

Há alguns anos atrás, Lélia Abramo heroicamente tentou impedir que dois senadores da República emprestassem o seu prestígio participando de mais uma cena da “Vida como ela não é”. Mas, apesar do seu empenho era tarde demais, não conseguiu evitar mais um vexame Nacional, no horário das oito.  Falamos de uma participação de Eduardo Suplicy e Benedita da Silva na novela, "O Rei do Gado", da tevê Globo, quando os dois se prestaram a misturar a ficção com a realidade confundindo ainda mais o cenário dos temas nacionais. Apesar de toda a bajulação em torno dessa novela, ela não tratou corretamente a questão da Reforma Agrária e muito menos sobre o movimento dos sem-terra.

Com Lélia Abramo é diferente, como grande atriz que é ela conhece muito bem o fio da navalha entre a realidade e a ficção, assim como conhece também a natureza humana. Quanto mais o tempo passa, melhor ela percebe a vida e à história dos homens, como o velho vinho italiano que gosta de presentear seus amigos queridos. Nesse furtivo caso “telenovelesco”, citado acima Lélia Abramo mais uma vez revelou que como poucos tem consciência dos tempos difíceis em que vivemos. Ela tentou interferir, procurando quem naquele momento tinha voz ativa orientar, mas estes estavam muito ocupados resolvendo mais uma questão intestinal partidária. No dia seguinte, essas cenas já faziam parte da história. E, por falar em história, é de Lélia Abramo a frase que “em política, você não pode errar”. Mas, não pensem que ela não interferiria mesmo se esses senadores não pertencessem ao partido de sua predileção; ela o faria com a mesma paixão e respeito que tem pela história da humanidade e o seu compromisso com a decência.

No teatro brasileiro, a atriz Lélia Abramo despontou na década de 50, pelas mãos de José Renato quando participava de um grupo de imigrantes na região do Brás e da Mooca, em São Paulo. Nessa época, apresentou-se para o Brasil interpretando a personagem, mãe, na peça de Gianfrancesco Guarnieri, "Eles não usam Black-tie", no Teatro de Arena. No cinema, sua magnífica contribuição foi nos filmes "Vereda da Salvação" e "Caso dos Irmãos Naves". Filmes que projetaram o Brasil como um país emergente, que os inimigos da humanidade fizeram o favor de destruir. A perseguição que sofreu, ao longo dos anos, por ser mulher, atriz, militante sindical, filha de Abramos (aqui, o sobrenome ganha contornos de adjetivo) fez dela um Samurai. Sua história é a história do século que terminou recentemente e, por essa razão, que sua vida e seus escritos precisam ser lidos e estudados, sempre.

Sua participação em televonelas foi decisiva, acrescentando minúcias na arte de representar até o momento em que foi colocada na “geladeira” sofrendo um dos mais cruéis boicotes. Seu personagem chegou a ser cortado da novela da tevê Globo, “Pai Herói”, em razão de suas idéias. Na sociedade em que vivemos, não há espaço para "Mãe Coragem", muito menos para "Rosa de Luxemburgo".  Participou também da mini-série, "O Tempo e o Vento", porém em novelas nunca mais, após o episódio globo. É curioso o papel que Lélia Abramo sempre representou para sua categoria profissional - os artistas de teatro, televisão e cinema. Todos nós sabemos que ela é uma pessoa extraordinária, uma atriz excepcional, uma lutadora incansável, e por que então esse pouco caso em relação a ela ao longo todos esses anos? Falamos, pelo menos retroagindo 25 anos atrás, quando efetivamente a conhecemos. O caso que se segue, em semelhança e intensidade repetiu-se por diversas vezes, cada um que a conhece de perto por certo terá um caso desses para contar.

Dia era 27 de Outubro de 1975, cenário o Teatro Paiol, em São Paulo, a comunidade de artistas e intelectuais estava perplexa com mais uma brutalidade, dessa vez explícita, da Ditadura Militar que escandalosamente arrogantemente anunciou: MATARAM VLADO. Dois dias antes, Vladimir Herzog que se dirigiu espontaneamente até as dependências do II Exercito para prestar depoimento sobre colaboração financeira a uma organização política, proscrita, duas horas depois estava morto barbaramente foi torturado e barbaramente assassinado. Era o começo do fim, o ato-falho dos comandantes, o início do terceiro ato de peça trágica brasileira. Mas, voltemos ao Teatro Paiol. Nesse dia, prosseguiam leituras dramatizadas de peças premiadas pelo Serviço Nacional de Teatro, e Lélia Abramo participava como atriz. A multidão, acotovelando-se na entrada no teatro e também na platéia aguardava ansiosa e apreensiva que alguém dissesse alguma palavra sobre o que havia acabado de acontecer porque naqueles tempos era possível obter qualquer tipo de informação e do dia-a-dia, somente através dos jornais devido à ditadura. Lélia Abramo, como não poderia deixar de ser foi pessoa que falou sobre o sentimento daquela comunidade que precisava desabafar. Ela disse exatamente essas palavras, "a classe teatral rende aqui a sua homenagem ao jornalista, Vladimir Herzog, agradecendo o seu expressivo apoio ao teatro quando dirigiu a revista Visão". Em seguida, veio um silêncio sepulcral. Como ninguém, ela sabia dosar revolta com oportunidade. Uma pessoa menos preparada faria o contrário, discursaria contra o Regime sob os olhares atentos dos agentes do Dop’s e da Polícia Federal, infiltrados na platéia. E o resultado seria desastroso.

Fica aqui a pergunta: será que o passado nos assusta tanto? Será que este passado nos faz ver o presente, como verdadeiramente ele é? Agrava-se este passado, quando temos uma testemunha viva? Respondendo à pergunta inicial, a qual civilização pertence Lélia Abramo? Ela faz parte de um povo que não se curva e não desmorona diante do tirano. Apesar do seu corpo enfermo, sua cabeça ainda pensa, e isso é o suficiente para surgir uma outra civilização. Quanto ao resto? Bem, o resto é silêncio!

Amanhã ouviremos versos de Neruda, Drumonnd, ou mesmo Allen Ginsberg num toca-disco de uma loja de móveis antigos, na voz forte e fogosa de Lélia Abramo. Será o verdadeiro legado que o século e a civilização passada nos deixou.

Jair Alves - Dramaturgo

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