PICICA: "Uma
vez que a questão da “confiança” dos cidadãos com relação a sua “classe
política”, ou a questão da confiança das sociedades quanto a seu
porvir, é, tanto na Europa quanto na América Latina, um tema atualmente
recorrente, eu gostaria de apontar o modo como Spinoza poderia nos
ensinar sobre a questão da “confiança” política."
Sobre a confiança política: construir a Hilaritas democrática
02/02/2014
Por Laurent Bove / Negri
Por Laurent Bove, em 23/1/14, na Euronomade, | Trad. Bernardo Bianchi
Apresentação por Toni Negri | Trad. Talita Tibola e Bruno Cava (UniNômade Brasil)
Texto
da palestra proferida pelo filósofo Laurent Bove no X Colóquio
Internacional Spinoza, realizado no Rio de Janeiro, de 18 a 22 de
novembro de 2013, com apresentação, escrita posteriormente, por Antonio
Negri. [foto: catracaço na Central do Brasil, 30/1/14, de bol.com.br]
–
A medida comum do devir-democracia (Toni Negri)
Ao
apresentar esse texto de Laurent Bove, belíssimo e um pouco paradoxal,
eu gostaria antes de tudo de evocar o lugar em que eu o ouvi apresentar.
Estávamos no Rio de Janeiro, numa vila-hotel (na qual estava sendo
realizado o colóquio espinozista da America Latina) acima da cidade, de
onde se estava sob o domínio de uma das mais formidáveis e encantadoras
paisagens metropolitanas oferecidas aos olhos e à região. Embaixo havia a
cidade – no caso, o Rio – ainda atravessada pelas tensões e pelas
polêmicas, pela quebra da frente democrática que as lutas
multitudinárias de junho/julho haviam provocado. Essas rupturas, não
pouco significativas, tocam a própria definição de “democracia” e
ecoavam com força no colóquio. Tratava-se, portanto, de discutir a
democracia, de tomar posição, grosso modo, entre quem considera a
democracia possível somente no âmbito de um exercício de soberania e
quem considera a democracia como produto de lutas e das máquinas
constituintes da multidão. O texto de Laurent (concebido e redigido
muito antes dos acontecimentos do Rio) não intervinha decerto no debate
político em curso e nele não assumia posição, mas era, por assim dizer,
por ele atraído, reordenava a discussão.
E
a reordenava justamente a partir daquele que não era somente o problema
teórico e político, mas também a tonalidade passional do debate, a sua
característica dramática – pois a experiência política, diante de
eventos do tipo e da gravidade daqueles brasileiros, é sempre assim.
Spinoza, nos lembra Bove (e já o havia lembrado em seu longo trabalho de
leitor do pensamento spinozista – veja-se sobretudo: La strategia del conattus. Affermazione e resistenza in Spinoza,
2002) trabalhava sobre as paixões. E era portanto sobre esse terreno
que o debate (neste ponto não mais somente brasileiro, se alguma vez já o
foi) era conduzido: não mais soberania e democracia, mas a democracia e
as suas paixões/virtudes (vale dizer, confiança, pesquisa da segurança e
desejo-medida-exercício da igualdade, pietas, fortitudo, e generosidade, e ainda a melancolia e a hilaritas
… além da indignação e do medo …). Hoje esse método de construção da
crítica social e política, a partir das análises das paixões é novamente
superlativamente presente aos estudiosos: Foucault apresentou-o
magistralmente nas suas Lições. E não é preciso esquecer quanto
aquele método, nas suas determinações classistas (que significam paixões
e subjetivações nas lutas dos pobres, dos excluídos, dos explorados),
estivesse presente em Marx, sobretudo nos seus Escritos historicos.
Nós, que sobre aqueles escritos nos formamos, depois descemos a Spinoza
para encontrar nele uma forte matriz. É naquela mesma que Bove — nessa
nova exposição — lança luz, extraindo, do ponto de vista militante, as
paixões constituintes da democracia.
Aqui
não é o lugar para repercorrer de forma exaustiva e muito menos para
criticar as teses de Bove. Resumindo delas o tema central ao qual me
filio, se dirá que em Spinoza a democracia é a única forma de governo
que é compatível com homens livres. E que essa demoracia baseia-se não
sobre “confiança política que os homens concedem àqueles que os governam
e que, essencialmente, os dominam” mas sim sobre “uma concepção nova,
original, de uma confiança imanente aos próprios fundamentos de
segurança do Estado; uma confiança política que se constroe e se
perpetua sobre a base de instituições democráticas, munidas de
contrapoder”. O segundo tema essencial diz respeito ao conteúdo das
ações do governo. Este, enquanto produto da multidão, enquanto
qualificado como governo democrático, não pode senão ser governo da
igualdade. A igualdade é medida comum da democracia. Não existe
democracia sem uma medida comum material, igualitária sobre a base da
qual à multidão seja permitido não apenas exprimir politicamente a sua
confiança (e o seu contrapoder) diante de um governo, mas também, sobre
essa base, construir instituições. Sem a igualdade, escreve Spinoza, a
liberdade comum desmorona em ruína. E aqui, terceiro tema, terceiro
elemento, tanto paradoxal quanto potente, é na Hilaritas (definida por Spinoza como afeto de alegria conjunta, ao mesmo tempo, da alma e do corpo) que a democracia se afirma. A hilaritas
(ou excitação prazerosa) ocupa todo o corpo e aumenta a potência de
agir, até aquele altíssimo nível que vê todas as partes do corpo e da
mente alcançarem equilíbrio; e além disso, é a hiláritas, um
afeto sempre bom, que não pode ter excesso; esta nos oferece por
excelência, a medida das paixões democráticas — uma medida de igualdade
no corpo político, no qual funcionam juntos o desejo de autonomia de
qualquer um e o prazer de viver juntos, de fazer Corpo juntos, na
igualdade. Esta dimensão materialista e sensual ressalta plenamente a
hilaritas como afeto posto contra cada melancolia, e como serenidade dos
corpos posta contra cada esperança vazia ou utopia. Aí está , a seguir,
um quarto tema: este diz respeito aos modos nos quais a multidão pode
garantir, exercendo contrapoder, que a democracia se sustente no tempo
eliminando toda tentação oligárquica ou deriva monárquica. Nesse
sentido, o caráter maquiaveliano da política spinozista aparece com
extrema evidência — porquanto hilário e sereno, o cidadão não se deixará
enganar pelas paixões tristes do dominar que tão facilmente corrompem e
destroem a democracia. Uma atenção maquiavélica é colocada para romper
com cada astúcia (ou ocasião ou evento ou exceção ou instituição) que
possa produzir um poder que excede a força de contrapoder da multidão.
