PICICA: "Dizer que as revoltas surgidas nas ruas de Rio e São, em 2013,
foram organizadas na forma da multidão significa dizer que, – em vez de
dirigidas pelo partido ou uma direção centralizada ou mesmo um comitê de
liderança acima das massas, – os movimentos foram auto-organizados,
conectados horizontalmente pelo território social. Os movimentos não
foram (e não se esforçam por ser) unificados e homogêneos, mas sim
encontraram meios adequados para exprimir suas diferenças e antagonismos
internos – e apesar de (ou por causa de) suas diferenças, descobriram
maneiras de troca comum e cooperação, gerando uma série de demandas e
perspectivas agrupadas na luta. Tal multidão não é desorganizada e não
se forma espontaneamente, ao invés disso, ela requer uma atividade
constante e intensa de organização." EM TEMPO: Dia 25 de fevereiro, lançamento no Rio de Janeiro. Tem artigo do Amazonas, assinado por Rogelio Casado, criador do PICICA.
Amanhã vai ser maior |
PREFÁCIO
MALDITO JUNHO!
Inspirado por três dias de barricadas e insurreição nas ruas de
Paris, em junho de 1848, Karl Marx escreveu que o “leão proletário”
tinha se levantado e rugido. O proletariado parisiense revoltoso foi
rapidamente vencido, mas a sua face sombria e ameaçadora chegara à cena
da história. Nas “jornadas de junho” brasileiras, em 2013, a multidão
mostrou a sua face de modo semelhante. Embora não tenha vencido
imediatamente, este leão também pode anunciar notícias sobre nosso
futuro.
Dizer que as revoltas surgidas nas ruas de Rio e São, em 2013,
foram organizadas na forma da multidão significa dizer que, – em vez de
dirigidas pelo partido ou uma direção centralizada ou mesmo um comitê de
liderança acima das massas, – os movimentos foram auto-organizados,
conectados horizontalmente pelo território social. Os movimentos não
foram (e não se esforçam por ser) unificados e homogêneos, mas sim
encontraram meios adequados para exprimir suas diferenças e antagonismos
internos – e apesar de (ou por causa de) suas diferenças, descobriram
maneiras de troca comum e cooperação, gerando uma série de demandas e
perspectivas agrupadas na luta. Tal multidão não é desorganizada e não
se forma espontaneamente, ao invés disso, ela requer uma atividade
constante e intensa de organização.
A multidão no Brasil – como na Turquia, Espanha e em todos os
lugares do ciclo de lutas que se alonga desde 2011 – exige uma
“democracia real”, contra a democracia fantoche que nos vendem o tempo
todo. É, de fato, uma ideia bonita. Mas estariam as lutas políticas da
multidão, apesar de explodir ruidosamente em cena, condenadas a ser
fugazes e efêmeras, inefetivas contra os poderes dominantes? A falta de
unidade e liderança central minaria qualquer consequência política
duradoura para as lutas da multidão? Seria a vida dessa multidão “sem
liderança” cheia de barulho e de fúria, mas sem significar nada? Ou, ao
contrário, seria a força da multidão como o “leão proletário” de Marx:
embora temporariamente subjugado e aparentemente domado, uma força
selvagem que só vai ser verdadeiramente reconhecida no futuro?
Antes de abordar essas questões, devemos enfatizar duas condições
políticas e sociais contemporâneas que proveem o terreno sobre o que
surge as revoltas da multidão.
Primeiro, as revoltas no Brasil, –
assim como os acampamentos e ocupações pelo mundo, nos últimos anos, –
estão baseadas na afirmação do comum – uma afirmação, especialmente, de
tornar comum a metrópole ela própria. O acampamento no Parque Gezi, em
Istambul, é exemplar para a exigência pela criação do comum. A fagulha
dos protestos turcos se deu com a resistência ao plano neoliberal de
privatizar o espaço público – no caso, a construção de um shopping
center imitando antigos quartéis otomanos bem no parque central da
cidade. Os movimentos, por um lado, se opuseram à privatização. Mas, por
outro lado, também se opuseram ao controle público (quer dizer,
estatal) do espaço urbano. No curso da luta, o movimento tornou o parque
e a circunvizinha Praça Taksim um espaço comum, – aberto a todos e
organizado segundo mecanismos de governança democrática. Esse desejo por
um comum através de Istambul e além é uma maneira de exprimir o direito
à metrópole. No Brasil, as fagulhas foram diferentes – a tarifa do
transporte, os projetos de obras para a Copa do Mundo etc – mas
reverberam o mesmo projeto de tornar o espaço urbano comum,
reivindicando o direito à metrópole, para fazer nossa a cidade, como um
território comum. O desejo pelo comum, especialmente em formas
metropolitanas, é a cola que mantém unidos os movimentos da multidão.
