PICICA: "Quando
estendidas para o mundo digital, as estruturas de poder baseadas em
gênero estabelecem vários pontos de tensão, tanto no de nível de acesso à
tecnologia e à informação e seu uso livre e seguro, como em relação ao
controle e regulação dos meios virtuais. Na América Latina ativar o
potencial de ferramentas virtuais para promover o empoderamento
econômico, político e social das mulheres é um desafio pendente. É
fundamental para garantir às mulheres os meios para definir própria
agenda orientada para enfrentar a desigualdade e transformar as relações
de poder que permeiam o uso da tecnologia."
Mulheres e internet
Texto de CLAM – Centro Latino-Americano
em Sexualidade e Direitos Humanos. Tradução de Iara Paiva. Publicado
originalmente com o título: ‘Mujeres y internet‘ no site do CLAM em 10/02/2014.
—–
Quando
estendidas para o mundo digital, as estruturas de poder baseadas em
gênero estabelecem vários pontos de tensão, tanto no de nível de acesso à
tecnologia e à informação e seu uso livre e seguro, como em relação ao
controle e regulação dos meios virtuais. Na América Latina ativar o
potencial de ferramentas virtuais para promover o empoderamento
econômico, político e social das mulheres é um desafio pendente. É
fundamental para garantir às mulheres os meios para definir própria
agenda orientada para enfrentar a desigualdade e transformar as relações
de poder que permeiam o uso da tecnologia.
A regulamentação da Internet não se limita aos aspectos
técnicos da gestão de nomes e números de Internet, mas também diz
respeito, necessariamente, a suas políticas de desenvolvimento, acesso e
utilização. Na última Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, a
Governança da Internet foi definida como “o desenvolvimento e
aplicação por parte dos governos, do setor privado e da sociedade civil
em suas respectivas responsabilidades de princípios, normas, regras,
procedimentos de decisão e programas comuns que configuram a evolução e
utilização da Internet.” Nesta área posiciona-se fortemente a
necessidade de integrar a perspectiva de gênero e apontar questões como a
participação real e significativa das mulheres no desenvolvimento de
políticas globais, regionais e nacionais na rede. E também de conhecer o
impacto do acesso à Internet e utilização no exercício de direitos das
mulheres.
Nos últimos anos surgiram várias iniciativas que visam a
construção de uma rede dedicada especificamente ao desenvolvimento de
temas relacionados com a participação na governança, direitos das
trabalhadoras domésticas, tráfico de mulheres, casamento infantil e
direito ao aborto e acesso à infra-estrutura, desobediência e a
sexualidade online. Entre elas destaque-se o Observatório Mundial da
Sociedade da Informação (GISWatch), que no seu relatório anual de 2013
examinou o progresso na criação de uma sociedade da informação inclusiva
no mundo inteiro. Seus resultados sugerem que, embora haja ganhos em
direitos das mulheres feitas on-line , eles não são nem seguros, nem
estáveis. Por um lado, o acesso das mulheres a essas novas tecnologias
tem melhorado o seu nível de participação nas áreas sociais, econômicas e
de governança, mas por outro lado, novas possibilidades de mostrar uma
outra face: o cyberbullying, o assédio e violência contra as mulheres.
A XII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina
e do Caribe, realizada em Santo Domingo, em 2013, discutiu a relação
entre autonomia econômica e direitos das mulheres, especialmente no
contexto da economia digital (ver TIC¹ para a igualdade). Assim como
ela, as conferências mundiais sobre as mulheres, realizada pelas Nações
Unidas em 1975, 1980, 1985 e 1995, ajudaram a reconhecer o feminismo
como um movimento significativo na história recente por conta de seu
impacto teórico e político, bem como sua habilidade de articulação e
mobilização social. A perspectiva feminista também foi levada para o
ciberespaço, a fim de capacitar as mulheres como usuárias ativas destas
ferramentas, gestoras de conteúdos e de conhecimentos sobre tecnologias,
ao considerar o papel da tecnologia da informação como um tema central,
tão significativo quanto a economia , cultura, saúde e educação. No
entanto, persistem na rede as formas de domínição masculina, que
precisam ser analisadas.
A hegemonia da rede
Em sua revisão do relatório GISWatch de 2013, o
especialista alemão Heike Jensen observa que, desde a década de 1990, a
inclusão da perspectiva de gênero vem sendo discutida em vários níveis
de governo. Infelizmente, diz Jensen, aplicação transversal desta
abordagem nunca foi implementada de forma consistente. Como em outras
áreas, processos políticos são iniciados e agendas são definidas sem
explicitar os aspectos e as questões de gênero envolvidos, o que ajudou a
reforçar a masculinidade hegemônica , diz o professor de Estudos de
Gênero da Universidade de Humboldt Berlim.