Com veraz inteligência, preocupada atenção, desconfiada vigilância,
serão então controladas (pela multidão) as instituições e quem as
exercita no governo. Enfim, é lembrado um quinto tema — mais sutil, mas
com certeza digerível pelos leitores — no qual Bove nos mostra como a hilaritas
de afeto “passivo” (enquanto determinado por um ambiente externo) possa
transformar-se em paixão “ativa” — em potência racional que exalta a
democracia como destituição do domínio e triunfo da autonomia. Pois “a hilaritas,
cuja causalidade é externa, irradia todavia a potência da multidão” e é
através da obra da imaginação que aquela paixão alegre é conduzida à
potência de fazer corpo com/de Desejo e Amor (com a cupiditas do corpo e com o amor da razão) — vivendo na igualdade, e naquele comum que é a democracia. Existirá quem proteste bancando essa hilaritas, isto da hilaritas
democrática, um paradoxo democrático cerebral demais. Mas não o fará
quem viveu períodos ou épocas de lutas revolucionárias e sabe que o rir e
as paixões alegres transformam a igualdade em irmandade e quem fez —
com serenidade — a experiência de uma multidão que produz democracia —
vale dizer, governo do comum.
A
multidão arranca, na democracia spinozista, toda legitimidade da
“democracia” quando ela é simplesmente entendida como figura da
soberania dos modernos. Esta última é expressão do individualismo, é
triunfo da propriedade privada, é transcendência do poder soberano. Para
Spinoza, não pode, em vez disso, existir imperium, comando, que não seja o produto da potência da multidão — quando é assim, o imperium
é lógica distruição do corpo humano. A potência da multidão não pode
nem ser alienada nem ser desenvolvida em compromissos mediadores, e nem
mesmo ser vagamente participada: em suma, não pode viver na
representação. A democracia spinozana pode viver somente de atividade
absolutamente expressiva e de contrapoder. Os companheiros que no Brasil
lutam sobre o terreno metropolitano para afirmar uma verdadeira
igualdade, negada por um soberano racista durante 389 anos de história,
para dar corpo a uma multidão que goze no viver e construir em comum —
bem, esses extraem dessa intervenção de Bove uma esperança forte —
talvez um projeto de uma nova constituição da liberdade para aquele povo
tão generoso, tão forte e tão desejoso de igualdade. Certamente aquelas
indicações de exercício de contrapoder valem também para nós às voltas
com a necessária construção de uma nova constituição, fundada sobre a
medida comum da igualdade, para a Europa. Para fazer dela o que ela
nunca foi, para fazer dela uma realidade democrática que as atuais
classes dirigentes não querem de nenhum jeito que seja.
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Sobre a confiança política: construir a Hilaritas democrática (Laurent Bove)
Uma
vez que a questão da “confiança” dos cidadãos com relação a sua “classe
política”, ou a questão da confiança das sociedades quanto a seu
porvir, é, tanto na Europa quanto na América Latina, um tema atualmente
recorrente, eu gostaria de apontar o modo como Spinoza poderia nos
ensinar sobre a questão da “confiança” política.
É precisamente da confiança que
nos fala Spinoza à medida que, no escólio 2 da proposição 37 da Ética
IV, a propósito do pacto, ele se interroga sobre a maneira pela qual os
homens podem proceder para, diz ele, dotar-se de uma segurança mútua e
instaurar uma “confiança mútua” (et fidem invicem habere), a fim de viver juntos em segurança. E, no Tratado Político
I, 6, é, também, precisamente com relação à confiança acordada ao homem
político que Spinoza que Spinoza nos previna. Com efeito, contra
a confiança que os súditos depositam ingenuamente na lealdade daqueles
que gerem os negócios públicos, Spinoza lembra que o bom funcionamento e
a segurança do Estado exigem, ao contrário, da parte dos cidadãos, uma
vigilância e uma desconfiança saudável com relação ao exercício dos
poderes. E que não é senão por meio desta vigilância de todos que uma
confiança política poderá, efetivamente, vir a ser. Uma vigilância que
não pode se materializar senão através da criação de instituições
democráticas de contra-poder que integram sistemas de resistência à
dominação, donde resulta a resistência armada ao soberano caso ele seja
tentado a oprimir seus súditos (como o demonstra claramente o exemplo do
Estado dos Aragoneses, elogiado por Spinoza no TP, VII, 30).
Gostaria
de demonstrar, portanto, que, contra a confiança ingênua que os homens
depositam naqueles que os governam e, finalmente, os domina, Spinoza
propõe uma concepção nova, original, de uma confiança imanente com
relação aos fundamentos mesmos da segurança do Estado; uma confiança
política que se constrói e se perpetua sobre a base de instituições
democráticas armadas de contrapoderes.
Ao afirmar, com efeito, que “a virtude do Estado é a segurança” (imperii virtus securitas),
Spinoza põe, necessariamente, uma potência do corpo político (sua
virtude própria, no sentido spinozista…), uma potência que é capaz de
agir, para sua segurança, através das leis da sua própria natureza (como
o diz a definição 8 da “virtude”, no começo da Ética IV). E o
corpo político – enquanto indivíduo – é, desse modo, apto a
experimentar, no livre exercício de sua potência, um afeto, uma acquiescentia in se ipso de alguma maneira, que vai muito além do simples sentimento subjetivo da sua segurança…. E é nesta acquescentia
própria ao corpo político, nesta alegria comum a todos os membros deste
corpo, que eu proponho encontrar uma confiança política no sentido
spinozista. A acquiescentia do corpo comum é, com efeito, uma
alegria compartilhada igualmente na e pela confiança na virtude, isto é,
na potência mesma deste corpo; uma alegria confiante que somente as
instituições do contra-poder podem tornar possível, perenizar e
prolongar indefinidamente.