Segundo, as revoltas da multidão no Brasil e em toda parte
revelaram o poder de uma força de trabalho emergente. Gente jovem
extremamente inteligente e, às vezes, altamente instruída, muitos com
grande habilidade no uso da internet,
se destacaram nas lutas. Alguns observadores, que se fiam em noções
ultrapassadas, ligando a inteligência e as competências tecnológicas
somente às classes altas, caracterizaram-nos como “classe média”. Mas,
de fato, essa população mais frequentemente é empregada no mundo do
trabalho de maneira precária. Essas pessoas são, a despeito disso,
extraordinariamente produtivas, criativas e procriam novas formas de
vida social – o que pode ser chamado de “produção biopolítica”. Com
efeito, a lacuna entre as extraordinárias capacidades produtivas desses
jovens e as oportunidades miseráveis oferecidas a eles, na sociedade
contemporânea, tem sido uma das forças primárias das revoltas nos anos
recentes. Temos que reconhecê-las como revoltas do trabalho, noutras
palavras, revoltas do trabalho talvez de um novo tipo.
As duas condições – capacidades produtivas da multidão e desejo
generalizado de fazer o espaço metropolitano comum – dão dicas dos
poderes, consistência e durabilidade com que podemos definir o
desdobramento das lutas presentes. Fornecem uma base sólida, para
projetos de desenvolvimento das revoltas em processos que possam
verdadeiramente transformar a sociedade contemporânea.
Mas elas não dão, ainda, uma resposta às questões políticas que
coloquei acima. Como os movimentos atuais, organizados na forma da
multidão, vão se tornar duradouros e efetivos contra os poderes
dominantes? Pode ser também muito cedo para dar uma resposta adequada.
Mas eu penso que seja útil guiar-se por duas proposições que Mario
Tronti colocou no começo dos anos 1960, quando os movimentos de
trabalhadores industriais na Itália estavam, de um modo semelhante, num
estágio emergente da luta.
Em primeiro lugar, em termos gerais, Tronti propôs que a
resistência é primeira em relação ao poder e, especificamente, que as
revoltas da classe trabalhadora precedem e prefiguram os
desenvolvimentos subsequentes do capital. As revoltas da multidão
inteligente, noutras palavras, constituem uma força criativa que, mesmo
se não seja imediata ou diretamente vitoriosa, determinará nos próximos
anos os modos e eixos do desenvolvimento social. Esta proposição manda
que se concentre nos poderes, na inteligência, e na criatividade da
multidão em luta.
Disto, segue a segunda proposição, que ajuda mais claramente a
abordar o nosso dilema político corrente. A política moderna (incluindo a
tradição comunista) coloca a organização política como uma dialética
entre a espontaneidade das massas e a direção dos líderes, por meio do
que os movimentos (junto com suas demandas econômicas) exprimem
interesses parciais e operam no nível da tática, enquanto os líderes
políticos exprimem o interesse geral e são responsáveis pela estratégia.
Nós chegamos num momento, contudo, Tronti propõe, em que devemos
inverter a relação: daqui por diante, movimentos = estratégia, enquanto
liderança = tática. Noutras palavras, os movimentos hoje são capazes
eles próprios de formular e ditar a estratégia política, enquanto
estruturas de liderança (junto com o próprio partido) devam ser usadas
como matéria para a tática. Isto não consiste, no entanto, na visão de
movimentos “sem liderança” – e muito menos uma afirmação da
espontaneidade – mas, em vez disso: por um lado, a reivindicação das
capacidades estratégicas coerentes dos movimentos para abordar
efetivamente assuntos gerais políticos e sociais e, por outro lado, a
proposta de usar (e descartar) as estruturas de liderança segundo as
necessidades presentes e cambiantes da luta.
Parece-me que os movimentos já estejam quase na posição de cumprir a
primeira metade do desafio. Eles já possuem – através da construção do
espaço metropolitano como comum, por exemplo, e através das expressões
da produção biopolítica – a capacidade de gerar uma visão política
estratégica, geral, duradoura. Muito menos desenvolvida é a capacidade
de gerar e operar estruturas de liderança de um modo tático. Tais
estruturas temporárias de liderança devem criar contrapoderes potentes,
mas sem se calcificar ou ameaçar tomar o controle; elas devem permanecer
permanentemente subordinadas ao controle democrático e à vontade dos
movimentos. Muito trabalho deve ser feito, mas a inversão de estratégia e
tática fornecem um quadro útil para entender alguns dos desafios do
futuro e também reconhecer a importância do que já está acontecendo –
porque afinal tanto já foi realizado desde junho!
Talvez algum dia, no futuro, os senhores da ordem atual terão de
olhar pra trás e lamentar aqueles dias malditos de junho, quando o leão
rugiu e a multidão no Brasil mostrou a sua verdadeira face.
Michael Hardt
Fonte: ANNABLUMME EDITORA
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