fevereiro 11, 2014

"Faltava um corpo ou os usos políticos do cadáver", por Camilla de Magalhães Gomes

PICICA: "Esse texto não quer ser uma nova medição do valor dessas mortes. Lamentamos profundamente o falecimento de Santiago Andrade. Com esse texto, contudo, quero apenas levantar voz sobre a invisibilidade de tantas outras mortes e o uso nefasto que se faz agora da tragédia envolvendo o cinegrafista."

Faltava um corpo ou os usos políticos do cadáver

Texto de Camilla de Magalhães Gomes.

Cleonice Vieira de Moraes, de 51 anos, faleceu após inalar gás lacrimogênio de bomba atirada pela Polícia em uma manifestação no dia 20/06/2013.

Marcos Delefrate, 18 anos, morto atropelado durante manifestação também em 20/06/2013.

Fernando da Silva Cândido, 34 anos, morto dias depois de inalar gás lacrimogênio em manifestação em 20/06/2013.

- Ademir da Silva Lima, de 29 anos, André Gomes de Souza Júnior, de 16 anos, Carlos Eduardo Silva Pinto, de 23 anos, Ednelson dos Santos, de 42 anos,  Eraldo Santos da Silva, de 35 anos, Fabrício Souza Gomes, de 26 anos,  Jonatha Farias da Silva, de 16 anos José Everton Silva de Oliveira, de 21 anos, Renato Alexandre Mello da Silva, de 39 anos, Roberto Alves Rodrigues, mortos por ação do BOPE na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, em 24/06/2013, cujos nomes sequer saíram na imprensa. 

Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida, atropeladas no dia 24/06/2013, em Cristalina (GO).

Luiz Estrela, morto por espancamento em 26/06/2013 .

Paulo Patrick, 14 anos, atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina, no dia 26/06/2013.

-  Douglas Henrique de Oliveira Souza, 21 anos, que, acuado pela ação da polícia, caiu do Viaduto José Alencar durante manifestação em 27/06/2013  e faleceu. 

Luiz Felipe Aniceto, 22 anos, que caiu do mesmo Viaduto que Douglas, morreu em 11/07/2013.

Um homem, ainda não identificado, atropelado e morto no mesmo dia 06/02/2014 em que o cinegrafista foi atingido pelo rojão.
Estes são alguns dos mortos até aqui. Mortos invisíveis e inservíveis.

MAS.

Faltava um corpo. Faltava O corpo. Uma pessoa morta pra servir de mártir e justificar a barbárie do Estado.

Amarildo não deu conta. Morto justamente por essa barbárie, não atendia aos interesses da “lei e ordem” contra as “forças oponentes”. Os mortos acima citados não podiam ser computados, caídos pela ação da Polícia.* O jovem negro amarrado ao poste também não. Vivo, mas sem voz, é também objeto do medo que aceita o genocídio como mecanismo de segurança.

Agora sim, agora chegou o cadáver que servirá de exemplo. E que será diariamente vilipendiado como meio de legitimar a violência de antes (com um efeito retroativo que esconde a genealogia por trás da reação popular) a de agora e a que ainda está por vir — e não será pouca.

Os discursos que se seguirão usarão dele e da compaixão pela dor da família e pela morte precoce e estúpida pra criar o medo e trazer a reboque mais repressão. O cidadão de bem, assustado, agora sim, irá se sensibilizar da fatalidade e, como é de ser nesse ciclo da fabricação do medo, estará junto da violência estatal, que defenderá por ser necessária para sua segurança contra os “terroristas”. **
Sim, é, terroristas. Chegou aquele dia em que o termo ganha os jornais e rádios e tvs brasileiros, inserindo o país nessa “onda global” contra o terrorismo que ignora o verdadeiro terrorismo – o de Estado – e anuncia caricaturas de inimigos, rifando a vida dos mais frágeis e usando a morte de um homem como símbolo.

Em comentário na rádio CBN, os jornalistas usaram o termo ao comentar a morte do cinegrafista.

Está só começando. E não é de se surpreender. Cantamos essa bola TANTAS vezes no ano passado.

O desafio é não comprar o novo inimigo que te vendem.

Estado de exceção: FIFA.

GAME: ON. ***

Manifestantes e policiais se enfrentam em estação do metrô do Rio após protesto contra aumento na tarifa. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.
Manifestantes e policiais se enfrentam em estação do metrô do Rio após protesto contra aumento na tarifa. Foto de Domingos Peixoto/Agência O Globo.

* O cinegrafista Santiago Andrade não é o primeiro morto nessa conta. É, no entanto, o primeiro que serve aos fins políticos que a “guerra ao terror” necessita. Antes dele, outros tantos corpos invisíveis foram atirados ao chão, e sobre isso pouco se falou. Que balança se usa pra medir essas mortes e determinar como usá-las (ou não usá-las) politicamente?

**  Depois da morte de cinegrafista, Senado pode votar urgência de projeto que tipifica terrorismo

*** Em sua conta no twitter, a Presidenta Dilma informou que determinou que a Polícia Federal apoie as investigações.
(Esse texto não quer ser uma nova medição do valor dessas mortes. Lamentamos profundamente o falecimento de Santiago Andrade. Com esse texto, contudo, quero apenas levantar voz sobre a invisibilidade de tantas outras mortes e o uso nefasto que se faz agora da tragédia envolvendo o cinegrafista. Agradeço ao Eduardo Sterzi que publicou em seu Facebook uma lista dos mortos até aqui).

Camilla de Magalhães Gomes

Professora, advogada, criminóloga wannabe e feminista. Genótipo + Fenótipo + Teimosia. Sonhando com uma vida mambembe, mais vadia e mais livre. "La frente muy alta, la lengua muy larga y la falda muy corta"

Fonte: Blogueiras Feministas

Nenhum comentário: