PICICA: "A
população nas ruas que começou a gritar pelo fim da policia militar
(“não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”),
reagiu quase inconscientemente ao fim de uma das quatro polícias
militares ainda em vigor no mundo. Dessas, somente a Turquia é uma
democracia e compartilha da militarização de sua polícia, curiosamente,
um dos países que faz parte do ciclo global de mobilizações, deflagrado
em 2013, com intensas mobilizações igualmente a partir de uma questão
urbana, a derrubada de um parque no centro de Istambul. Ademais, a ONU
desde 2012 já recomendou firmemente que o Brasil desmilitarizasse sua
polícia, demonstrando a importância e visibilidade da questão em um
panorama internacional3."
Com, contra e para além da violência policial
26/02/2014
Por Simone da Silva
Por Simone da Silva Ribeiro Gomes, doutoranda em sociologia (IESP-UERJ), para o dossiê UniNômade
–
Com, contra e para além da violência policial – Reflexões a partir de um turbulento junho.
A
centralidade do debate na esfera pública sobre a desmesura da violência
policial a partir das manifestações de junho, ocorridas no Brasil,
parece essencial para discutir a nossa sociedade contemporânea. As falas
sobre a problemática da polícia, quer sobre a desmilitarização; sua
ação nas favelas e periferias – cariocas, mas também em um quadro mais
amplo, nacionais; número de mortos e a perspectiva internacional, com
dados das mortes por ação da polícia comparáveis à países em guerra; os
autos de resistência, figuram atualmente na agenda de discussão depois
do que ficou conhecido como “jornadas de junho”.
Tendo
ocorrido a partir da metade de 2013, impulsionados pela pauta da
(i)mobilidade urbana nas grandes metrópoles brasileiras, tendo a figura
do MPL – Movimento pelo Passe Livre, como um dos protagonistas, as
manifestações de rua que voltaram ao cotidiano democrático nacional
sofreram de um processo de multiplicação de pautas poucas vezes antes
visto. A violência policial foi a mais emblemática dessas, atraindo
olhares principalmente da mídia internacional, mas curiosamente pouco
figurando na grande mídia nacional, cuja atenção foi capturada pela
presença dos “black blocs” tupiniquins, jovens encapuzados e vestidos de
preto, gritando as palavras de ordem: “poder popular”, envolvidos em
episódios de quebras de vidraças de banco – nisso, afinal, consistiria a
tática importada da Alemanha da década de 80 – foram apontados como os
grandes algozes da mobilização espontânea das massas.
Pensando
com a violência policial, partimos da contingência do desaparecimento
do pedreiro de 47 anos, Amarildo de Souza, na favela – pacificada – da
Rocinha, em julho desse mesmo ano, que trouxe à tona o estado brutal
policial que toma conta das favelas e periferias do Rio de Janeiro – mas
não exclusivamente dessa cidade. As palavras de ordem “cadê o
Amarildo”, eram onipresentes nas ruas, auxiliadas inclusive pela
projeção em edifícios no entorno das mobilizações de sua foto e dos
dizeres “onde está o Amarildo?”. O pai de sete filhos, ainda em 2013
ficamos sabendo, tinha sido assassinado por policiais da UPP- Unidade de
Polícia Pacificadora1,
o que resultou na discussão sobre o excesso de violência da policia
militar brasileira, mas também sobre a fragilidade do processo de
pacificação das favelas cariocas, deflagrado em 2008.
Ao
desnudar a lógica da UPP, em que a base policial deveria proteger os
habitantes das favelas da violência do tráfico de drogas, mas, em uma
realidade demasiado perversa, são submetidos à outra ordem, que inclui
humilhações, desaparecimentos e outras violências, o rei ficou nu, seria
afinal nossa polícia sempre tão truculenta e demoramos a perceber?
Dessa forma, a pauta das manifestações, desde junho incluiu a violência
policial, baseada principalmente nas demonstrações de força sofridas nas
ruas, reflexos da truculência habitual das forças policiais nas favelas
e periferias das grandes cidades.
Casos como o do Amarildo, cuja ossada não foi encontrada até o ano seguinte2,
evidenciaram para as classes média e alta do país o estado de
brutalidade policial a que vivem submetidos os habitantes mais pobres
das grandes cidades. Sua concomitância com o momento de grandes
mobilizações nas ruas mostrou também, o latente despreparo da polícia
para lidar com quem devia proteger. Foi a partir das cenas tornadas
frequentes de abusos de poder policial; falta de critério no uso de
armamento não letal nas ruas; balas de borracha disparadas
indiscriminadamente; bombas de gás lacrimogêneo cujos efeitos deletérios
foram sentidos por muitos dos que participavam dos atos, até as prisões
arbitrárias – de jovens, negros e pobres, em sua maioria, que a pauta
da desmilitarização da polícia ganhou corpo.
