PICICA: "A trágica
morte de Santiago deve servir como oportunidade para refletirmos sobre a
violência nos protestos, mas em todas as suas dimensões e expressões. A
violência nas manifestações é um sistema no qual estão interligadas as
ações dos manifestantes, a repressão policial e a cobertura dos meios de
comunicação. O que menos se compreende é que o destaque desigual dado à
destruição de propriedade, à violência dos manifestantes e à violência
da polícia seja um elemento central do problema."
O bloco dos Desobedientes
Pablo Ortellado
Há relação entre a morte do cinegrafista da Band e os black blocs?
A
trágica morte de Santiago Andrade está sendo mobilizada para que
medidas mais duras sejam tomadas para reprimir as manifestações e o
Black Bloc em particular. Mas haveria alguma relação entre a morte do
cinegrafista e os black blocs? Os dois manifestantes que assumiram a
autoria do disparo do rojão já declararam que não participam do Black
Bloc. Não obstante, o Black Bloc está no centro do discurso contra a
violência nas manifestações. Mas de que forma e em que medida esses
manifestantes são violentos?
A destruição
de propriedade praticada pelo Black Bloc nasceu nos EUA a partir de um
debate sobre os limites táticos da desobediência civil não violenta. A
desobediência civil não violenta tinha se estabelecido como paradigma
dos movimentos sociais daquele país desde a vitória do movimento pelos
direitos civis nos anos 1960. A tática consistia em desobedecer a uma
lei injusta e não reagir à violência do Estado que tentava defendê-la.
Assim, no movimento pelos direitos civis dos negros, as imagens
divulgadas pela imprensa de manifestantes de uma causa justa sofrendo a
repressão violenta do Estado geraram indignação da opinião pública, que
pressionou pelo fim da segregação racial.
Nos anos
1990, uma parte do movimento social norte-americano entendia que essa
tática já não funcionava porque os meios de comunicação tinham se
tornado insensíveis à violência policial. Sem a cobertura da violência
da polícia, não havia como os ativistas sensibilizarem a opinião
pública. Foi assim que alguns deles decidiram importar da Europa o
conceito do Black Bloc (grupos de autodefesa dos movimentos sociais na
Alemanha) e ressignificá-lo à luz do debate norte-americano.
Os black
blocs nos Estados Unidos se voltaram então para a destruição de
propriedade privada de grandes empresas transnacionais com o intuito de
recapturar a atenção dos meios de comunicação e comunicar seu repúdio ao
neoliberalismo, no contexto da luta contra os acordos de
livre-comércio. É preciso enfatizar que havia o entendimento por parte
deles de que essa destruição de propriedade não rompia totalmente com a
tradição de não violência, já que a destruição era orientada a coisas e
não a pessoas. Na verdade, a tática era frequentemente discutida na
chave de uma intervenção autoexpressiva, na interface da política com a
comunicação e a estética.
O sucesso
parcial da tática, ao capturar a atenção da imprensa, fez com que ela se
espalhasse pelo mundo. Aqui, a tática tem sido empregada já há alguns
anos segundo os princípios estabelecidos pelos primeiros black blocs
norte-americanos: não atacar pessoas nem destruir propriedade dos
pequenos comerciantes. Até onde sei, há apenas duas pesquisas empíricas
de maior fôlego sobre os black blocs no Brasil. Uma em São Paulo,
conduzida pelos professores Rafael Alcadipani e Esther Solano e outra em
Belo Horizonte, pelo sociólogo Rudá Ricci. Ambas apontam que os
manifestantes do Black Bloc entendem que a tática utilizada por eles é
não violenta e de caráter fundamentalmente simbólico; entendem também
que o ataque a pessoas e pequenos comércios deve ser condenado.
É por esse
motivo que vincular a morte de Santiago aos black blocs não faz sentido,
assim como não faz sentido tratar como uma violência da mesma natureza a
destruição de vidraças de bancos e o ataque violento a seres humanos,
parta ele de manifestantes ou da própria polícia. Há pelo menos sete
outros casos de cidadãos que, desde junho de 2013, morreram ao fugir de
ataques da polícia a manifestantes. A imprensa quase não cobriu essas
mortes – como se elas não existissem. Há, na verdade, uma gradação de
destaque na cobertura dos protestos: em primeiro lugar, a violência dos
manifestantes; em seguida, a destruição de propriedade; por último e nem
sempre citados, a violência da polícia e a causa das manifestações.
Essa desproporção está na raiz do fenômeno Black Bloc, que busca atrair a
atenção dos meios de comunicação para comunicar uma insatisfação
política.
A trágica
morte de Santiago deve servir como oportunidade para refletirmos sobre a
violência nos protestos, mas em todas as suas dimensões e expressões. A
violência nas manifestações é um sistema no qual estão interligadas as
ações dos manifestantes, a repressão policial e a cobertura dos meios de
comunicação. O que menos se compreende é que o destaque desigual dado à
destruição de propriedade, à violência dos manifestantes e à violência
da polícia seja um elemento central do problema.
PABLO ORTELLADO É FILÓSOFO E PROFESSOR DA ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (EACH-USP)
fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-bloco-dos-desobedientes,1130747,0.htm
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