fevereiro 24, 2014

"No meio do caminho uma pedra pareceu ser o caminho", por Cristiana Losekann


 

 

No meio do caminho uma pedra pareceu ser o caminho

23/02/2014
Por Cristiana Losekann


Por Cristiana Losekann, professora de ciência política da UFES

“Gostaria de marcar dois aspectos que me chamaram a atenção nos Black Bloc em Vitória: primeiro, a presença nas narrativas dos participantes de elementos que evidenciam um contexto social marcado pela violência e opressão cotidianas, segundo, a demonstração de uma predisposição à formação ideológica posterior à ação de protesto.”

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No meio do caminho uma pedra pareceu ser o caminho [1]

Nota inicial sobre as avaliações dos protestos

Desde o início dos protestos de junho de 2013 no Brasil, observamos além das batalhas das ruas, disputas interpretativas entre intelectuais que animam as mídias mais ou menos hegemônicas.

Percebem-se pelo menos três posições diferentes: 1) direitistas que expressam ideias típicas das classes dominantes nervosas e histéricas com as insurgências populares e de minorias (o medo do comunismo, por exemplo); 2) apoiadores dos protestos que veem nestes a possibilidade de um revigoramento político da esquerda no país; 3) setores governistas que historicamente estiveram junto aos movimentos sociais e do lado da esquerda e que observam atônitos o surgimento de um pensamento crítico fora dos seus domínios e até contra sua própria posição.

Curiosamente, há uma convergência espantosa entre as avaliações de analistas de direita e de alguns apoiadores do governo que desaprovam e desqualificam as manifestações. Enquanto direitistas, criminalizam e acusam ativistas e manifestantes, governistas, perplexos com o que está acontecendo, tentam caracterizar os protestos homogeneamente como sendo de direita, de grupos fascistas, perigosos, que usam de estratégias não democráticas – vejam por exemplo, respectivamente, os últimos textos de Demétrio Magnoli e Wanderley Guilherme dos Santos. Estas duas posições em princípio antagônicas estão na verdade a reforçar os mesmos grupos de elite empresarial, midiática e política que dominam o país apesar do partido que governa. Pois é justamente a ausência de partidos e demais atores políticos críticos, dispostos a romper com estratégias pragmáticas de governabilidade, que eliminou o ânimo dessa juventude em apostar suas fichas, seu ímpeto por mudança, sua vontade de construir um mundo melhor, em algum dos representantes constituídos no sistema político brasileiro. Isto precisa ser observado mesmo que a descrença nas instituições políticas sempre cause receio aos cientistas sociais em geral.

O texto que apresentamos analisa, a partir de incursões de pesquisa de campo, na cidade de Vitória, aspectos sobre os protestos tomando como premissa fundamental que os protestos que se iniciaram em junho têm uma relevância enorme, no que se refere à constituição da esfera pública democrática, ainda que seja necessária a contínua a reunião de esforços e dados para analisá-los.

É naïf exigir que aqueles jovens — que, desiludidos, criticam e apontam para as inconsistências do sistema político, — sejam os responsáveis pela proposição de soluções para todos os problemas que percebem. Se as instituições políticas democráticas que temos são importantes, necessárias e capazes de responder aos reclames da sociedade, provar isto para os inconformados é uma tarefa de seus atores mais lúcidos. Além disso as dinâmicas institucionais e não-institucionais de confronto e protesto provocam efeitos contingenciais e mudanças incrementais sobre os sistemas políticos que as histórias de diversos Estados nacionais no mundo ocidental exemplificam muito bem. A própria construção da democracia dependeu do confronto. O primeiro passo que precisa ser dado para analisar o que tem ocorrido em nosso país, é buscar a fundo conhecer os protestos. Neste texto, queremos trazer algumas contribuições a partir da análise da experiência de Vitória para discutir como e o quanto as performances de ação direta e “quebra-quebra” estão relacionadas à atuação débil de certas instituições e seus atores. Além disso discutimos alguns possíveis “legados” do uso da tática Black Bloc e outras utilizadas nos protestos de junho de 2013, no Brasil, no que se refere ao engajamento político dos jovens.

