PICICA: "Desde
o início de seu ensino, Lacan tomou distância de uma concepção do
trauma como simples experiência do acidente. «Pois, afirmar da
psicanálise e da história que, como ciências, elas são ciências do
particular não quer dizer que os fatos com que elas lidam sejam
puramente acidentais, senão factícios, e que seu valor último se reduza
ao aspecto bruto do trauma.» 1. Assim, o trauma não pode ser tomado sem a estrutura.
Esse
ponto pode ser especialmente verificado nos traumatismos de massa. Com
efeito, mesmo as contingencias sofridas por um grande número de pessoas
ressoa de modo único para cada um. Esse é o ponto crucial da abordagem
psicanalítica do tratamento dos traumas de massa2,
como aqueles que foram experimentados pelos habitantes de Nova Iorque
em 2001 e os de Madri em 2004: visar o singular do sujeito."
O trauma, generalizado e singular
Éric Laurent |
Desde
o início de seu ensino, Lacan tomou distância de uma concepção do
trauma como simples experiência do acidente. «Pois, afirmar da
psicanálise e da história que, como ciências, elas são ciências do
particular não quer dizer que os fatos com que elas lidam sejam
puramente acidentais, senão factícios, e que seu valor último se reduza
ao aspecto bruto do trauma.» 1. Assim, o trauma não pode ser tomado sem a estrutura.
Esse
ponto pode ser especialmente verificado nos traumatismos de massa. Com
efeito, mesmo as contingencias sofridas por um grande número de pessoas
ressoa de modo único para cada um. Esse é o ponto crucial da abordagem
psicanalítica do tratamento dos traumas de massa2,
como aqueles que foram experimentados pelos habitantes de Nova Iorque
em 2001 e os de Madri em 2004: visar o singular do sujeito.
Duas cidades traumatizadas
Esse
tratamento dos traumas de massa, vividos em grupo, apresenta múltiplas
fases. Num primeiro tempo, trata-se de articular o grupo e o indivíduo:
«por um tempo, é determinante manter o que constituiu na situação
concreta, o grupo, para poder desamarrá-lo e não desfazê-lo» 3.
Podemos
também observar esse aspecto no que nossa colega Maria Cristina Aguirre
nos conta a respeito de seu trabalho, depois de 11 de setembro de 2001,
em Nova Iorque4. Enquanto voluntária no trabalho de ajuda psicológica aos traumatizados, ela foi designada para o Kid’s Corner,
que acolhia as crianças que apresentavam sintomas relacionados aos
atentados terroristas. Ela evoca o caso de uma menininha de três-quatro
anos «cujo nível de angústia era tal que ela era como que tendo um
empuxo a correr por todos os lados, deixando os policiais e os agentes
do FBI loucos, enquanto os pais não conseguiam preencher os formulários
necessários para dar queixa…» Ela testemunha : «Eu me dediquei a
trabalhar com ela. Eu a acompanhei nessa fuga insensata; ganhei sua
confiança e, pouco a pouco, obtive certa estabilização. O momento chave
foi a instalação de uma espécie de fort-da simbólico: ela ia até
seu pai e sua mãe, que ela tocava, e depois voltava para onde eu estava.
No final do dia, ela pode desenhar e estabelecer contato com as outras
crianças.»5
Num
primeiro tempo, as reações ao traumatismo são também grupais, segundo
estilos «simbólicos» ou «de pânico» diversos. Na Espanha, as
manifestações das multidões compactas ocupando praças e avenidas, em
Madri como no resto do país, fazem parte da cultura, aquela da rua, das
manifestações, do paseo. O luto espanhol é maciço e
exteriorizado. Em Nova Iorque, a reação foi muito diferente. O processo
de individuação passou imediatamente para o primeiro plano. Processos de
«des-massificação» responderam aos mortos indistintos. Estabeleceu-se a
lista precisa dos nomes, testemunhos dos parentes, dos amigos, ligados
às velas colocadas ao longo das paliçadas de Ground Zero ou sobre
as grades da igreja de Saint-Paul, que fica ali perto. O luto de massa
se apresentava nas telas da televisão, pois a rua americana é a
televisão. Para além da diferença de estilo simbólico, houve uma
manifestação «de pânico». Manifestação de uma emoção, de um afeto, numa
reação difícil de decifrar. O acontecimento e seu alcance excedem os
comentários que tentam dar conta deles. Os comentaristas políticos e as
«classes falantes» em geral tentaram reduzir o sem sentido produzido por
esse acontecimento, mas o fato resiste, verdadeiro buraco no discurso.