Nosso objeto de reflexão é, pois, esta acquiescentia que compartilham de maneira imanente e igualmente
todos os membros de um mesmo corpo. E é pois, necessariamente, pela
questão da igualdade da alegria comum que nós devemos abordar a reflexão
sobre a confiança política em Spinoza.
Constatamos, de imediato, que tanto no TTP quanto no TP, Spinoza põe como um princípio antropológico fundamental o desejo de cada um de não ser dirigido por um igual.
Com efeito, escreve Spinoza no capítulo V [8] do TTP, “aquilo que os homens menos suportam é estar submetidos aos seus semelhantes e ser dirigidos por eles”1. E deste princípio Spinoza deduz duas séries de consequências de natureza política: “Segue-se daqui”, diz ele: que, em primeiro lugar “o
poder, ou está colegialmente nas mãos de toda a sociedade, se isto for
possível, de modo a que cada um obedeça a si mesmo e ninguém ao seu
semelhante” … E obtém-se, então, uma democracia2. Ou, então, trata-se da segunda solução:
“se [o poder] estiver nas mãos de uns tantos ou até de um só, este terá
de possuir algo de superior ao que é comum na natureza humana ou ao
menos tentar com todas as suas forças persuadir disso o vulgo”3. E nós entramos, então, nas mistificações que acompanham necessariamente a dominação.
Esta
segunda solução visa, todavia, a um caso excepcional, que parece ter
sido único na história. Trata-se do caso de um homem que, em razão de
uma “virtude divina”, pode oferecer a um povo, que permaneceu em estado
de infância – isto é, incapaz de viver em democracia –, uma solução
perfeitamente adaptada a sua situação primitiva mas, também, ao desejo
humano, que é compartilhado por todos (bárbaros ou civilizados), de não
querer ser dirigido por um igual-semelhante: esta solução de exceção é a
solução teocrática que foi oferecida por Moisés ao povo hebreu4.
Caso
se examine, brevemente, este caso de solução excepcional, percebe-se
que Spinoza nos oferece, na descrição do Estado dos Hebreus, um exemplo
de “confiança” política perfeita, mas em regime de imaginário e de total
heteronomia mental dos súditos uma vez que se trata, neste caso
específico, de fazer viver politicamente junto um “povo-criança”.
Neste exemplo, nós encontramos, com efeito, a confiança, enquanto fides
no princípio mesmo da gênese do Estado dos Hebreus, sob a forma de uma
tripla confiança: confiança dos Hebreus dirigida a Moisés, confiança dos
Hebreus dirigida a Deus, e confiança de Deus dirigida a Moisés. O
objeto desta tripla confiança é, explicitamente, dado por Spinoza: é a
“potência”, e uma potência benéfica. A potência de Moisés, em primeiro
lugar, que reside inteiramente na sua “virtude divina”. A potência de
Deus, em seguida, que permitiu a travessia do Mar vermelho e, depois, do
deserto; potência que é considerada como objeto supremo da confiança.
Nós
sabemos, no entanto, que esta confiança dos Hebreus dirigida a Deus
tanto quanto a Moisés é, de início, o signo de sua impotência; ou seja,
do enfraquecimento de suas forças, após um longo período de escravidão
que os tornou incapazes de se governar por si mesmos, aquilo de que eles
fizeram a experiência assustadora quando do primeiro pacto.
Aterrorizados, com efeito, pela maneira singular pela qual a Palavra de
Deus se manifesta a partir do momento em que eles a solicitam, os
Hebreus se submetem nova e inteiramente a Moisés5.
Na realidade efetiva das coisas, a mediação que Moisés vai agora operar na opinião entre Deus e o povo Hebreu,
entre Deus e seu povo, não é, na verdade, nada além da mediação deste
povo com a sua própria potência impotente. Uma potência, no entanto,
politicamente produtiva na e pela dimensão constituinte da confiança.
Sublinhemos o quanto Spinoza não cessará de, ao longo de todo o Tratado Político,
denunciar a loucura que reside, para um povo, no fato de depositar sua
confiança (e de confiar sua salvação) em quem quer que seja, sem, antes,
se assegurar das condições materiais de contra-poderes que devem
necessariamente constranger o homem político a não agir – por razão,
cálculo ou paixão – senão de uma maneira tal que, desse modo, a defesa e
a promoção do bem comum sejam necessariamente asseguradas6 …
No TTP,
Spinoza mostra que Moisés – que não é um tirano –, em benefício da
liberdade do seu povo, tomou em suas mãos a tarefa de instaurar, nas e
pelas instituições, uma dupla resistência interna às lógicas da
dominação. Resistência, claro, ao poder rebelde da multidão, mas
resistência também e, sobretudo, ao poder tirânico dos Chefes que
deverão ser contidos pelos contra-poderes que são, simultaneamente, a
interpretação da Lei reservada apenas ao Pontífice, a vigilância de um
povo em armas educado na Lei e pronto a defendê-la, o temor, enfim, de
um novo Profeta que o povo tomaria por mandatário de Deus para julgar
atos dos Chefes ou a má interpretação das leis7.
No
caso de Moisés, portanto – e excepcionalmente – a confiança dos Hebreus
não foi traída. Esta confiança, politicamente constituinte, é de duas
ordens: aquela, em primeiro lugar, de uma opinião, depois, na verificação prática, aquela de uma utilidade efetiva.
Tudo
aquilo que é relativo à crença tem valor de opinião. Aquilo que tem
valor de utilidade efetiva é o próprio funcionamento do Estado, que
implica necessariamente que esta crença (e nós reencontramos a definição
mesma de fé) envolve necessariamente uma obediência à Lei cujos efeitos
são benéficos a todos. E isto porque o direito de natureza de cada um,
longe de ter sido abandonado a quem quer que seja, pode, ao contrário,
na e pela própria perfeição das instituições da teocracia, se afirmar (e
cada vez mais) como o princípio dinâmico e contínuo da própria vida do
Estado8. Nesta confiança constituinte,
a crença ou a opinião não pode, portanto, senão abstratamente ser
distinguida da utilidade efetiva, pois esta opinião – aquela da própria
fé – é, nos Hebreus, o elemento primeiro e determinante da constituição
da realidade efetiva total e isto através de todas as práticas. É em
razão da pregnância de sua crença que “o amor dos Hebreus pela pátria
não era, pois, um simples amor, era pietas”9.