A tática Black Bloc e ação direta nos Protestos na cidade de Vitória/ES

No dia 19 de Julho os manifestantes saíram em passeata para o centro da cidade de Vitória no Espírito Santo. Frustrados com o processo de negociação para a desocupação da Assembleia Legislativa do estado do ES, a sensação geral era de perda para os manifestantes. A lista de reivindicações não foi levada a sério pelos parlamentares e a reação foi finalizar a negociação e canalizar os esforços para o confronto com o uso intenso da ação direta. Em Vitória os protestos reivindicavam, sobretudo, o fim do pedágio que existe desde a década de 1980, na saída da Terceira Ponte, principal ligação com o continente pela saída sul da cidade.


Assim, o grupo que defendia, entre os manifestantes, a tática da negociação perdeu espaço para aqueles que defendiam a necessidade do uso de performances de ação direta. Metaforicamente e literalmente a pedra tornou-se o caminho. A tática Black Bloc ganhou força neste dia quando foi necessário resistir à forte ação policial. Barricadas foram montadas, as avenidas mais movimentadas da cidade foram fechadas, e como gritava um vendedor de balas sem esconder certo regozijo “é toque de recolher!”. Bancos e prédios públicos foram quebrados, manifestantes e moradores foram encurralados nas ruas enevoadas pelo gás lacrimogêneo.


Black Bloc e Polícia Militar

Black Bloc (BB) é o nome de uma tática de ação em confrontos e não de um grupo. Longe de ser um grupo fascista como, desinformadamente, alguns acusam os mascarados, a tática de resistência em confrontos surge na década de 1980 na Alemanha ocidental (alguns fazem referência ao “Days of Rage” em 1969 na América do Norte) quando manifestantes ligados ao movimento Autonomen e que realizavam protestos anti-nucleares e anti-fascitas precisaram encontrar formas de se defender tanto da polícia quanto de grupos neonazistas (VAN DEUSEN, 2010).

Essa tática que consiste basicamente em criar um bloco que protege os manifestantes das balas de borracha e do gás lacrimogêneo, foi reativada no contexto de movimentos por justiça, anticapitalistas e antirracistas de Seattle, em 1999, e em diversos outros países nos anos seguintes (Canadá, Itália, Suíça, etc.). O que motiva os adeptos da tática BB é uma ideia antiautoritarismo, que repudia práticas baseadas na autoridade e hierarquia (DUPUIS-DÉRI, 2010: 49).

Apesar de que os mascarados possam se conhecer, o Bloco se forma na hora do confronto, em geral depois da chegada da polícia. Ninguém é obrigado a desenvolver qualquer tipo de ação, e cada um faz aquilo que lhe parecer pertinente. Alguns catam pedras, dão suporte logístico carregando materiais, identificam policiais infiltrados (P2), fazem lanches e arrumam água, entre outras coisas. Algumas convergências são notáveis, tanto na literatura sobre BB de outros países quanto nas falas das pessoas que entrevistei e na minha própria experiência em meio ao BB: os alvos não são aleatórios, circunscrevem-se aos símbolos do capitalismo (bancos e lojas caras), da opressão do Estado (bandeiras, símbolos do nacionalismo e a própria polícia) e da cultura dominante (esculturas e obras da arte hegemônica).

As narrativas daqueles que protagonizaram as batalhas do dia 19/07 revelam uma diversidade grande de propósitos, entre alguns que têm uma posição ideológica identificada ao anarquismo e ao movimento punk, como em outros países. Mas, gostaria de marcar dois aspectos que me chamaram a atenção em Vitória: primeiro, a presença nas narrativas dos participantes de elementos que evidenciam um contexto social marcado pela violência e opressão cotidianas, segundo, a demonstração de uma predisposição à formação ideológica posterior à ação de protesto.

Ou seja, a construção de um enquadramento ideológico que se dá depois de iniciado o processo de ação coletiva. Este último aspecto caracterizamos como o “legado” do protesto e da tática BB.
Observamos que é a própria ação coletiva que vai possibilitando a construção dos enquadramentos e significados em jogo. Sendo assim, as pautas, interpretações e significados são construídos na ação coletiva e, portanto, têm seu conteúdo aberto, talvez, nesta conjuntura, mais aberto do que nunca. Como Della Porta observou nos protestos alterglobalização, “a construção de um discurso comum ocorreu de fato ‘em ação’, ou seja, no decorrer de campanhas comuns de protesto” (2007, p.85).

