PICICA: "Na região amazônica essas grandes obras causam grandes danos
ambientais e sociais, mas quem irá se importar com isso se o preço da
inação é a falta de energia? Ninguém se importará nem com o custo dessas
enormes barragens, muito maior do que nas outras partes do Brasil.
O calor sufocante fará a diferença na avaliação. Mas mesmo sem esse
componente os “barrageiros” já haviam retomado a ofensiva rumo à
Amazônia. Agora eles têm a decisiva colaboração do governo. A presidente
Dilma Roussef mandou dizer (e a revista Veja transmitiu o recado) que agora não irá mais se preocupar com os ambientalistas.
É preciso gerar muita energia para evitar o colapso nacional.
Represas serão levantadas nos rios amazônicos e quem se opuser será
atropelado pela força do poder central. Brasília presume que os
brasileiros aflitos aplaudirão sua impetuosidade."
O rolo da energia em colapso
Por Lúcio Flávio Pinto | Cartas da Amazônia – qua, 5 de fev de 2014
Em
2001 o apagão de energia coincidiu com ano eleitoral, tornando-se item
importante no discurso dos candidatos. O fato foi soterrado pelas
versões e a dimensão técnica pelo aproveitamento político. O PSDB, no
governo, pagou caro. O PT, na oposição, faturou os dividendos. Lula se
elegeu. FHC não fez o seu sucessor, que era José Serra.
As falhas na linha de transmissão de energia entre Tocantins e Goiás levaram o blecaute a 11 Estados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste na tarde/noite de ontem. Só amanhã o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) vai dirigir uma reunião, na sua estranha sede (na bela cidade litorânea do Rio de Janeiro), para apurar os motivos do apagão.
Ainda sem essa avaliação, porém, o governo federal descartou de imediato a possibilidade de sobrecarga no sistema por causa da estiagem recorde, que secou vários reservatórios de usinas, e dos piques também recordes de consumo, em função do efeito desse verão rigoroso (mais aparelhos de ar condicionado em atividade, dentre outros fatores).
Na manhã de ontem, o Palácio do Planalto convocou seus porta-vozes do setor para oferecer essa garantia ao cidadão (que é também eleitor): a produção de energia é suficiente para atender todo consumo – ainda que excepcionalmente alto – do país. O pano de fundo mudou antes da entrevista coletiva à imprensa, em Brasília. O discurso é que continuou o mesmo. Por isso, não convenceu os especialistas e os observadores mais rigorosos. Se não mente, o governo, pelo menos, omite a verdade.
Só há duas explicações para o acidente, admitindo-se as informações oficiais. Uma é conjuntural: defeito em alguma peça ou equipamento ao longo da linha de transmissão, que provocou os desligamentos, ativados pelo sistema de proteção, que age automaticamente. Outra é estrutural: se colapso houve, ainda que por acidente, a causa última (ou primeira) é um vácuo de investimentos para acompanhar o crescimento da demanda.
Os “barrageiros” e suas extensões traduzem esse gap como falta de aplicações em geração de energia. Pode ser nas térmicas, que custam mais caro, mas são usadas em emergências como a atual (a um custo adicional de 10 bilhões de reais, no ano passado). É claro que usinas térmicas (a óleo ou carvão) não são suficientes (além de mais caras, poluem muito mais). A solução seriam mais hidrelétricas. E onde elas podem ser construídas? Na Amazônia, óbvio.
Na região amazônica essas grandes obras causam grandes danos ambientais e sociais, mas quem irá se importar com isso se o preço da inação é a falta de energia? Ninguém se importará nem com o custo dessas enormes barragens, muito maior do que nas outras partes do Brasil.
O calor sufocante fará a diferença na avaliação. Mas mesmo sem esse componente os “barrageiros” já haviam retomado a ofensiva rumo à Amazônia. Agora eles têm a decisiva colaboração do governo. A presidente Dilma Roussef mandou dizer (e a revista Veja transmitiu o recado) que agora não irá mais se preocupar com os ambientalistas.
É preciso gerar muita energia para evitar o colapso nacional. Represas serão levantadas nos rios amazônicos e quem se opuser será atropelado pela força do poder central. Brasília presume que os brasileiros aflitos aplaudirão sua impetuosidade.
Uma iniciativa foi anunciada numa coluna da revista da editora Abril: a construção de uma segunda barragem no rio Xingu, no Pará. O governo, desde Fernando Henrique e Lula, e também sob Dilma, jurou de pés juntos e assinou documentos garantindo que a intervenção se restringiria à hidrelétrica de Belo Monte, projetada para ser a maior do mundo. Os planos anteriores, para seis barramentos, teriam sido descartados.
Não precisa ser da oposição ou sonhador para não acreditar na promessa. Basta ter acesso a simples operações aritméticas. Como a vazão do Xingu diminui 30 vezes entre o máximo do inverno e do verão, não haveria água suficiente para acionar as 18 gigantescas turbinas da casa de força de Belo Monte durante metade do ano. Logo, a operação da usina seria antieconômica. Seus 11 mil MW de potência se reduziriam a menos de 40% de energia firme, aquela que é disponível o ano inteiro (bem abaixo dos 55% necessários).
O que fazer? Ou subsidiar pesadamente Belo Monte para que ela absorva seus inevitáveis prejuízos operacionais, ou cancelá-la. Mas sua construção está chegando à metade do cronograma físico-financeiro, de 30 bilhões de reais. Logo, é definitiva. O subsídio à hidrelétrica de Tucuruí, em 20 anos (1984/2004) custou quatro bilhões de dólares ao tesouro nacional (sem atualização). Por quanto sairá Belo Monte, que é maior?
Mentiras de lado, o governo prepara-se para assumir aquilo em que sempre pensou: fazer uma segunda barragem rio acima para estocar água suficiente para Belo Monte, Xingu abaixo. Para isso, será formado um reservatório muito maior. O esquema se repetirá no Tapajós, próximo alvo dessa ofensiva, e em outros sítios favoráveis. A Amazônia poderia acrescentar 50% à energia produzida atualmente.
Parece inevitável, se nos submetemos à estratégia dos construtores de barragens, as grandes empreiteiras, fontes de caixas um, dois e três da política nacional. Deixam-se de lado outras medidas de efeito semelhante ou melhor, como a conservação de energia, a repotenciação das velhas usinas, as alternativas tecnológicas e algo que a sofreguidão dos períodos de crise oculta: a fragilidade cada vez maior das extensas linhas de energia que cortam o território brasileiro, sujeitas a acidentes constantes – acidentais, mas tão previsíveis quanto “previníveis”, para usar a neologia verde-amarela.
Um detalhe talvez ajude o leitor a ter uma percepção mais prática do problema. No momento do acidente de ontem, a hidrelétrica de Tucuruí transmitia, sozinha, cinco mil MW de energia para dois milhões de unidades consumidoras (seis milhões de habitantes, no conservador cálculo oficial), no rumo sul. Estava com quase dois terços do seu reservatório, o segundo maior lago artificial do Brasil, cheio de água. Ao Pará, onde a usina se localiza, só eram destinados 20% dessa energia, sem o pagamento do imposto, cobrado apenas no consumo.
A quem, pois, serve esse modelo?
Fonte: Cartas da Amazônia
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