De acordo com Jensen, ao tratarmos de gênero e internet é
possível discernir duas abordagens para análise. A primeira ocorre na
área de intervenções feministas de gênero, que são frequentemente
associadas a mulheres e meninas, em cujo nome compromissos políticos e
medidas específicas são procurados. Neste caso a atenção para a relação
entre gênero e outras hierarquias sociais pode levar a declarações
cheias de nuances em nome de grupos específicos de mulheres e meninas,
como as mulheres na zonas rurais ou meninas pobres e negras. Quer dizer,
o gênero como um marcador de diferença relaciona-se diretamente com as
funções e necessidades desses grupos.
Na segunda abordagem, relacionada a processos políticos
mais amplos, o gênero pode ser usado como um sistema abstrato de poder e
de representação por meio do qual se negociam as formas de dominação, e
donde a masculinidade hegemônica. Jensen descreve como na internet os
pontos de vista e as percepções masculina privilegiadas “levam a que se identifiquem certas questões políticas e que elas sejam assumidas como marcos retóricos específicos” . Como resultado, ele continua, qualquer agenda temática do poder político dominante “já
tem incorporados os resultados de lutas de poder entre grupos de homens
privilegiados, e produtos do debate político subseqüente reflete
amplamente que grupos de homens impuseram seu domínio”. Para dizer em termos que incluem questões de gênero , acrescenta, este produto mostra “quais são os grupos de homens que constituem a masculinidade hegemônica”.
O ponto principal - segundo Jensen – é entender que, por
não chamar a atenção para a as ordens hierárquicas que impõem, a
dominação masculina e o patriarcado se perpetuam em campos políticos e
econômicos, em que se sustentam como um ponto de vista universal. O
ponto de vista feminista é desafiado até mesmo por aqueles que vêem TIC
exclusivamente em relação ao desenvolvimento e os direitos humanos em
termos de um “sujeito-cidadão” abstrato em vez de grupos
específicos de mulheres e homens , com diferentes necessidades e
preocupações. Contribuem, desta forma, para a hegemonia masculina .
No governo da Internet, como outras esferas da política, as
mulheres continuam sub-representadas. A ação afirmativa no espaço
virtual é defendida como uma medida necessária para corrigir esta
situação. Apesar dos compromissos como a Cúpula Mundial sobre a
Sociedade da Informação (CMSI), que indica a necessidade de plena
participação das mulheres em todos os processos de tomada de decisão, a
implementação de medidas concretas ainda é necessária para transformar
essa promessa e essas boas intenções em realidade.
A socióloga Valeria Betancourt, diretora global do Programa
de Política de Informação para a América Latina (CIPP) da Associação
para o Progresso das Comunicações (APC) , explica que após 6 anos de
diálogos regionais sobre governança da Internet, os resultados deixam
muito a desejar. Embora tenham sido feitos esforços para incluir as
mulheres no comitê organizador do evento regional, bem como para
fornecer bolsas de estudo para participação e priorizar as intervenções
de mulheres, essas ações “não são suficientes para resolver a exclusão estrutural das mulheres da forma como se configuraa governança da Internet”,
afirma. Para a ativista, abordar criticamente o uso da Internet para a
defesa política social envolve a compreensão de como a estrutura de
governança da Internet reforça certas condições de exclusão e desigualde
e injustiça social.
De acordo com Betancourt, no que diz respeito às tecnologias de informação e comunicação “o poder adquire outras dimensões. Contrapor-se a ele torna-se, portanto, mais complexo”,
pois se trata de uma disputa sobre o acesso e controle de meios
técnicos e conhecimentos. É aí, precisa, que incide a estrutura de
propriedade das infra-estruturas TIC com a lógica própria do mercado,
que procuram deixar em mãos privadas, junto com a implementação de
serviços e conhecimento que circula na rede, em contraste com aqueles
que defendem o caráter igualitário, aberto, não hierárquico e
descentralizado da internet.
Contra o discurso hegemônico
Valeria Betancourt reconhece que a visibilidade e o
reconhecimento de uma multiplicidade de agentes no domínio da Internet
tem permitido “produzir rupturas a partir das quais é possível desafiar e combater discursos e visões hegemônicos.” Na sua opinião, o desafio é que “novas formas de transgressão, resistência e transformação coletiva” introduzidas por mudança tecnológica “gerem mudanças materiais e simbólicas substanciais”.