O que é a pietas?
Nós sabemos que é a dimensão prática e essencial da fé, ou seja, a
efetividade de um Desejo que, no caso dos Hebreus, é um afeto passivo em
relação à dimensão imaginativa. Mas a pietas pode também ser um afeto ativo e, por isso mesmo, racional.
A “piedade”, escreve, com efeito, Spinoza no escólio da proposição 37 da Ética IV, é “o Desejo de fazer o bem, que surge por vivermos sob a condução da razão”. A proposição 41 da Ética V
recorda a conexão necessária entre piedade e religião: esta concerne
todos os desejos e todas as ações das quais somos causas enquanto nós
temos a ideia de Deus ou enquanto nós conhecemos Deus. A mesma
proposição recorda, também, por outro lado, que piedade e religião
exprimem-se através da força da alma (a fortitudo), a qual se divide em Firmeza e Generosidade.
Nós constatamos, então, que a pietas dos Hebreus e a firmeza de coração que ela exprime, desenvolvem, de fato, as significações éticas da
piedade – mas isto no campo fechado da prática do conhecimento
imaginativo, isto é, no espaço simbólico e político do seu Estado. Mas
aqui, é por opinião e segundo a racionalidade própria das instituições
teocráticas que os Hebreus são conduzidos a viver segundo uma firmeza de
coração excepcional e não, decerto, por causa da sua própria razão.
É preciso admitir, então, à luz da Ética,
que a constituição jurídico-política do Estado dos Hebreus tem por
virtude permitir a atualização integral da essência singular deste Corpo
coletivo em um processo de causalidade adequada de todas suas práticas
(como efeitos), causalidade que é acompanhada necessariamente, enquanto
for adequada, de uma alegria específica comum que é aquela de uma
espécie de acquiescentia in se ipso, que irradia em todas as ações deste Corpo como pietas e constantia.
Percebamos três coisas:
– 1º) que se pode, de modo perfeitamente legítimo, falar de uma acquiescentia no registro da imaginação, como é o caso no escólio da proposição 55 da Ética III, que se adapta perfeitamente ao caso dos Hebreus,
– 2º) que a acquiescentia é também philautia
e que este amor de si pode tanto dizer respeito a uma ideia imaginativa
quanto ser uma alegria acompanhada da ideia adequada de si mesma,
– 3º) enfim, que a Ética indica efetivamente um afeto que corresponde exatamente a uma acquiescentia, como alegria passiva e compartilhada, envolvendo a imaginação: é a Hilaritas. Na Ética III, 11 escólio, Spinoza define a Hilaritas
como um afeto de alegria ligado, simultaneamente, à Alma e ao Corpo
quando todas as parte do homem, no seu corpo como no seu espírito, são
igualmente afetadas. A demonstração da Ética IV, 42 sentencia que “referida ao Corpo”, a Hilaritas consiste
“em que todas as suas partes são igualmente afetadas, isto é (pela
prop. 11 P. 3), em que a potência de agir do corpo é aumentada ou
estimulada de tal maneira que todas as suas partes adquirem, entre si, a
mesma proporção entre movimento e repouso. Portanto, a Hilaritas é um afeto sempre bom e nunca é excessivo”.
Podemos dizer, assim, que a Hilaritas é
um afeto que supõe e que exprime o equilíbrio vital de um princípio
positivo que é conservado. Mas, ainda que “sem excesso” (e, neste
sentido, idênticos aos afetos que têm sua origem na razão), é um afeto
passivo (enquanto aqueles que têm sua origem na razão são ativos);
“passivo” porque a causa deste afeto não é o indivíduo que a experimenta
mas porque ela consiste, essencialmente, nas circunstâncias externas
que lhe são favoráveis8.
Ora,
a maneira pela qual Spinoza apresenta a eleição dos Hebreus exprime
muito bem aquilo que se poderia denominar uma organização política da Hilaritas,
uma vez que os Hebreus “geriram os seus assuntos [de forma feliz] no
respeitante à segurança de vida, superando assim enormes perigos, tudo
graças unicamente ao auxílio externo de Deus”11.
Donde a Hilaritas, cuja causalidade é externa, mas que difunde uma confiança que
se apoia sobre a potência bem real da multidão em todas as suas
práticas, mas práticas que se desenvolvem em regime de heteronomia
mental, ou seja, num relação imaginária com os processos reais de sua
constituição. Imaginário que, por si mesmo, como prática social
constante, é constituinte da consistência e da resistência da realidade
deste povo e deste Estado.
A Hilaritas nos oferece, assim, o afeto da difusão da confiança comum, do prazer de, juntos, ser como um, do Desejo ou do amor de viver em comum,
energia virtuosa ou vigor da virtude divina que desenvolve, de maneira
equilibrada e equilibrante, a prática constituinte da imaginação
política do corpo da multidão.
O
que Moisés podia realizar, nele graças à sua virtude divina – a saber,
por os problemas reais da sociedade hebraica e produzir as respostas
mais adequadas –, torna-se, depois dele, o que pode realizar, sem Moisés
e graças a suas instituições, a própria sociedade hebraica na sua
integralidade. Sociedade cuja confiança deslocou-se, assim, de Moisés12 em direção à Lei divina, para finalmente manifestar, de fato, na e pela fidelidade renovada na Lei, a confiança intrínseca do povo hebreu nas e pelas suas próprias práticas potentes nas quais e pelas quais difunde a alegria confiante e compartilhada, com igualdade e em todas suas partes, da Hilaritas.
Acrescentemos, para terminar esta primeira parte de nossa reflexão, que a legitimidade desta concepção de uma fides-confiança enquanto Hilaritas nos Hebreus, pode ser verificada a contrario (em uma espécie de contra-prova experimental13) na história real deste povo tal como Spinoza a reconstitui.
Com
efeito, uma única modificação das instituições da teocracia (a passagem
da atribuição aos primogênitos da gestão das coisas sagradas unicamente
à tribo de Lévi) vai introduzir uma transformação radical das
disposições de cada um e uma série catastrófica de desregulamentações
que, da confiança fundamental na afirmação singular de sua vida, vai
conduzir os Hebreus a esta outra disposição inversa, onde, diz Spinoza,
“preferiam todos morrer a continuar vivos”14. Trata-se, então, da descrição da melancolia da nação: afeto que Spinoza define, na Ética, como diametralmente inverso ao afeto da Hilaritas.
