fevereiro 14, 2014

"Mulheres e Internet", por Iara Paiva

PICICA: "Quando estendidas para o mundo digital, as estruturas de poder baseadas em gênero estabelecem vários pontos de tensão, tanto no de nível de acesso à tecnologia e à informação e seu uso livre e seguro, como em relação ao controle e regulação dos meios virtuais. Na América Latina ativar o potencial de ferramentas virtuais para promover o empoderamento econômico, político e social das mulheres é um desafio pendente. É fundamental para garantir às mulheres os meios para definir própria agenda orientada para enfrentar a desigualdade e transformar as relações de poder que permeiam o uso da tecnologia."

Mulheres e internet


Texto de CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Tradução de Iara Paiva. Publicado originalmente com o título: ‘Mujeres y internet‘ no site do CLAM em 10/02/2014.

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Quando estendidas para o mundo digital, as estruturas de poder baseadas em gênero estabelecem vários pontos de tensão, tanto no de nível de acesso à tecnologia e à informação e seu uso livre e seguro, como em relação ao controle e regulação dos meios virtuais. Na América Latina ativar o potencial de ferramentas virtuais para promover o empoderamento econômico, político e social das mulheres é um desafio pendente. É fundamental para garantir às mulheres os meios para definir própria agenda orientada para enfrentar a desigualdade e transformar as relações de poder que permeiam o uso da tecnologia.

A regulamentação da Internet não se limita aos aspectos técnicos da gestão de nomes e números de Internet, mas também diz respeito, necessariamente, a suas políticas de desenvolvimento, acesso e utilização. Na última Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, a Governança da Internet foi definida como “o desenvolvimento e aplicação por parte dos governos, do setor privado e da sociedade civil em suas respectivas responsabilidades de princípios, normas, regras, procedimentos de decisão e programas comuns que configuram a evolução e utilização da Internet.” Nesta área posiciona-se fortemente a necessidade de integrar a perspectiva de gênero e apontar questões como a participação real e significativa das mulheres no desenvolvimento de políticas globais, regionais e nacionais na rede. E também de conhecer o impacto do acesso à Internet e utilização no exercício de direitos das mulheres.

Nos últimos anos surgiram várias iniciativas que visam a construção de uma rede dedicada especificamente ao desenvolvimento de temas relacionados com a participação na governança,  direitos das trabalhadoras domésticas, tráfico de mulheres, casamento infantil e direito ao aborto e acesso à infra-estrutura, desobediência e a sexualidade online. Entre elas destaque-se o Observatório Mundial da Sociedade da Informação (GISWatch), que no seu relatório anual de 2013 examinou o progresso na criação de uma sociedade da informação inclusiva no mundo inteiro. Seus resultados sugerem que, embora haja ganhos em direitos das mulheres feitas on-line , eles não são nem seguros, nem estáveis. Por um lado, o acesso das mulheres a essas novas tecnologias tem melhorado o seu nível de participação nas áreas sociais, econômicas e de governança, mas por outro lado, novas possibilidades de mostrar uma outra face: o cyberbullying, o assédio e violência contra as mulheres.

A XII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, realizada em Santo Domingo, em 2013, discutiu a relação entre autonomia econômica e direitos das mulheres, especialmente no contexto da economia digital (ver TIC¹ para a igualdade). Assim como ela, as conferências mundiais sobre as mulheres, realizada pelas Nações Unidas em 1975, 1980, 1985 e 1995, ajudaram a reconhecer o feminismo como um movimento significativo na história recente por conta de seu impacto teórico e político, bem como sua habilidade de articulação e mobilização social. A perspectiva feminista também foi levada para o ciberespaço, a fim de capacitar as mulheres como usuárias ativas destas ferramentas, gestoras de conteúdos e de conhecimentos sobre tecnologias, ao considerar o papel da tecnologia da informação como um tema central, tão significativo quanto a economia , cultura, saúde e educação. No entanto, persistem na rede as formas de domínição masculina, que precisam ser analisadas.

Foto de Alexander Lyubavin no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Foto de Alexander Lyubavin no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

A hegemonia da rede

Em sua revisão do relatório GISWatch de 2013, o especialista alemão Heike Jensen observa que, desde a década de 1990, a inclusão da perspectiva de gênero vem sendo discutida em vários níveis de governo. Infelizmente, diz Jensen, aplicação transversal desta abordagem nunca foi implementada de forma consistente. Como em outras áreas, processos políticos são iniciados e agendas são definidas sem explicitar os aspectos e as questões de gênero envolvidos, o que ajudou a reforçar a masculinidade hegemônica , diz o professor de Estudos de Gênero da Universidade de Humboldt Berlim.

