PICICA: "Beber em São Paulo é pecado. Não deve ser feito em público. O desvio de conduta só é tolerado se feito secretamente, em ambientes privados, se possível dentro de casa, mas nunca na varanda. Ou em bares claustrofóbicos, voltados para si mesmos, onde raramente é possível enxergar a vida do lado de fora." Em Tempo: Em Manaus, o Galvez Bar e o Bar do Armando recebe os paulistanos de braços abertos.
Rodrigo Martins
Não me espantou nem um pouco a pesquisa que revelou, há cerca de uma semana, que três em cada dez paulistanos sofrem algum tipo de transtorno mental, ansiedade e depressão no topo da lista. São Paulo é uma cidade de loucos exatamente pelo fato de negar a seus habitantes o direito à cidade.
É a supremacia do carro que oprime o pedestre (e o ciclista), a ausência quase absoluta de espaços públicos e gratuitos de lazer, o culto às horas extras não remuneradas, a pressa que desumaniza até mesmo os usuários de transporte coletivo, sem falar da avalanche de leis que, sob justificativas aparentemente nobres, quer restringir ou regular o direito de o cidadão fazer qualquer coisa, dentro ou fora de sua casa. Acima de tudo, a preservação da moral e os bons costumes. Mas e se eu quiser dormir tarde, tomar uma cervejinha com os amigos na calçada, acender um cigarrinho abrigado da chuva? Não em São Paulo! Aqui só há espaço para o trabalho, a diversão é mal vista.
A mais recente cruzada da turma dos que sabem o que é melhor para mim é encabeçada pelo deputado estadual Campos Machado, líder do PTB na Assembleia Legislativa e autor de um projeto de lei que pretende proibir a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em espaços públicos em todo o estado. Vai passar o feriado no litoral?
Nada de levar uma cervejinha no isopor. As praias paulistas são sagrados locais de repouso dos trabalhadores, o silêncio não pode ser violado pelo riso histriônico de beberrões e farofeiros. Sentar na calçada pós-expediente com os amigos para beber? Nem pensar! Aqui não é o Rio, e a calçada foi feita apenas para as caminhadas apressadas rumo ao serviço. Se for flagrado com uma latinha de cerveja na mão num parque público então, que sacrilégio!
Os parques paulistas não são para bebedores. Aliás, desconfio que não são para ninguém, com suas grades que fecham ao cair da tarde, seus bancos antimendigos e seguranças sempre dispostos a enxotar os mal vestidos. Alguém já experimentou a sensação de ser seguido no parque Villa-Lobos pelos engravatados que zelam pela proteção do local?
Beber em São Paulo é pecado. Não deve ser feito em público. O desvio de conduta só é tolerado se feito secretamente, em ambientes privados, se possível dentro de casa, mas nunca na varanda. Ou em bares claustrofóbicos, voltados para si mesmos, onde raramente é possível enxergar a vida do lado de fora.
Quem deseja ser visto dando o mau exemplo, não é mesmo? São Paulo é a locomotiva do Brasil. Se enxerga como um país de primeiro mundo e dele quer importar o puritanismo que rege a vida social. Nos Estados Unidos, no Canadá, nos países nórdicos, a bebida alcoólica também não pode ser vista em público. Ninguém vê uma loira gelada impunemente nua pelas ruas. É preciso arranjar-lhe uma burka, nem que seja o improvisado saco plástico a recobrir a latinha de cerveja com moralidade.
Curioso, a turma dos que sabem o que é melhor para mim raramente cita a Alemanha e suas cervejadas em praças públicas. Talvez porque a nação não tenha lá tanta importância em termos de desenvolvimento econômico e social. Afinal, um país que não pune bebedores de cerveja jamais pode ser próspero.
Ocorre que São Paulo está ficando muito chata. E eu não ando nada bem. Talvez deva recorrer ao Rivotril para dormir e algum estimulante na manhã seguinte para não correr o risco de sonolência no trabalho. Desde que tenha receita médica, isso é permitido e estimulado em São Paulo, a cidade dos loucos. Mas eu sei lá, acho mais divertido erguer, impunemente, brindes para o alto e tomar minha cervejinha em paz na calçada. Antes que me acusem do que não fiz, esclareço: jamais dirigi sob o efeito do álcool. Só ando de transporte coletivo e, pasmem!, jamais tentei tirar habilitação. Por não ter carro, inclusive, sou visto por muitos como pária. Paulistanos só têm cidadania com volante na mão.
É por isso que após uma reunião com amigos no bar (perdoem-me, conterrâneos, cometi esse desvio de conduta em plena segunda-feira) decidimos nos manifestar contrariamente ao projeto de lei da turma que sabe o que é melhor para mim.
Pretendemos fazer um cervejaço, na esquina da Alameda Santos com a Ministro Rocha Azevedo na próxima sexta-feira. Os mais exaltados propuseram a Paulista, mas como somos poucos e não queremos atrapalhar o Deus trânsito, optamos por um ato menor.
Entre os digníssimos anônimos, estarão presentes o Digão, colega de copo que trabalha com ciências atuariais (seja lá o que isso for, jamais conversamos sobre trabalho no bar), o Ricardo, que ganha a vida de terno e gravata e tem uma jornada bem maior que as oito horas regulamentares da CLT, o Gil, que apesar de evangélico não considera ser pecaminoso tomar uma cervejinha de leve, o Lucas, assíduo freqüentador de micaretas, o Evaristo, que gosta mais de uma festa do que o próprio carro, entre outros desajustados que, bem, querem continuar tomando uma cervejinha impunemente na rua, na calçada, nos parques, na praia.
Também confirmou presença o amigo João do Violão, a quem não vejo há tempos, mas que está igualmente indignado com o conservadorismo à paulista. Talvez seja por esta razão que o compositor da música Eu bebo sim, um dos hinos da boêmia, se dedique tanto a organizar passeios culturais no Rio de Janeiro, onde o samba e a boemia ainda não foram criminalizados. Ele aposta que o protesto pode ser grande, fazer barulho.
Eu não teria tanta certeza. Somos uma espécie em extinção, essa que gosta de se divertir em público, inclusive com o copo na mão. Então o convite está estendido a todos. Quem quiser, apareça na próxima sexta-feira, 9 de março, a partir das 19 horas, na esquina da Alameda Santos com a Ministro Rocha Azevedo. Há bares na redondeza para abastecer o pessoal, mas quem desejar traga algo de casa. Leve ainda cartazes, perucas, adereços carnavalescos. É protesto, mas não precisa ser chato. O grito será um só: “São Paulo, deixa de ser reaça!.” E quem for aplicado pode decorar o hino abaixo, aqui na interpretação de Elza Soares.
Eu bebo sim
(Luis Antônio e João do Violão)
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que já tá com o pé na cova
Não bebeu e isso prova que a bebida não faz mal
Uma pro santo, desce o choro a saidera
Desce toda a prateleira
Diz que a vida tá legal
Não bebeu e isso prova que a bebida não faz mal
Uma pro santo, desce o choro a saidera
Desce toda a prateleira
Diz que a vida tá legal
Eu bebo sim, eu to vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que detesta um pileque
Diz que é coisa de moleque, cafajeste ou coisa assim
Mas essa gente quando tá com a cara cheia
Vira chave de cadeia, e esvazia o botequim
Diz que é coisa de moleque, cafajeste ou coisa assim
Mas essa gente quando tá com a cara cheia
Vira chave de cadeia, e esvazia o botequim
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
drewgstephens
Fonte: Carta Capital
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