PICICA: Fiel ao princípio de 'andar em boa companhia', o autor dessas 'mal-traçadas' aproveita o ensejo para postar as fotografias das queridas Miriam Abou-Yd e Rosemeire Silva, integrantes da RENILA (Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial), que assinam o texto abaixo.
Rogelio Casado e Miriam Abou-Yd (2004)
Rosemeire Silva e Rogelio Casado (2006)
Nova abordagem do problema do crack
O programa De Braços Abertos, iniciado pela Prefeitura de São Paulo em janeiro, na Cracolândia, traz abordagens inovadoras e complexas para o problema da região. A iniciativa considera a humanidade do(a) usuário(a) de crack, superando as linhas convencionais de repressão e internação. Convidamos especialistas que atuam nos campos de saúde e direitos humanos para discutir o programa recém-implantado.Da política da guerra e do medo à política da vida e da amizade
A política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.
Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.
Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.
Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.
Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.
Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.
Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.
Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.
No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.
Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.
E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.
O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.
Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.
E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.
Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.
A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.
Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.
Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.
Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".
Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.
Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
Da política da guerra e do medo à política da vida e da amizade
A política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.
Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.
Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.
Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.
Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.
Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.
Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.
Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.
No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.
Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.
E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.
O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.
Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.
E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.
Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.
A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.
Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.
Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.
Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".
Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.
Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
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A política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.
Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.
Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.
Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.
Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.
Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.
Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.
Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.
No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.
Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.
E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.
O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.
Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.
E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.
Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.
A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.
Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.
Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.
Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".
Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.
Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Da política da guerra e do medo à política da vida e da amizade
A política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.
Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.
Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.
Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.
Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.
Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.
Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.
Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.
No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.
Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.
E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.
O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.
Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.
E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.
Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.
A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.
Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.
Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.
Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".
Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.
Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Fonte: Teoria e DebateA política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.
Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.
Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.
Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.
Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.
Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.
Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.
Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.
No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.
Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.
E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.
O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.
Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.
E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.
Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.
A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.
Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.
Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.
Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".
Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.
Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
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