De acordo com Jensen, ao tratarmos de gênero e internet é possível discernir duas abordagens para análise. A primeira ocorre na área de intervenções feministas de gênero, que são frequentemente associadas a mulheres e meninas, em cujo nome compromissos políticos e medidas específicas são procurados. Neste caso a atenção para a relação entre gênero e outras hierarquias sociais pode levar a declarações cheias de nuances em nome de grupos específicos de mulheres e meninas, como as mulheres na zonas rurais ou meninas pobres e negras. Quer dizer,  o gênero como um marcador de diferença relaciona-se diretamente com as funções e necessidades desses grupos.

Na segunda abordagem, relacionada a processos políticos mais amplos, o gênero pode ser usado como um sistema abstrato de poder e de representação por meio do qual se negociam as formas de dominação, e donde a masculinidade hegemônica. Jensen descreve como na internet os pontos de vista e as percepções masculina privilegiadas “levam a que se identifiquem certas questões políticas e que elas sejam assumidas como marcos retóricos específicos” . Como resultado, ele continua, qualquer agenda temática do poder político dominante “já tem incorporados os resultados de lutas de poder entre grupos de homens privilegiados, e produtos do debate político subseqüente reflete amplamente que grupos de homens impuseram seu domínio”. Para dizer em termos que incluem questões de gênero , acrescenta, este produto mostra “quais são os  grupos de homens que constituem a masculinidade hegemônica”.

 O ponto principal  - segundo Jensen –  é entender que, por não chamar a atenção para a as ordens hierárquicas que impõem, a dominação masculina e o patriarcado se perpetuam em campos políticos e econômicos, em que se sustentam como um ponto de vista universal. O ponto de vista feminista é desafiado até mesmo por aqueles que vêem TIC exclusivamente em relação ao desenvolvimento e os direitos humanos em termos de um “sujeito-cidadão” abstrato em vez de grupos específicos de mulheres e homens , com diferentes necessidades e preocupações. Contribuem, desta forma, para a hegemonia masculina .

No governo da Internet, como outras esferas da política, as mulheres continuam sub-representadas. A ação afirmativa no espaço virtual é defendida como uma medida necessária para corrigir esta situação. Apesar dos compromissos como a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), que indica a necessidade de plena participação das mulheres em todos os processos de tomada de decisão, a implementação de medidas concretas ainda é necessária para transformar essa promessa e essas boas intenções em realidade.

A socióloga Valeria Betancourt, diretora global do Programa de Política de Informação para a América Latina (CIPP) da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) , explica que após 6 anos de diálogos regionais sobre governança da Internet, os resultados deixam muito a desejar. Embora tenham sido feitos esforços para incluir as mulheres no comitê organizador do evento regional, bem como para fornecer bolsas de estudo para participação e priorizar as intervenções de mulheres, essas ações “não são suficientes para resolver a exclusão estrutural das mulheres da forma como se configuraa  governança da Internet”, afirma. Para a ativista, abordar criticamente o uso da Internet para a defesa política social envolve a compreensão de como a estrutura de governança da Internet reforça certas condições de exclusão e desigualde e injustiça social.

De acordo com Betancourt, no que diz respeito às tecnologias de informação e comunicação “o poder adquire outras dimensões. Contrapor-se a ele torna-se, portanto, mais complexo”, pois se trata de uma disputa sobre o acesso e controle de meios técnicos e conhecimentos. É aí, precisa, que incide a estrutura de propriedade das infra-estruturas TIC com a lógica própria do mercado, que procuram deixar em mãos privadas, junto com a implementação de serviços e conhecimento que circula na rede, em contraste com aqueles que defendem o caráter igualitário, aberto, não hierárquico e descentralizado da internet.

Contra o discurso hegemônico

Valeria Betancourt reconhece que a visibilidade e o reconhecimento de uma multiplicidade de agentes no domínio da Internet tem permitido “produzir rupturas a partir das quais é possível desafiar e combater discursos e visões hegemônicos.” Na sua opinião, o desafio é que “novas formas de transgressão, resistência e transformação coletiva” introduzidas por mudança tecnológica “gerem mudanças materiais e simbólicas substanciais”. Várias pesquisas mostram o papel positivo da Internet no empoderamento das mulheres, o aumento do acesso às TIC, campanhas on-line e usar a web para promover a governação justa, entendendo que a consolidação dos direitos permitem exercer plenamente a cidadania.