O
horror é «traumatismo», no sentido clínico, na medida em que temos que
lidar com mortes, feridas que deixaram sequelas físicas e psíquicas, mas
também na medida em que ele cria um buraco no discurso comum. Quer seja
no nível coletivo ou no nível singular, encontramos a impotência do
discurso em ler o acontecimento. É essa impotência comum que o post-traumatic stress disorder, do DSM V tenta reduzir a um fundamento biológico, universal, transcultural.
A generalização do trauma
A clínica clássica do trauma foi estendida, no DSM,
durante o último quarto do século 20. Essa extensão decorre de um
fenômeno situado na interface entre a descrição científica do mundo e
aquilo que a excede.
Na
medida em que a ciência avança na descrição de cada uma de nossas
determinações, desde a programação genética até a programação do meio
ambiente global, passando pelo cálculo dos riscos possíveis, ela faz
existir uma causalidade determinista universal. O mundo, mais que como
um relógio, surge como um programa de computador. É nosso modo atual de
ler o livro de Deus. Então surge o escândalo do contingente, do
impossível de programar, do trauma. É na medida em que nos beneficiamos
de uma melhor descrição científica do mundo que toma consistência a
irrupção de uma causa não programável. Tudo o que não é programável se
torna trauma. Ao ponto que alguns querem considerar a própria
sexualidade como um post-traumatic stress disorder. Nosso corpo não é feito para ser sexuado, como mostra o fato de que homens e mulheres se comportam pior do que os animais.
As
tentativas de dissolução do sexual num trauma nos lembram que a
psicanálise freudiana foi fundada precisamente sobre o abandono da
teoria do trauma da sedução. Entre 1895 e 1897, Freud pensou, com
efeito, poder reduzir a sexualidade a um mau encontro. Em seguida ele
abandonou essa teoria e pensou que é na sexualidade como tal que era
preciso encontrar a causa necessária do mal estar.
Só
vinte e cinco anos mais tarde, depois da primeira guerra mundial, é que
Freud deu um sentido novo aos acidentes traumáticos e às suas
consequências patológicas. Ele fez deles, então, um exemplo do fracasso
do princípio do prazer e um dos fundamentos da hipótese da pulsão de
morte. Freud deve ter conhecido a síndrome traumática de guerra, pois
ele foi consultado como expert durante a guerra e logo depois.
Jean-Claude Maleval6 lembra quanto Freud tomou partido contra os métodos utilizados pela psiquiatria alemã da época para tratar os traumatizados7.
A
segunda guerra mundial continuou a tendência liberal do tratamento das
neuroses de guerra. Nós aprendemos, nessa extensão, que contrariamente
ao que Freud pensava em 1918, o fato de ter sido ferido fisicamente não
protege de uma neurose traumática. Oitenta por cento dos feridos graves
apresentavam, e isso até muitos anos depois do acontecimento, síndromes
de repetição, distúrbios fóbicos ou depressivos. Foi sobretudo o
pós-guerra do Vietnam que mudou a concepção do tratamento do trauma em
psiquiatria8.
Não foi senão em 1979 que os veteranos foram recenciados, avaliados,
inseridos em programas de reabilitação e que a sociedade americana se
reconciliou com seus soldados traumatizados. Os psiquiatras americanos,
altamente mobilizados em torno desse problema, revalorizaram o conceito
de stress e a particularidade da reação que ele engendra. Foi a
importância da mobilização dos psiquiatras e psicólogos americanos sobre
o tema social da reinserção que fez o trauma sair do círculo estreito
da psiquiatria militar para se tornar uma perspectiva geral da
aproximação de fenômenos clínicos ligados às catástrofes individuais ou
coletivas da vida social.
O
segundo fator que leva à extensão da síndrome é a patologia própria às
megalópoles da segunda metade do século 20. Estas agem num duplo
registro. Por um lado, elas engendram um espaço social marcado por um
efeito de irrealidade. O admirável pensador Walter Benjamin9
chamava esse efeito de «o mundo da alegoria», próprio à cidade grande,
onde o reino da mercadoria, da publicidade, do signo, mergulha o sujeito
num mundo artificial, numa metáfora da vida. Mídia e televisão
generalizaram esse sentimento de irrealidade, de virtualidade. Por outro
lado, a aldeia global, lugar do artefato, é também o lugar da agressão,
sobretudo sexual, da violência urbana, do terrorismo, etc.
Foi
nos Estados Unidos, inicialmente, que os grupos feministas quiseram
fazer reconhecer o estupro como um trauma, não mais como um delito de
direito comum, mas um crime.
