PICICA: "A língua portuguesa já veio para cá marcada por
outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território que é
hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10
milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de
Berkeley que estudaram demografia histórica e consideram que ocorreu
no continente americano "a maior catástrofe demográfica da história da
humanidade". Índios foram assassinados porque o colonizador queria
ocupar suas terras e explorar sua força de trabalho."
José Ribamar Bessa Freire
09/02/2014 - Diário do Amazonas
A prova está no dicionário: dos 228 mil verbetes que o Houaiss
apresenta em uma de suas edições, cerca de 45 mil são palavras
emprestadas de línguas indígenas. Alguma dúvida de que o conhecimento
dessa herança linguística é necessário para entender o português que
falamos, e até mesmo para consolidar a nossa identidade?
“Há várias línguas faladas em português”, afirma José Saramago no documentário Língua: vidas em português.
Basta olhar as variedades regionais para dar razão ao escritor. Como
explicar tal diversidade? Parte dela reside no fato de que os índios que
aqui moravam falavam centenas de línguas autóctones diferentes e quando
começaram a usar um idioma que veio de fora – o português – nele
deixaram impressas suas marcas, fruto de uma relação que a
sociolinguística denomina de “línguas em contato”. Como as línguas
indígenas eram diferentes em cada região, as marcas que deixaram não
foram as mesmas.
No início do século XVI, o poeta Sá de Miranda
lançou aos mares do futuro a nau da língua portuguesa, vinculando seu
destino à expansão do comércio marítimo. Durante um par de séculos, o
português passou a ser falado na Índia, na Malásia, na Pérsia, na
Turquia, na África, no Japão e até na China e na Cochinchina. Tornou-se
“língua franca”, isto é, um idioma usado para comunicação entre pessoas
cujas línguas maternas são diferentes – como ocorre hoje com o inglês.
A língua portuguesa já veio para cá marcada por
outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território que é
hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10
milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de
Berkeley que estudaram demografia histórica e consideram que ocorreu
no continente americano "a maior catástrofe demográfica da história da
humanidade". Índios foram assassinados porque o colonizador queria
ocupar suas terras e explorar sua força de trabalho.
As
duas línguas gerais indígenas faladas no Grão-Pará e no Brasil – a
Língua Geral Amazônica (LGA) e a Língua Geral Paulista (LGP) – nomearam
conceitos, funções e utensílios novos trazidos pelos europeus com
adaptações fonéticas e fonológicas: cavalo (cauarú), cruz (curusá), soldado (surára), calça ou ceroula (cerura), livro (libru ou ribru), papel (papéra), amigo ou camarada (camarára).
Os portugueses
começaram a falar essas duas línguas e também tomaram delas muitos
empréstimos, hoje usados pelos brasileiros, que nem desconfiam de sua
origem. Desde o século XVI, os portugueses, que tinham interesse
econômico em comunicar-se com os índios, começaram a usar uma língua de
base tupi que se tornou a Língua Geral. Os missionários fizeram então
uma gramática, explicando como funcionava essa língua e passaram a
usá-la na catequese. Traduziram para ela orações, hinos e até peças de
teatro. Essa e outras línguas legaram uma herança ao português.
De origem tupi é a palavra carioca, nome de um rio que, segundo alguns especialistas, significa “morada(oca)do
acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora como se fosse um
anfíbio. Para outros, é o nome de uma aldeia, a "morada dos índios
carijó". Da mesma origem são os nomes de muitos lugares, como locais
atuais do Rio de Janeiro que conservaram as denominações de antigas
aldeias: Guanabara (baía semelhante a um rio), Niterói (baía sinuosa),
Iguaçu (rio grande), Pavuna(lugar atoladiço),Irajá (cuia de mel), Icaraí(água clara) e tantos outros, como Ipanema, Sepetiba, Mangaratiba, Acari, Itaguaí.
Mas muitos topônimos indígenas adquiriram novos sentidos ou perderam seu sentido original. Os tupinambás denominaram de Itaorna uma
área em Angra dos Reis, onde na década de 1970 foi construída a Central
Nuclear Almirante Álvaro Alberto, cujo solo minado por águas pluviais
provocou deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar. Somente em
fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de
Radioecologia que mede a contaminação do ar na região, descobriram o que
significa itaorna: “pedra podre”.