A
militarização da polícia é uma herança colonial, emblema de um país
cujas instituições responsáveis para manejar os conflitos não foram
reformadas desde o século XIX, tendo o regime republicano instaurado em
1889, pouco modificado dinâmicas desiguais sacramentadas em leis. As
instituições coercitivas, desde esse período, sempre identificaram as
manifestações de rua como uma ameaça à ordem pública. Nesse sentido, uma
polícia de rua submetida ao decoro militar, com o treinamento para a
guerra, no bojo de uma combinação teórica na qual haveria um inimigo a
ser aniquilado, e prática, em que se defronta com seus concidadãos na
rua, mostra os perigosos efeitos de seu treinamento em um espaço civil.
A
população nas ruas que começou a gritar pelo fim da policia militar
(“não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”),
reagiu quase inconscientemente ao fim de uma das quatro polícias
militares ainda em vigor no mundo. Dessas, somente a Turquia é uma
democracia e compartilha da militarização de sua polícia, curiosamente,
um dos países que faz parte do ciclo global de mobilizações, deflagrado
em 2013, com intensas mobilizações igualmente a partir de uma questão
urbana, a derrubada de um parque no centro de Istambul. Ademais, a ONU
desde 2012 já recomendou firmemente que o Brasil desmilitarizasse sua
polícia, demonstrando a importância e visibilidade da questão em um
panorama internacional3.
No
entanto, apesar de a violência policial e das falhas das políticas de
segurança tupiniquim já serem denunciadas há anos por movimentos sociais
e organizações internacionais, no momento em que “o gigante acordou”, a
violência nas manifestações surgiu de forma dicotômica: na qual os
atores seriam os vândalos (na representação da grande mídia) X os
policiais (segundo os manifestantes, nas ruas). Uma evidência para isso
foi o lema “sem violência”, que ecoou nas manifestações, reverberando
após o acirramento da repressão policial indiscriminada, mas também
referia-se aos “vândalos”, na busca da pacificação das mobilizações.
É
importante entender, para além da violência policial patente nas
mobilizações iniciadas em junho, em que o passado ditatorial brasileiro
vem à tona, no seu frágil relacionamento entre polícia e cidadãos, onde o
anterior funciona a partir do uso da força e controle territorial. O
debate público sobre a violência policial, entretanto, precisa
incorporar os elementos externos às manifestações, sobretudo a licença
para matar de algumas polícias, como demonstram os dados da HRW – Humans
Right Watch, de 2013, no qual, oficialmente, a polícia carioca foi
responsável por 214 mortes e a de São Paulo por 251, somente nos
primeiros seis meses de 20124.
A alegação costumeira de “autos de resistência”, ou seja, mortes em
confronto com a polícia mascara o número oficioso do genocídio
perpetrado pela força policial discricionária nas favelas e periferias.
Finalmente,
pensando contra a violência policial, alguns elementos trazidos para o
debate apontam para as raízes históricas da legitimação da violência
brasileira, em que o Brasil teria sido incapaz de pacificar o espaço
público. A segurança pública foi pensada a partir de conflitos de classe
durante boa parte do século XX, mas atualmente o debate autonomizou-se.
A partir do medo e da insegurança expressados nas ruas em 2013, foram
desveladas as dinâmicas de poder e arbitrariedade da polícia em
distintos espaços. É a partir daí que lutamos e resistimos,
cotidianamente, nas favelas e periferias das grandes cidades, mas também
em suas ruas….venceremos!
–
NOTAS
1O
inquérito demonstrou que Amarildo foi torturado e morto pela polícia,
resultando no indiciamento de 10 policiais. Para saber mais: http://www.nytimes.com/2013/10/03/world/americas/brazilian-officers-will-be-charged-with-torture-and-murder.html?_r=2&
2 Ao menos até Fevereiro de 2014, momento em que escrevo esse artigo.
3Para saber mais: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1097828-paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.shtml
4Segundo a HRW- Humans Right Watch, em seu relatório de 2013, disponível em: http://www.hrw.org/world-report/2013/country-chapters/brazil?page=1
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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