Certas categorias profissionais também demandaram reparação pelo stress
que elas sofriam. Por uma espécie de careta da história, o sindicato
dos condutores de trens alemães pediu reparação pelo stress produzido
pelo fato de que a Alemanha é o país da Europa onde se suicida mais
pulando sob os trens (um suicídio a cada cinco minutos).
Dois
fatores participam, portanto, da extensão da clínica do trauma. Por um
lado, a experiência psiquiátrica dos traumas de guerra nos países
democráticos, quer dizer, nos países no qual não se abandona seus
cidadãos à morte sem palavras. Por outro lado, levar em conta a
patologia civil do trauma estende a definição da experiência
traumatizante àquela que comporta o encontro com um risco importante
para a segurança ou para a saúde do sujeito. A lista dos perigos mistura
catástrofe técnica, acidente individual ou coletivo, agressão
individual ou atentado, guerra ou estupro.
A energia do trauma
Desde
1895, Freud liga o núcleo da neurose e a síndrome de repetição. Ele
menciona, em sua descrição da histeria de angústia, o despertar noturno
seguido de uma síndrome de repetição com pesadelos. É só depois do
isolamento do puro instinto de morte que ele separará os sonhos de
repetição e a histeria, e falará, na síndrome de repetição traumática,
de um fracasso da repetição neurótica, das defesas, do escudo
para-excitação.
Em
1926, quando modifica o sentido do «trauma do nascimento» de Otto Rank,
Freud traz as concepções energéticas que ele havia anteriormente
correlacionado com momentos de angústia diante das perdas essenciais.
Freud distingue a angústia sentida no nascimento e que deriva,
propriamente falando, do traumatismo da perda do objeto materno. Ele
ousa fazer da perda necessária da mãe o modelo de todos os outros
traumas10.
É sobre esse fundo que é preciso escutar o aforisma que figura no texto
sobre «A denegação» de 1925, quase contemporâneo do precedente, onde o
objeto não deve ser encontrado, mas sempre «reencontrado»11, isto é, encontrado sobre o fundo de uma perda primordial.
Lacan
sublinhou que é no movimento mesmo em que comunicamos nossas
experiências de perda, que fazemos a descoberta dos limites dessa
comunicação, a saber, que a linguagem é um muro do qual nós nunca
saímos. Na borda da estrutura de linguagem, um certo número de fenômenos
clínicos decorrem da categoria do real. Esses fenômenos estão ao mesmo
tempo na borda e no centro desse sistema da linguagem. O trauma decorre,
portanto, de uma topologia que não opõe simplesmente o interior e o
exterior. O trauma, a alucinação, a experiência de gozo, a angústia, são
fenômenos que tocam no real e nos arrancam de nossa tendência a
considerar a vida como um sonho, para continuar a dormir.
Os lugares do trauma
Como
abordar, mais precisamente, a topologia do trauma ? Lacan, desde 1953,
propõe, para dar conta disso, inscrever a linguagem não sobre uma
superfície, mas sobre um toro, «na medida em que sua exterioridade
periférica e sua exterioridade central constituem apenas uma única
região»12.
Esse modelo apresenta a particularidade de designar um interior que está também no exterior13. Em primeiro lugar, portanto, o trauma é um buraco no interior do simbólico. O simbólico está aqui colocado como o sistema das Vorstellungens
através das quais o sujeito quer encontrar a presença de um real. O
simbólico inclui aí tanto o sintoma em seu envoltório formal quanto
aquilo que não chega a fazer sintoma, ou seja, esse ponto de real que
permanece exterior a uma representação simbólica, quer ela seja sintoma
ou fantasia inconsciente. Ele permite figurar o real em «exclusão
interna ao simbólico». «Assim, o sintoma pode aparecer como um enunciado
repetitivo sobre o real […] O sujeito não pode responder ao real a não
ser fazendo dele sintoma. O sintoma é a resposta do sujeito ao
traumático do real.»14
Esse ponto de real, impossível de se absorver no simbólico, é a
angústia entendida num sentido generalizado, que inclui a angústia
traumática.
A
posição do psicanalista que se deduz desse modelo é dupla. A princípio,
ele é aquele que vai dar novamente sentido àquilo que não o tinha na
história do sujeito. No acidente mais contingente, a restituição da
trama do sentido, da inscrição do trauma na particularidade inconsciente
do sujeito, fantasia e sintoma, é curativa. Essa possibilidade de
apagamento do trauma é aquela à qual Lacan faz referência em «Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise» quando ele escreve que «o
primeiro acontecimento retornará a seu valor traumático, suscetível de
um progressivo e autêntico apagamento, se não reavivarmos expressamente
seu sentido» 15.