Pode-se dizer da melancolia – no campo conceitual e afetivo do
pensamento spinozista – que ela manifesta um ateísmo radical, enquanto a
fé ou a confiançafundamental expressa pela Hilaritas é, pelo contrário, essencialmente (e paradoxalmente) irreligiosa e, propriamente falando, sem objeto, muito embora a crença religiosa possa prolongá-la adequadamente, como na teocracia ou sob a forma do credo minimum,
como sugere Spinoza para uma Livre República. A melancolia manifesta um
ateísmo radical porque ela é, com efeito, uma depressão equilibrada, a
perda de toda fé, de toda confiança ou de toda fidelidade na vida, de
todo amor pela vida, quando todas as parte de um corpo (e de um
espírito) são igualmente afetadas de tristeza e que mais nada permite,
então, resistir15. É por um colapso e um desfundamento
da potência de agir por perda da confiança essencial e, por isso mesmo,
de todo ponto de apoio para uma resistência. A melancolia é, portanto, a
dinâmica mesma do suicídio16.
Caso
se possa, então, na sequência desta primeira análise da confiança, à
partir da teocracia hebraica, tirar uma lição spinozista essencial
relativamente à fides como confiança, esta lição seria: 1º) que conhecer como um corpo coletivo se mantém junto consiste,
efetivamente, em conhecer a fé ou a confiança imanente de que este
corpo é capaz; 2º) que, estando colocado, como princípio, o desejo dos
homens de não serem dirigidos, não pode haver confiança política, não
mistificada e não mistificante, senão de acordo com uma resposta
“adequada” a este desejo. E, para Spinoza, não existe senão uma única
resposta adequada que é a democracia. Uma democracia que assume
diferentes figuras segundo as formas de governo nas quais e pelas quais a
democracia pode se construir e se manifestar: a teocracia (que é uma
democracia adaptada a um povo-criança) e, para os tempos modernos, as
formas democratizadas da monarquia e da aristocracia que Spinoza elabora
no seu Tratado Político.
Em
todos os casos, estes regimes respondem adequadamente ao desejo dos
homens de não serem dirigidos pelos seus semelhantes, na medida em que
constroem os sistemas de contra-poderes capazes de impedir a ambição de
dominação que atravessa cada um (desejo tão forte quanto o desejo de não
ser dirigido…). Ambição de dominação e desejo de não ser dirigido sendo
correlativos.
Assim, abstraindo-se todo outro parâmetro – a recusa, de um lado, de ser dirigido por um igual-semelhante e, correlativamente, a impossibilidade, por outro lado,
de vir a ser senhor de seu semelhante (dada a resistência de cada um à
dominação de um igual) –, é por meio de uma medida consensual e comum, a da igualdade de direitos, que são resolvidas, na e pelas instituições, as contradições afetivas e efetivas que atravessam necessariamente a multidão. Em Spinoza, a democracia é, em primeiro lugar, esta resolução: é, pois, o resultado de uma prudência comum, uma prudência da multitudinis potentia. E é assim que Spinoza pensa que as primeiras formas do viver em comum tenham que ser, logicamente, sociedades democráticas1.
A
democracia é, com efeito, em primeiro lugar, a invenção de uma medida
comum que dá sua condição de possibilidade ao viver-em-comum.
A
dinâmica afetiva complexa e comum conduz, de maneira imanente, à
produção de um remédio aos afetos destruidores, isto é, à invenção de
uma medida comum universalizável, que traz um contentamento a todos pois (eu cito o Tratado Político), “cada um considera ser justo ter sobre o outro o mesmo direito que este tem sobre ele”2. Esta “igualdade”, como medida comum, define uma justiça à
partir do sentimento de justiça: uma justiça afetiva, então,
experimentada e desejada antes mesmo que o novo Estado tome suas
próprias medidas particulares definindo o justo e o injusto. É, então,
“a igualdade” que dá a medida essencial do viver em comum. Sem igualdade “que numa cidade é acima de tudo necessária”3, escreve Spinoza, “desaparece necessariamente a liberdade comum”4.
Tocamos,
por esta via, não apenas o princípio da política da multidão enquanto
prática coletiva de resistência à dominação, mas também o princípio
mesmo da confiança política na medida em que esta envolve e requer a
produção imanente de uma medida comum.
A ambição de dominação é, com efeito, um desejo, em si mesmo, excessivo,
que não produz nenhuma medida mas que, ao contrário, desequilibra, até o
ponto da destruição, o conjunto do Corpo coletivo. Na sua Ética, Spinoza denomina titillatio
o prazer de um corpo totalmente desequilibrado, quando apenas uma de
suas partes experimenta um afeto violento de prazer em detrimento de
todas as demais5.
E podemos pensar que, para o Corpo político, dá-se exatamente o mesmo.
Em regime de dominação política, com efeito, o prazer obsessivo de um só
(ou de alguns unidos segundo os mesmo interesses de casa ou de classe)
oprime violentamente todas as outras partes do corpo, “impedindo, assim,
que o corpo seja capaz de ser afetado de muitas outras maneiras””6
(sob o regime de dominação, a grande maioria das partes do Corpo da
sociedade se torna impotente, fixada na e pela dor e a tristeza da
solidão). Absolutamente falando (isto é, em regime de dominação extrema
ou de terror), mesmo a dinâmica imitativa da identificação, que conduz
naturalmente – por “comiseração”, “benevolência” e “indignação” – a
socorrer seu semelhante na miséria e a desejar se vingar daquele que é
causa de seu mal7,
é, pela dominação, interrompida. Cada um, estremecido de terror na sua
solidão, incapaz de pensar senão na própria miséria e, somente, na sua
própria sobrevivência… E é o processo mesmo da antropogênese que é,
então, quebrado, isto é, a constituição da humanidade do homem a partir
do desenvolvimento múltiplo e diverso de suas maneiras de afetar e de
ser afetado que fazem toda a riqueza da potentia humana e da democracia8. Tendencialmente, a dominação é, pois, a destruição lógica do Corpo comum.
