PICICA: "A
brecha democrática está aberta. Temos que lutar para mantê-la. Por mais
que tentem criminalizar os manifestantes, as indignações são múltiplas e
suas manifestações são imprevisíveis. O direito de se manifestar não
pode ser cassado sob pena de mutilação da recente democracia brasileira
que está se constituindo. O que esse início de ano mostra é que as
faíscas de indignação que podem gerar grandes fluxos de pessoas nas ruas
e redes, ambas cada vez mais imbricadas, não podem ser previstas de
antemão. A grande aposta do poder constituído para este ano é a Copa do
Mundo, inclusive em termos de repressão, pois desde o início foi um
evento construído de “cima para baixo”. A Copa ainda continua como
potencial pauta de protestos, mas eis que a realidade mostra sinais de
que a sociedade pode surpreender a qualquer momento com astúcia e
alegria. A revolta está à espreita. Que venha o carnaval, que ele traga a
alegria que temperará as lutas que virão pela frente."
2014: o ano que começou antes do carnaval
27/02/2014
Por Marcelo Castañeda
Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade
–
Geralmente
diz-se que, no Brasil, o ano começa depois do carnaval. Este ano parece
estar contrariando o ditado popular, ao menos no que diz respeito às
manifestações. Além disso, parece que a imprevisibilidade dá o tom. As
apostas que eu fazia para os protestos neste ano se voltavam para
eventos como carnaval (março), Copa do Mundo (junho/julho) e eleições
(outubro/novembro). Mas o ano começou agitado entre rolezinhos
paulistas, protestos contra a Copa articulados em várias capitais, bem
como contra o aumento das passagens de ônibus no Rio de Janeiro.
Indo
além de qualquer previsibilidade, o agito deste início de ano
contrariou minhas apostas, contando com dois elementos comuns a todos os
processos em curso. São praticamente duas constantes que vêm dando as
caras desde junho: de um lado, os sites
de redes sociais como forma cada vez mais usual de convocação,
mobilização e divulgação dos diferentes atos; de outro, a repressão
policial, que espalha pânico e terror, seja nos shoppings, nas ruas e
até mesmo em saguões de hotel, chegando ao ponto de usar armas letais
contra manifestantes, como ocorreu no final de janeiro em São Paulo.
O ano começou com o governo federal investindo ferozmente em uma campanha chamada Vai ter Copa, levantada contra o grito das ruas que diz o inverso: Não vai ter Copa.
O objetivo era abafar o grito cada vez mais recorrente nas ruas e
redes, procurando criar um clima ufanista para a realização do
megaevento. Pois bem, já em meados de janeiro, os rolezinhos paulistas
atravessaram a previsibilidade governamental, mostrando, para quem
quisesse ver, a segregação social e racial presentes nos shoppings
paulistas e na sociedade brasileira. Convocados pelo Facebook,
reunindo milhares de participantes, foram seguidamente dispersados por
seguranças e forças policiais em seu direito de flanar e consumir. Não
foram poucos os casos de estabelecimentos que fecharam as portas,
abrindo mão de faturamento. Boa parte da discussão pública no mês de
janeiro foi ocupada pelos rolezinhos, que chegou a ganhar atenção do
próprio governo federal.
No
final de janeiro, uma articulação de movimentos de várias cidades foi
às ruas para protestar contra a realização da Copa do Mundo. Em São
Paulo, a polícia reprimiu duramente a manifestação, provocando
resistência. Dois fatos foram marcantes: primeiro, a queima de um fusca,
explorada largamente pela mídia e por setores governistas como forma de
tentar criminalizar os manifestantes, quando várias imagens mostram os
manifestantes ajudando os ocupantes do veículo a saírem do carro que
pegava fogo; segundo, um jovem que foi alvejado por três tiros enquanto
fugia de policiais. A atenção da mídia se voltou com muito mais ênfase
para o primeiro fato, mostrando que o pior estaria por vir.
No
Rio de Janeiro, do final de janeiro até o momento ocorreram seis atos
contra o aumento das passagens de ônibus e trens na cidade. A trágica
morte do cinegrafista Santiago, atingido por um rojão durante a quarta
manifestação contra o aumento das passagens, em 6 de fevereiro, em um
verdadeiro cenário de guerra provocado pelas forças policiais, e em
plena Central do Brasil, Centro do Rio, serviu como uma luva para que o
poder constituído procurasse conter a multidão cada vez mais articulada e
consciente de suas possibilidades para atuar como agente de mudança.
Essa
morte lamentável está sendo colocada na conta dos manifestantes, como
forma de tentar estancar as manifestações. As mensagens do poder
constituído, em especial a partir de seus organismos de mídia, é clara:
os manifestantes são assassinos, as manifestações são perigosas. O
interessante é notar como os interesses se encontram. De um lado, a Rede
Globo de Televisão tenta criminalizar os manifestantes e manifestações;
de outro, o Partido dos Trabalhadores acena com a possibilidade de
aprovar uma legislação antiterrorismo ou mesmo alterações mais severas
do Código Penal. No fundo, tudo pela Copa do Mundo, tudo pelo fim das
manifestações.
No
entanto, tudo indica que as manifestações não vão cessar, mesmo com
todo terror midiático e medidas repressivas do governo federal a partir
da morte de um trabalhador no exercício de suas funções. Em 10 de
fevereiro, uma manifestação contra o aumento das passagens reuniu cerca
de mil pessoas.
Em
13 de fevereiro, outra manifestação contra o aumento das passagens teve
pelo menos três mil presenças nas ruas do Centro do Rio, fazendo um
longo trajeto entre a Candelária e a Prefeitura, ente responsável pela
tarifa dos ônibus. E muita água está rolando junto: atos de desagravo,
notas sendo produzidas por diferentes coletivos, reuniões para discutir
conjuntura, assembleias, plenárias, aulas públicas — tudo isso faz
pensar em um ano que subverte o calendário, começando antes do carnaval
dar as caras.
A
brecha democrática está aberta. Temos que lutar para mantê-la. Por mais
que tentem criminalizar os manifestantes, as indignações são múltiplas e
suas manifestações são imprevisíveis. O direito de se manifestar não
pode ser cassado sob pena de mutilação da recente democracia brasileira
que está se constituindo. O que esse início de ano mostra é que as
faíscas de indignação que podem gerar grandes fluxos de pessoas nas ruas
e redes, ambas cada vez mais imbricadas, não podem ser previstas de
antemão. A grande aposta do poder constituído para este ano é a Copa do
Mundo, inclusive em termos de repressão, pois desde o início foi um
evento construído de “cima para baixo”. A Copa ainda continua como
potencial pauta de protestos, mas eis que a realidade mostra sinais de
que a sociedade pode surpreender a qualquer momento com astúcia e
alegria. A revolta está à espreita. Que venha o carnaval, que ele traga a
alegria que temperará as lutas que virão pela frente.
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