Alan Finlay,especialista em direitos de Internet, argumenta que os objetivos de uma sociedade da informação democrática não estão sendo alcançados porque não se dá espaço para as vozes, interesses, necessidades e contribuições de metade da humanidade: as mulheres . O pesquisador defende este ponto de vista em um editorial da publicação online GenderIT. Nele,  detalha como, em vez de ser socializado e compartilhado, o conhecimento foi privatizado e informação tornou-se uma mercadoria. Ao mesmo tempo, sob o pretexto da segurança global, viola-se o direito à privacidade. “Os avanços tecnológicos não podem garantir a justiça social, a democracia, o desenvolvimento sustentável nem a cidadania plena se não se transformam as condições estruturais que perpetuam a exclusão”, diz Finlay .

Entre as experiências que se destacam no empoderamento de mulheres está o surgimento do Digna, primeiro aplicativo de celular para o aborto seguro e legal. É resultado de uma iniciativa do Consórcio Latino-americano contra Aborto Inseguro ( CLACAI ) e do Bureau para a Vida e a Saúde da Mulher, que disponibilizaram o primeiro aplicativo deste tipo na América Latina, que fornece informação jurídica, médica e estatística sobre o aborto em gravidez decorrente de estupro em países onde este procedimento é permitido.

Em pesquisa sobre os usos sociais dos celulares e da banda larga, Leith Hopeton Dunn, do corpo docente da Universidade de West Indies, destaca as experiências dos trabalhadores domésticos de Jamaica com essas tecnologias: a geração de estratégias organizacionais entre mulheres trabalhadoras de baixa renda. As mulheres usaram seu direito a reunião, o direito de organizarem-se, para melhorar as leis, os salários e as condições de trabalho e promover a liberdade de gênero. “O fortalecimento do uso da tecnologia móvel para organizar sua união lhes permite proteger seus direitos e melhorar a sua situação”, afima .

Ele também destaca o trabalho realizado pelo Programa de Apoio à Rede de Mulheres (PARM) da APC, uma rede internacional de organizações da sociedade civil fundada em 1990 que trabalha com organizações e ativistas pelos direitos das mulheres e que qualifica o uso de ferramentas tecnológicas. Entre suas ações, o projeto EROTICS, por exemplo, discute a regulamentação dos conteúdos e a comunicação dos direitos das mulheres. E a Take Back, iniciativa tecnologica que tem contribuído desde 2009 para documentar casos de violação dos direitos das mulheres online, bem como para treinar ativistas e sobreviventes da violência a utilizarem as TIC de forma criativa e proteger os seus direitos de acessar o conteúdo e comunicações online .

Uma visão paternalista

De acordo com Jensen, as mulheres na internet são geralmente representadas como um grupo com questões que precisam de ajuda. E nas medidas para este fim, diz ele,  nota-se um “seqüestro de posições feministas” na rede. Como é o caso com questões como a proteção das mulheres e meninas de pornografia digital e cyberbullying, muitas vezes mobilizados por grupos paternalistas que se utilizam destes temas com propósitos muito diferentes da igualdade de gênero e da justiça social. Há mais interesse nestes grupos para vigilância e censura na Internet .

Depois de promover várias actividades no âmbito da Campanha de Acesso ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito e o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, o site da Rede de Saúde das Mulheres da América Latina e do Caribe foi atacado. Vanessa Coria Castilla, da Rede Global de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos, disse em uma entrevista que os ataques partiram, em sua maioria, de grupos conservadores fundamentalistas. Há no entanto, o incentivo a projetos de capacitação como ferramentas para neutralizar esses ataques. Tal como o Maltilti , uma alternativa para denunciar qualquer ato que viola os direitos das mulheres em espaços digitais.

Apesar destas ações, a questão de como relacionar uma preocupação mais sistêmica com a igualdade de gênero no ciberespaço com outras iniciativas     para a justiça social, a fim de gerar alianças políticas mais fortes, persiste. Logicamente essa é uma condição potencial para que as mulheres se juntem totalmente a sociedade da informação e do conhecimento, superem barreiras de acesso e utilizem as TIC em segurança.

Nota

1 Tecnologias da Informação e Comunicação

Iara Paiva

Oi. Você vem sempre aqui?

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