Conjunturalmente, é possível dizer que esses protestos predispõem ao engajamento e à mobilização de jovens outrora desmobilizados. Este último elemento é fundamental para a construção de uma democracia ativa e com alto nível de crítica social. Além disso, o fator de crítica às instituições políticas existentes os fez buscar outros mecanismos que por sua vez são elaborados internamente, no sujeito, e no coletivo. A deliberação ao contrário do que a mídia enfatiza, foi um elemento presente em todo o processo dos protestos de Junho/2013.

Ocorreram assembleias, organizadas, com amplos públicos, que contavam com a participação de manifestantes fundamentados em distintas e divergentes propostas (por exemplo, adeptos da ação direta ou não, da tática BB ou não). Alguns com práticas já vividas de militância, mas muitos, tendo pela primeira vez um engajamento político. Sendo assim, por mais que se estejam criticando formas tradicionais de fazer política, através de partidos, representações e lideranças, ao realizarem assembleias populares, buscando respeitar princípios de igualdade e livre participação no debate (havia um acordo, por exemplo, de que o uso de megafone deveria ser evitado), na prática, os manifestantes estão realizando, experienciando a política. Quiçá renovando futuros votos de confiança no sistema político.

Na relação com a polícia, mais uma vez, as análises disponíveis convergem em perceber que os atos de violência contra a pessoa partem, em geral, da polícia. Os maiores sofredores são os próprios manifestantes que apanham da polícia, são presos e submetidos a uma série de riscos. As ações dos BBs são contra o patrimônio e não contra a pessoa. No Brasil, e em Vitória, as ações diretas foram infinitamente mais brandas do que aquelas realizadas no hemisfério norte. A “arma” utilizada foi basicamente a pedra em reação à ofensiva violenta e desproporcional da polícia. No dia 19 de julho as diversas prisões que ocorreram nessa cidade foram marcadas pela arbitrariedade e por ilegalidades. Pelo menos três estudantes foram presos e encaminhados à penitenciária de Vianna sem que os devidos procedimentos e registros das prisões fossem feitas. Ou seja, houve o sequestro de pessoas sobre o qual o Brasil poderá ter que responder perante as Cortes Internacionais.

A eficácia da ação direta

Em todo esse texto, em nenhum momento fiz referência às ações diretas, mesmo aquelas que envolveram desobediência civil, como “violentas”. Embora a literatura faça referência às ações de destruição do patrimônio como ações violentas, faz-se necessário diferenciar formas muito distintas de ilegalidade e confronto. Não é possível classificar sob o mesmo rótulo de “violência” o espancamento de uma pessoa e a quebra de uma vidraça. Este aspecto é muito importante e a ausência de palavras que diferenciem essas distintas ilegalidades revela a forma homogênea com a qual as polícias em geral lidam com a desobediência civil, aspecto também tratado por Dupuis-Déri (2010). Sendo assim, discutir as formas como nas nossas democracias vamos lidar com o conflito e confronto político é algo que parece urgente. Por enquanto prevalece o protagonismo na polícia que, despreparada, responde com violência.

A estratégia da ação direta na destruição de coisas é bastante questionada do ponto de vista da sua eficácia para os protestos. Alguns manifestantes temem que a opinião pública acabe contrária às manifestações. Apesar de chamar a atenção da mídia oficial e da mídia alternativa, é difícil avaliar se esse tipo de tática, como o BB, beneficia ou atrapalha as reivindicações. No caso de Vitória a destruição do pedágio (objeto central dos protestos locais) produziu um fato que contribuiu para a causa. O que aconteceu foi que sem as cancelas e com as cabines de cobrança quebradas houve a liberação do pedágio durante alguns dias. A rotina sem o pedágio fez com que as pessoas percebessem que o caos do trânsito e o engarrafamento eram gerados pelo pedágio. Além disso, a intensa exposição dos valores lucrados pela concessionária criou indignação na população conquistando o apoio da classe média. Assim os ativistas ganharam o amplo apoio da opinião pública sobre o fim do pedágio. Neste caso é possível conjecturar que houve um ganho com a ação direta, mas esta avaliação é bastante difícil de ser realizada previamente e não pode ser generalizada, posto que os efeitos são contingenciais.