O desejo de não ser governado por um igual semelhante produz, ao contrário, a medida do
comum e do bem comum: a da “igualdade”. Ele produz também uma política
ativa da resistência à dominação, a democrática construção do comum.
Podemos, então, no plano dos afetos, opor a titillatio da dominação à Hilaritas do comum e do bem comum da multidão. A hilaritas que é um afeto, diz Spinoza, “sempre bom e nunca excessivo”9. No domínio dos afetos políticos, a medida da Hilaritas nos oferece, assim, a paixão democrática por excelência. Na Hilaritas
se exprime, com efeito, a expansão de uma confiança comum, uma
confiança que elimina, assim, todo desejo de dominar seu semelhante
tanto quanto, inversamente, de abandonar sua própria salvação a um homem
tido por providencial. A confiança da Hilaritas é, então, o prazer mesmo de viver em comum, de fazer Corpo juntos, é o amor de viver na igualdade10.
A medida comum tem, todavia, um duplo significado. Ela se estende, inicialmente, como solução política da multitudinis potentia:
é a invenção imanente de um princípio dinâmico do comum, de uma unidade
de base ou de uma unidade de medida do viver em comum. Mas é preciso
entender também por medida comum, o meio que será
implementado a fim de manter e de defender a igualdade, a fim de impedir
as tentativas de dominação. É é segundo esta segunda acepção da medida –
a da criação das instituições sob a forma das medidas e/ou dos decretos
tomados em conjunto, pela assembleia soberana dos iguais – que o
remédio deliberado pode não ser senão muito sectário ou demasiadamente
limitado, muito inadequado e isto por causa igualmente das leis dos
afetos que continuam necessariamente a determinar o comportamento e as
decisões da multidão reunida. São, com efeito, explica Spinoza, as
mesmas leis dos afetos que conduziram à invenção da democracia que
explicam, também, porque as democracias não puderam se conservar por
muito tempo. À medida que uma democracia é instaurada, com efeito, ela
se encontra perpetuamente sob a ameaça das paixões destruidores dos seus
próprios cidadãos se estes não souberam inventar as instituições
democráticas de contra-poderes capazes de manter o Corpo político no seu
princípio dinâmico fundados, a saber, a igualdade de todos e os
sentimentos de justiça e de confiança que lhe são inerentes.
Desde os primórdios da democracia, Spinoza observa, “surge uma grande dificuldade”. Esta dificuldade é a “inveja [a invidia]”11
e/ou do ciúme suscitado, no seio do jovem Estado democrático, pelos
recém-chegados que podem desfrutar dos mesmos direito que os cidadãos de
origem. De fato, a consciência de uma unidade e de uma identidade nacionais se
constitui historicamente em detrimento da própria democracia. O ciúme e
a inveja dos nacionais impedem a recepção dos recém-chegados cujo
acesso à igualdade de direito é tido como injusto por aqueles que se
consideram legítimos proprietários e usufrutuários do Estado. Pois,
escreve Spinoza: “se bem que cada um considere ser justo ter sobre o
outro o mesmo direito que este tem sobre ele, julga, contudo, que é
injusto o direito dos estrangeiros, que confluem para junto deles, ser
igual ao seu no estado que eles haviam com trabalho procurado para si e
ocupado com derramamento do próprio sangue”12.
É assim que a decisão política conservadora de excluir a cidadania dos
estrangeiros, que faz do Estado democrático nova instância de dominação
sobre uma grande parte da população, é o que, portanto, põe em perigo a
conservação mesma da democracia. E, de fato, o Estado, inicialmente
democrático, vai necessariamente mudar de natureza, fechando sua
assembleia soberana aos estrangeiros, para se transformar numa
assembleia de “nobres” que vão, eles próprios, se submeter ao reino de
um só.
Spinoza declina, em seguida, em seu Tratado Político,
uma série de “medidas” e/ou contra-poderes que devem prevenir o colapso
da democracia e, correlativamente, a perda de confiança dos cidadãos na
sua potência comum até o ponto de entregar seu destino nas mãos de
alguns poucos e, depois, de um só….
Spinoza
deduz estas medida da experiência dos homens na história e, assim, do
seu conhecimento adequando da lógica dos afetos. Não se podendo, aqui,
entrar nos detalhes de todas estas medidas, eu não reterei senão aquelas
que Spinoza considera essenciais.
Tratemos, em primeiro lugar, do exército. Ele não deverá ser constituído senão por cidadãos13.
Um exército de mercenário impõe ao Estado que ele deve proteger um
verdadeiro “estado de guerra, em que só o exército goza de liberdade,
enquanto os restantes são servos”14.
Além disso, o general-chefe de todo o exército será nomeado apenas em
tempos de guerra e o seu tempo de comando será estritamente limitado
“por um ano, sem poder continuar nem voltar depois a ser escolhido”15.
Spinoza desconfia, como se fosse a peste, da construção de heróis. A
confiança e a igualdade não pode, subsistir, escreve: “a partir do
momento em que são atribuídas pelo direito público honras especiais a um
homem famoso pela virtude”16.
Acontece, com frequência, com efeito, que em situações de crise, um
homem famoso se torna o tirano do seu próprio povo em favor de suas
vitórias presentes ou passadas, “nos maiores apertos do estado, quando
todos, como acontece, são tomados por um terror pânico, nessa altura
aprovam todos só aquilo que o medo imediato sugere, sem terem em alguma
conta nem o futuro nem as leis, e todos os rostos se voltam para um
homem famoso pelas suas vitórias, a quem isentam das leis, prorrogam o
comando (péssimo exemplo) e põem toda a república na dependência da
palavra dele, coisa que foi, sem dúvida, causa da queda do império
romano”17.
Solução
das mais ilusórias e das mais perigosas ao passo que deveria ser
questão, para os cidadãos, não de buscar a virtude salvadora em um homem
providencial, mas, sim, de construir a confiança, isto é, o equilíbrio,
a virtude e a prudência racional do próprio Estado democrático. Um
Estado que, em tempos de crise, poderia encontrar, em si mesmo e por si,
em suas instituições, as soluções adequadas, sem se deixar levar pelos
medos e esperanças do momento presente18.