A
influência das línguas indígenas nas variedades usadas no Brasil não se
resume a uma listagem de palavras exóticas ou "folclóricas". Além do
léxico, existem outras influências entranhadas nas camadas profundas da língua, que penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de "substrato".
No caso da fala individual, o substrato é o
conjunto de transferências adquiridas pela primeira língua, ou língua
materna, depois do contato com uma segunda língua. Do ponto de vista
coletivo, o substrato é o conjunto de vestígios que uma língua, quase
sempre extinta, deixa sobre outra língua, em geral a de um povo invasor.
É a influência da língua perdida sobre a língua imposta, que só se
estabiliza após diversas gerações. Exemplos disto são alguns processos
de modalização do nome, característicos do tupi, que deixaram suas
marcas no português não pela via do empréstimo cristalizado, mas pelo
próprio mecanismo. Tanto na palavra netarana, usada no Pará, quanto em outras do português regional, como sagarana, canarana, cajarana, tatarana, há o uso do sufixo tupi rana (“como se fosse”).
Essas influências ainda não foram completamente
inventariadas, embora algumas tenham sido identificadas. O indigenista
Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti, que era
então falada no sertão de Botucatu (SP). Descobriu que aquela língua, do
tronco Jê, possui sons que os grupos de língua tupi não tem, como o r retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o português quando adquiriram a nova língua. Ele ali permanece até hoje no r paulista, conhecido como r caipira. A atriz Vera Holtz sabe disso.
No
interior do Amazonas, no rio Madeira, há o processo de “alçamento” e
"abaixamento" de vogais, "Alçamento" é o fechamento vocálico, visível em
casos como “popa da canoa”, que se pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato de língua indígena.
Nem
sempre tais mudanças, consagradas pelo uso, foram aceitas pelos
puristas da língua. Da mesma forma que o Império Romano considerou como
“línguas estropiadas” as variedades do latim faladas na Península
Ibérica (que deram origem ao português, ao espanhol, ao catalão, ao
galego, ao mirandês), assim também os portugueses consideraram a
variedade aqui falada como “língua mutilada”.
No Sermão do Ano Bom, em 1642, o jesuíta Antonio Vieira, que viveu no Grão Pará, afirmou que “A língua portuguesa (...) tem avesso e direito; o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais”. Classificou as variedades locais do português de "meias
línguas, porque eram meio políticas [civilizadas] e meio bárbaras:
meias línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras
nações que as pronunciavam, ou mastigavam a seu modo”.
Uma resposta a Vieira está na letra da canção “Língua”, de Caetano Veloso: “Gosto
de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / (…) E deixe
os Portugais morrerem à míngua / 'Minha pátria é minha língua'/ Fala
Mangueira! Fala! / Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó/ O
que quer / O que pode esta língua?/ (…) Vamos atentar para a sintaxe dos
paulistas”.
As línguas indígenas permanecem no substrato do
português e guardam informações e saberes, funcionando como uma espécie
de arquivo. Conhecer a contribuição efetiva que legaram à língua
portuguesa é entender como viviam os povos que as falavam e se apropriar
dessa experiência milenar.
P.S. - Solidariedade irrestrita aos familiares e amigos das três
pessoas assassinadas em dezembro de 2013, cujos corpos foram encontrados
na área indígena Tenharim no sul do Amazonas. No entanto, não podemos
permitir que sentimentos tão profundos como a dor, o luto e a tristeza
pela perda de entes queridos sejam manipulados para destilar ódio,
preconceito racial e violência boçal contra os índios, como pretendem
alguns discursos que circulam nas redes sociais.
Esse tipo de discurso tem alimentado o genocídio que em cinco
séculos trucidou centenas de milhares de índios. Nossa solidariedade às
três pessoas assassinadas só adquire legitimidade se ela se estende à
tragédia vivida pelos povos indígenas da Amazônia. Entendendo que uma
forma de combater o preconceito é conhecer o outro, apresentamos aqui
versão do artigo que publicamos na Revista de História da Biblioteca
Nacional (n° 100, jan. 2014).
Fonte: TAQUIPRATI
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