De onde estamos falando

O Espírito Santo é conhecido pela violência. Segundo o Mapa da violência de 2013 o estado é o segundo colocado no ranking dos óbitos por armas de fogo no Brasil. Vitória ocupa o terceiro lugar entre as capitais. Os vitimados pela violência são principalmente jovens, negros e pobres. O estado e a cidade também apresentam os maiores índices de homicídios de mulheres no país.

As narrativas sobre a violência local estão presentes de forma muito importante nas falas de manifestantes. Trata-se de uma sociedade amplamente marcada pela perda de parentes, amigos, filhos vitimados pelo crime organizado e pelas próprias instituições estatais – basta lembrarmos das denúncias feitas à ONU de práticas de torturas realizadas nos presídios locais. Para a grande parte da periferia que participou da quebra de vidraças e objetos públicos, a violência é cotidiana e vem, inclusive, do Estado. A frase estampada na faixa “a polícia que reprime nas ruas é mesma que mata nas favelas” revela as conexões construídas entre as violências sofridas cotidianamente e os episódios de repressão atual.

De maneira geral o descrédito com as instituições somado a um contexto em que se experimenta a violência cotidianamente pode ser o bastante para suscitar e justificar ações de desobediência civil em que ocorra a destruição de certos bens. Antes de julgar os BBs e as ações diretas é preciso conhecer suas razões e entender o que faz a pedra parecer o caminho, como na metáfora da letra da música.
Os protestos evidenciam claramente um processo de crítica às condições sociais locais, à violência institucional, sobretudo, através da polícia. Sugerem também uma forte crítica às instituições representativas, às elites políticas e às formas tradicionais de organização da política. Por outro lado, a resposta aos protestos a partir do uso da força policial não contribui em nada para restaurar a credibilidade das instituições e das classes políticas.

As mobilizações têm um caráter de conteúdo aberto e que está sendo construído no próprio processo de ação. Este elemento torna as manifestações mais difíceis de serem capturadas pelas forças políticas já estabelecidas. Por isto, também causam desconforto e receios entre os analistas. Mas, podem ser o início de novas e criativas formas e conteúdos políticos. Momentos como os dos protestos que assistimos abrem as possibilidades de associação, criam novos formatos, novos repertórios, expõem as fragilidades de certas instituições, rompem com padrões morais e questionam aspectos valorizados tradicionalmente na sociedade. Uma coisa é certa, temos uma nova geração interessada na vida pública e disposta à ação coletiva, menos tolerante, porém, às promessas e direitos que não se efetivam.



NOTAS:

1 O título escolhido, “no meio do caminho uma pedra pareceu ser o caminho” é trecho da letra da música “pedras e sonhos” do grupo El Efecto. Este texto é uma adaptação resumida do capítulo “Os protestos de 2013 na cidade de Vitória/ES: #Resistir, Resistir Até o Pedágio Cair!” que integra o livro: “País mudo, não muda! As manifestações de junho de 2013 na visão de quem vê o mundo para além dos muros da Academia”. Brasília, Editora IDP, no prelo.



REFERÊNCIAS:

DELLA PORTA, Donatella. (2007), O movimento por uma nova globalização. São Paulo, Edições Loyola.
 

DUPUIS-DÉRI, Francis (2010). The Black Blocs Ten Years after Seattle – Anarchism, Direct Action, and Deliberative Practices. Journal for the Study of Radicalism, Vol. 4, No. 2, 2010, pp. 45–82. Michigan State University Board of Trustees.
 

VAN DEUSEN, David. (2010). The Emergence of The Black Bloc and The Movement Towards Anarchism: “Get Busy Living, Or Get Busy Dying”, p. 9-34 IN: VAN DEUSEN, David & MASSOT, Xavier. (2010). The Black Bloc Papers. USA, Breaking Glass Press.

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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