O que Spinoza visa, portanto, é uma despersonalização radical das funções públicas, com administradores da república diametralmente opostos a seus ditadores19. Ditadores de que a democracia deve ser proteger: em primeiro lugar, eliminando a prática de “segredos do Estado”, que mantém a multidão em estado de desamparo e irresponsabilidade política…20; este ‘segredo’, escreve Spinoza, é incompatível com a confiança e a liberdade comum, em segundo lugar,
instaurando um sistema de assembleias muito vasto, em cada cidade de
preferência, assembleias, elas próprias tendo pelos sistemas vigilantes
de contra-poderes. É, assim, que a um sistema de representação política
que demande “confiar” em representantes, Spinoza prefere um dispositivo
de participação efetiva do maior número em funções de decisão comum;
funções que são estritamente limitadas no tempo, no âmbito de uma
assembleia suprema cujos membros são renovados, em parte, todos os anos.
Uma assembleia ela mesma vigiada de perto por uma assembleia mais
restrita de cidadãos cuja função consiste, essencialmente, em velar pela
manutenção inviolável dos fundamentos das leis “respeitantes aos seus
funcionários e aos conselhos”21.
Spinoza
rejeita a crítica quanto ao peso e a morosidade de um tal dispositivo
com base na defesa dos princípios da vida comum e evoca, mais uma vez, a
história romana: “Se é verdade que enquanto os romanos deliberam
Sagunto perece, também é, por outro lado, verdade que, se forem poucos a
decidir tudo de acordo apenas com o seu afeto, perece a liberdade e o
bem comum”22. A exigência dos princípios não poderia, portanto, ceder a imperativos técnicos, mesmo em caso de urgência.
Não
existe nenhum idealismo nem dogmatismo nesta defesa dos princípios,
mas, sim, uma exigência de prudência e de verdade que se recusa a
dobrar-se frente ao pragmatismo do poder que, sob o pretexto de
eficiência, elimina o exercício da política do comum em benefício da
dominação por meio do abandono da confiança comum à ambição de alguns.
Além
disso, se Spinoza nos adverte contra as utopias e nos ensina, para
pensar politicamente, a respeito de um retorno à experiência, isto é, à
prática, isto não significa que ele tenha abandonado o vínculo
estrutural da política com a verdade e a certeza ou a confiança que ele
envolve necessariamente. Este vínculo da política, da verdade e da
confiança, nós a reencontramos na ideia mesmo da virtude ou da prudência
intrínseca à construir, na e pelas instituições da democracia e para
sua defesa. Porque não se trata unicamente, na construção da confiança
comum, de reparar simples meios técnicos. Trata-se, antes, para Spinoza,
de construir verdadeiramente uma verdadeira causalidade adequada23
do Corpo comum, ou seja, o movimento real de emancipação pelo qual a
potência da multidão alcance o seu regime de “adequação” e esta
confiança política equivalente à acquiescentia in se ipso da
Ética. Ora este movimento real do real, segundo o qual, na conquista da
autonomia, uma coisa qualquer produz e se produz nos e pelos seus
próprios efeitos, é precisamente o que Spinoza concebe, na filosofia, como o procedimento mesmo da produção do verdadeiro24. Um procedimento que é também o da certeza e/ou da confiança intrínseca que acompanha esta produção.
A
democracia não é, então, para Spinoza, esta forma fraca, débil, de
governo, que nós conhecemos hoje em dia, ao qual dizem que devemos,
todavia, razoavelmente, nos acomodar, porque ainda que se trate, com
efeito, do “pior dos regimes”, ela somente será considerada assim se,
entretanto, “excetuarmos todos os demais [regimes] já experimentados ao
longo da História”, regimes que nos conduziram do pior ao pior! Não.
A democracia por construir (tal como Spinoza a concebe) tem, muito pelo
contrário, nela e por ela, a mesma potência, a mesma exigência e o
mesmo rigor que a própria verdade. Porque é, nela e por ela – a
democracia, que a confiança política pode, efetivamente, se produzir
enquanto Hilaritas. Uma confiança política correlativa da certeza
e da alegria ética que acompanham necessariamente a produção do
verdadeiro. Porque se trata, na construção democrática potente que
propõe Spinoza, do mesmo movimento real do real, o movimento da
autonomia ou da “livre necessidade”: o movimento dos povos, dos homens,
assim como das ideias quando elas são verdadeiras.
2 Somos nos que o precisamos.
3Tratado Teológico-político, V, [74].
4 Somos nós que o precisamos.
5 TTP XVII [206], p. 345.
6 Cf. particularmente Tratado Político VI, 3, 5 ; VII, 17, 30 ; X, 10.
7TTP XVII [212-214], pp. 352-354.
8TTP XVII [206], pp. 344-345.
9TTP, XVII [215], p. 355.
10
Mesmo si – é preciso assinalar – não são, absolutamente falando, as
circunstâncias que criam a relação singular de movimento e de repouso no
qual se experimenta a Hilaritas, são as circunstâncias que favorecem o
caráter ótimos da produtividade feliz desta relação. Même si – il
faut le préciser – ce ne sont pas, absolument parlant, les
circonstances qui créent le rapport singulier de mouvement et de repos
dans lequel s’expérimente l’Hilaritas. Mais ce sont les circonstances qui favorisent l’optimalité de la productivité heureuse de ce rapport.
11TTP III [47], p. 168.
12TTP XVII [205], p. 343.
13 Contra-prova experimental: nós pensamos no começo do parágrafo 30 do capítulo VII do Tratado Político, onde Spinoza escreverá que ele poderia avançar: “uma prova experimental”.
14TTP XVII [219], p. 360.
15Ética III, 11 escólio e IV, 42 demonstração.