Várias pesquisas mostram o papel positivo da Internet no empoderamento
das mulheres, o aumento do acesso às TIC, campanhas on-line e usar a web
para promover a governação justa, entendendo que a consolidação dos
direitos permitem exercer plenamente a cidadania.
Alan Finlay,especialista em direitos de Internet, argumenta
que os objetivos de uma sociedade da informação democrática não estão
sendo alcançados porque não se dá espaço para as vozes, interesses,
necessidades e contribuições de metade da humanidade: as mulheres . O
pesquisador defende este ponto de vista em um editorial da publicação
online GenderIT. Nele, detalha como, em vez de ser socializado e
compartilhado, o conhecimento foi privatizado e informação tornou-se uma
mercadoria. Ao mesmo tempo, sob o pretexto da segurança global,
viola-se o direito à privacidade. “Os avanços tecnológicos não podem
garantir a justiça social, a democracia, o desenvolvimento sustentável
nem a cidadania plena se não se transformam as condições estruturais que
perpetuam a exclusão”, diz Finlay .
Entre as experiências que se destacam no empoderamento de
mulheres está o surgimento do Digna, primeiro aplicativo de celular para
o aborto seguro e legal. É resultado de uma iniciativa do Consórcio
Latino-americano contra Aborto Inseguro ( CLACAI ) e do Bureau para a
Vida e a Saúde da Mulher, que disponibilizaram o primeiro aplicativo
deste tipo na América Latina, que fornece informação jurídica, médica e
estatística sobre o aborto em gravidez decorrente de estupro em países
onde este procedimento é permitido.
Em pesquisa sobre os usos sociais dos celulares e da banda
larga, Leith Hopeton Dunn, do corpo docente da Universidade de West
Indies, destaca as experiências dos trabalhadores domésticos de Jamaica
com essas tecnologias: a geração de estratégias organizacionais entre
mulheres trabalhadoras de baixa renda. As mulheres usaram seu direito a
reunião, o direito de organizarem-se, para melhorar as leis, os salários
e as condições de trabalho e promover a liberdade de gênero. “O
fortalecimento do uso da tecnologia móvel para organizar sua união lhes
permite proteger seus direitos e melhorar a sua situação”, afima .
Ele também destaca o trabalho realizado pelo Programa de
Apoio à Rede de Mulheres (PARM) da APC, uma rede internacional de
organizações da sociedade civil fundada em 1990 que trabalha com
organizações e ativistas pelos direitos das mulheres e que qualifica o
uso de ferramentas tecnológicas. Entre suas ações, o projeto EROTICS,
por exemplo, discute a regulamentação dos conteúdos e a comunicação dos
direitos das mulheres. E a Take Back, iniciativa tecnologica que tem
contribuído desde 2009 para documentar casos de violação dos direitos
das mulheres online, bem como para treinar ativistas e sobreviventes da
violência a utilizarem as TIC de forma criativa e proteger os seus
direitos de acessar o conteúdo e comunicações online .
Uma visão paternalista
De acordo com Jensen, as mulheres na internet são
geralmente representadas como um grupo com questões que precisam de
ajuda. E nas medidas para este fim, diz ele, nota-se um “seqüestro de posições feministas”
na rede. Como é o caso com questões como a proteção das mulheres e
meninas de pornografia digital e cyberbullying, muitas vezes mobilizados
por grupos paternalistas que se utilizam destes temas com propósitos
muito diferentes da igualdade de gênero e da justiça social. Há mais
interesse nestes grupos para vigilância e censura na Internet .
Depois de promover várias actividades no âmbito da Campanha
de Acesso ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito e o Dia pela
Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, o site da
Rede de Saúde das Mulheres da América Latina e do Caribe foi atacado.
Vanessa Coria Castilla, da Rede Global de Mulheres pelos Direitos
Reprodutivos, disse em uma entrevista que os ataques partiram, em sua
maioria, de grupos conservadores fundamentalistas. Há no entanto, o
incentivo a projetos de capacitação como ferramentas para neutralizar
esses ataques. Tal como o Maltilti , uma alternativa para denunciar
qualquer ato que viola os direitos das mulheres em espaços digitais.
Apesar destas ações, a questão de como relacionar uma
preocupação mais sistêmica com a igualdade de gênero no ciberespaço com
outras iniciativas para a justiça social, a fim de gerar alianças
políticas mais fortes, persiste. Logicamente essa é uma condição
potencial para que as mulheres se juntem totalmente a sociedade da
informação e do conhecimento, superem barreiras de acesso e utilizem as
TIC em segurança.
Nota
1 Tecnologias da Informação e Comunicação
Iara Paiva
Oi. Você vem sempre aqui?
Fonte: Blogueiras Feministas
Nenhum comentário:
Postar um comentário