Em
seguida, o psicanalista é aquele que «empuxa» a falar. Nós encontramos
aí uma função do traumatismo enquanto que ele tem como consequência
surpreendente deslocar os limites do discurso. Fala-se com as pessoas
que não se falava e de coisas das quais não se falava. Membros de uma
mesma família, que haviam se tornado estranhos um com o outro, reatam.
Novos laços se criam. Nesse segundo sentido, o analista é um parceiro
que traumatiza o discurso comum para autorizar o discurso do
inconsciente. O analista sabe que a linguagem, em seu fundo mais íntimo,
é fora de sentido.
Em
seu curso intitulado «Causa e consentimento», Jacques-Alain Miller nota
que «o sujeito do significado é um traumatizado pelo significante»,
isto é, traumatizado por aquilo que Lacan nomeará da a «não-inscrição da
relação sexual» $ depois de tê-lo chamado, num texto anterior de
«trauma sexual». «Entre o significante enigmático do trauma sexual e o
termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a
centelha que fixa num sintoma[…] a significação, inacessível ao sujeito
consciente onde ele pode se resolver.»16
A originalidade da psicanálise no conjunto das terapias do trauma pela
palavra é a de testemunhar da aptidão para a invenção do sintoma,
solução que responde ao trauma da língua. A manifestação da loucura
ordinária do mundo nos habituou, desde então, a viver com outras formas
de um trauma onipresente. Ele não provoca a angústia social generalizada
(tag : para distúrbio ansioso generalizado), em linguagem dsm, mas uma
angústia «pré-traumática», que nos torna aptos a nos dirigir, um a um, à
psicanálise a fim de, para além da angústia, encarar nosso pedaço de
real.
Tradução: Cristina Drummond
Revisão: Pierre-Louis Brisset
1 Lacan J., «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise», Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 262.
2 Briole G., «Despues del horror, el traumatismo», El Psicoanalisis, n° 7, juillet 2004, p. 57-67.
3 . Ibid., p. 64.
4 . Aguirre M. C., «Septiembre 11, 2001 : Una experiencia», El Psicoanalisis, n° 7, pp. 68-70.
5 Ibid., pp. 68-69.
6 Maleval J.-C., «De l’extension du champ psy et de ses clivages», Cliniques méditerranéennes, n°71, 2005, p. 233-247.
7 . Freud, S., «Traitement électrique des névrosés de guerre», Résultats, idées, problèmes I, 1890-1920, Paris, puf, 1984, p. 251-252.
8 . Briole, G., Lebigot, F., Lafont, B., Favre, J.-D. Vallet, D., Le traumatisme psychique : rencontre et devenir, publié par le Congrès de Psychiatrie et de Neurologie de langue française, Paris, Masson, 1994.
9 . Benjamin W., «Paris capitale du xixe siècle» (1935), Œuvres, Tome iii, Gallimard, 2000, p. 59.
10 Freud S., Inhibition, symptôme et angoisse,
Paris, puf, 1973, pp. 99-100. «A situação na qual ele sente a ausência
da mãe, sendo mal compreendida, não é para ele uma situação de perigo,
mas uma situação traumática […]. A primeira condição determinando a
angústia que for introduzida pelo próprio eu (moi) é, portanto, aquela
da percepção da perda do objeto[…]. A situação traumática criada pela
ausência da mãe se afasta sobre um ponto decisivo da situação traumática
do nascimento. No momento do nascimento, com efeito, não havia objeto
cuja ausência se pudesse sentir.»
11 Freud S., «La négation», Résultats, idées, problèmes II, 1921-1938, Paris, puf, 1985.
12 Lacan J., «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise», Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 322.
13 Luminet J.-P., L’Univers chiffonné,
Paris, Fayard, 2001, p. 325. O resultado foi conseguido a partir da
definição de uma grandeza chamada «gênero» de uma superfície fechada
desde 1813 por Simon Lhuilier. «Pode ser também definido por qualquer
superície fechada, e ele é chamado “gênero”. O gênero do toro é 1, o da
esfera é 0, o de uma esfera munida de T punhos é T.»
14 Miller J.-A., «Le Séminaire de Barcelone sur Die Wege der Symptombildung», Le symptôme charlatan, Paris, Seuil, 1998, p. 51.
15 Lacan J., «Função e campo da fala…», op. cit., p. 262.
16 . Lacan J., «A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud», Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 522.
Fonte: XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
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