16 A pietas
de todos, na primeira intenção de Moisés, a saber, de consagrar os
primogênitos de cada família à função de padres e de intérpretes da Lei,
se enraizava necessariamente no imaginário dos laços sanguíneos. Ora, a
modificação da Lei, que dá apenas aos Levitas a administração das
coisas sagradas, é a consequência do abandono da fé ou da confiança que
os Hebreus tiveram até então no seu Deus e no seu servidor, Moisés. É o
episódio do bezerro de ouro. A partir deste momento, todas as confianças
colapsam. Moisés seus temores sobre a infidelidade do povo confirmadas e
ele nomear a tribo de Levi – a única que permaneceu fiel a Deus – para a
gestão das coisas sagradas. As outras tribos suspeitas, então, que
Moisés não age mais segundo os ordenamentos divinos, mas segundo seu
próprio interesse: a tribo que administra as coisas sagradas é sua
própria tribo e ele nomeou seu irmão Aarão como Grande Pontífice. Os
Hebreus passam, então, a detestar os Levitas, nos quais eles não
depositam nenhuma confiança. Eles se revoltam, reivindicando a igualdade
de cada um, e Moisés não tem outra saída para convencê-los de sua
lealdade senão demonstrar que somente ele goza de plena confiança
divina: ele faz um milagre pelo qual os revoltosos pereceram; “E não
houve maneira de os acalmar com nenhum argumento. Tendo, porém Moisés
recorrido a um milagre em sinal da sua fé, eles foram todos
exterminados. Daqui resultou nova sedição geral de todo o povo, que
pensava que os revoltosos tinham sido exterminados, não em virtude de
uma sentença divina, mas por artes de Moisés” (TTP XVII
[219], p. 360). É importante notar que esta lógica da catástrofe será,
durante muito tempo, bloqueada, a partir da morte de Moisés, pela
instauração efetiva da teocracia que constituirá, realmente, na prática
comum, a confiança do povo, por si mesmo, na auto-organização efetiva do
Estado. Daí se segue – e isto apesar da modificação mantida da Lei –
uma dinâmica de reequilíbrio global potente do Estado que resiste
firmemente a sua própria dissolução e o efeito benéfico da Hilaritas,
ela mesma causa de equilíbrio e do perseverar no amor sobredeterminado
da pátria. Mas o verme estava dentro do fruto e o déficit de confiança
conduzirá, finalmente, ao fim da forma teocrática, depois, ao
desaparecimento definitivo do próprio Estado. Que o povo Hebreu sofreu,
finalmente, um déficit de confiança e não apenas uma modificação das
instituições, é o que revela esta observação de Spinoza: “nem haveria
algo a temer se a própria eleição dos Levitas tivesse sido motivada por
uma outra causa que não a cólera e a vingança”, TTP XVII [219], p. 360.
17 Tratado Político, VIII, 12
18 Ibid.
19 Ibid., VII, 20.
20 Ibid., X, 8.
21 Ética, III, 11, escólio; IV, 43, demonstração.
22 Ibid., IV, 43, demonstração.
23 Ética III, 27, demonstração do corolário 3; e La Stratégie du conatus. Affirmation et résistance chez Spinoza, L. Bove, Paris, Vrin, 2012, cap. IV,
3, “Bienveillance et Indignation: les ‘affects’ de la résistance », pp.
291-295 (ouvrage à paraître au Brésil, Autêntica ed., Belo Horizonte,
MG, 2014).
24 Nós desenvolvemos este tema no nosso estudo “Bêtes ou Automates. La différence anthropologique dans la politique spinoziste”, in Lectures contemporaines de Spinoza, organizado por P.-F. Moreau, Cl. Cohen-Boulakia e Mireille Delbraccio, PUPS, Paris, 2012, pp. 157-177. Cf., igualmente, nossa obra, Espinosa e a psicologia social. Ensaios de ontologia política e antropogênese, tradução português sob a direção de Marcos Ferreira, col. Invenções Democráticas, Autêntica ed., Belo Horizonte, MG, 2010.
25
Ética IV, 42 e demonstração. Cf. nosso estudo: “Hilaridade e
contentamento íntimo”, in Psicopatologia: Clinicas de Hoje, trad.
português e et. De David Calderoni (org.), ed. Via lettera, São Paulo,
2006.
26 A propósito do uso operacional da Hilaritas (afeto
que nós transferimos, de reflexões éticas, no domínio da política e da
história), nós nos permitimos remeter o leitor à introdução de nossa
edição do TratadoPolítico, particularmente as páginas 58 a 87, que nós retomamos neste artigo, Le Livre de Poche, Paris, 2002.
27 Tratado Político, VIII, 12.
28 Ibid.
29 Tratado Político VI, 10 e VII, 22.
30 Ibid., VII, 22.
31 Ibid. VIII, 9.
32 Ibid. X, 8.
33 Ibid. X, 10.
34
“(…) se persuadem de poder induzir, que a multidão quer os que se
confrontam nos assuntos públicos, a viver unicamente segundo o que a
razão prescreve sonham com o século dourado dos poetas, ou seja, com uma
fábula. – Por conseguinte, um estado cuja salvação depende da palavra
dada por alguém e cujos assuntos só podem ser corretamente geridos se
aqueles que dele tratam quiserem agir lentamente, não terá a mínima
estabilidade Ao invés, para que ele possa durar, as suas coisas públicas
devem estar ordenadas de tal maneira que aqueles que as administram,
quer se conduzam pela razão, quer pelo adepto, não possam ser induzidos a
estar de má-fé ou a agir desonestamente. Nem imposta, para a segurança
do estado, com que ânimo os homens são induzidos a administrar
corretamente as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente
administradas. A liberdade de ânimo, ou fortaleza, é com efeito uma
virtude privada, ao passo que a segurança é a virtude do estado”, Tratado Político I, 5-6.
35Tratado Teológico-Político, XVII, [203].
36Tratado Político, VII, 27-29.
37 Ibid. VIII, 20.
38 Ibid. IX, 14.
39
“Chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e
distintamente pore la mesma. Chamo de causa inadequada ou parcial, por
outro lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só”;
“Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos
a causa adequada, isto é (pela definição precedente),
quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode
ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo, ao contrário,
que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza
se segue algo de que não somos causa senão parcial”, Ética, III, definições 1 e 2.
40 E desde o Tratado da reforma do entendimento:
“(B 71) a forma do pensamento verdadeiro deve estar situada no próprio
pensamento sem relação com outras coisas; e ela não reconhece um objeto
como causa, mas deve depender da potência mesma da natureza do
entendimento. [...] É por isso que é necessário buscar o que constitui a
forma do pensamento verdadeiro no próprio pensamento, e deduzi-lo da
natureza do entendimento”.
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