PICICA: "As manifestações de junho
já haviam mostrado sua cara. Mas a surpresa continuava. Ao menos, para
grande parte da grande imprensa e para os políticos profissionais. Sem
contar os gestores públicos que formam a pior geração de toda a história
republicana de nosso país.
A geração tecnocrática não
tem na sua memória o papel do governante como liderança. Acreditou no
discurso do empresariamento da gestão pública, tão disseminada ao longo
dos anos 1990. O século virou, mas a crença foi reproduzindo-se, embora
não publicamente, como conviria às decisões e pensamentos privados, mas
sim nos seminários fechados, quase clandestinos, nos cursos do estilo
MBA. O pensamento único de empresariamento da gestão pública invadiu
quase todo o sistema partidário brasileiro, como uma senha ao bom senso.
Uma “boa prática”, ainda que a população não tenha sido consultada para
dar sua opinião. Porque no mundo tecnocrático, pouco importa o que os
“de baixo” pensam, quase sempre desqualificadas como opiniões
apaixonadas e pouco lúcidas.
O gestor tecnocrático é
destituído de faro político. Não sabe negociar o que, aliás, é visto
como perda de tempo até justificável, mas perda de tempo. O eixo da
atuação é o Power Point que sintetiza o planejamento
estratégico. Planejamento normativo, que dispara um alerta quando as
metas não são alcançadas. A leitura das planilhas eliminou a capacidade
de ler as ruas. Neste mundo apartado das ruas, onde o eleito ganhou a
licença para tudo após a contagem dos votos da última eleição (o bom e
descompromissado líder fiduciário), qualquer agitação que se insurja do
lado de fora das janelas gera perplexidade. “Não era para acontecer”,
imaginam os tecnocratas. Os mais lúcidos gestores desta nova geração
afirmam, também perplexos: “são ingratos”. Porque não há outra resposta
para quem não sentiu o pulsar das ruas durante meses. Tudo deveria ser
resolvido nos gabinetes. Mas não foi."
Relato de um perplexo
18/02/2014
Por Rudá Ricci
Por Rudá Ricci, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“A leitura das planilhas eliminou a capacidade de ler as ruas.”
–
As manifestações de junho
já haviam mostrado sua cara. Mas a surpresa continuava. Ao menos, para
grande parte da grande imprensa e para os políticos profissionais. Sem
contar os gestores públicos que formam a pior geração de toda a história
republicana de nosso país.
A geração tecnocrática não
tem na sua memória o papel do governante como liderança. Acreditou no
discurso do empresariamento da gestão pública, tão disseminada ao longo
dos anos 1990. O século virou, mas a crença foi reproduzindo-se, embora
não publicamente, como conviria às decisões e pensamentos privados, mas
sim nos seminários fechados, quase clandestinos, nos cursos do estilo
MBA. O pensamento único de empresariamento da gestão pública invadiu
quase todo o sistema partidário brasileiro, como uma senha ao bom senso.
Uma “boa prática”, ainda que a população não tenha sido consultada para
dar sua opinião. Porque no mundo tecnocrático, pouco importa o que os
“de baixo” pensam, quase sempre desqualificadas como opiniões
apaixonadas e pouco lúcidas.
O gestor tecnocrático é
destituído de faro político. Não sabe negociar o que, aliás, é visto
como perda de tempo até justificável, mas perda de tempo. O eixo da
atuação é o Power Point que sintetiza o planejamento
estratégico. Planejamento normativo, que dispara um alerta quando as
metas não são alcançadas. A leitura das planilhas eliminou a capacidade
de ler as ruas. Neste mundo apartado das ruas, onde o eleito ganhou a
licença para tudo após a contagem dos votos da última eleição (o bom e
descompromissado líder fiduciário), qualquer agitação que se insurja do
lado de fora das janelas gera perplexidade. “Não era para acontecer”,
imaginam os tecnocratas. Os mais lúcidos gestores desta nova geração
afirmam, também perplexos: “são ingratos”. Porque não há outra resposta
para quem não sentiu o pulsar das ruas durante meses. Tudo deveria ser
resolvido nos gabinetes. Mas não foi.
Mas aí, o Ministro da
Justiça convoca, no finalzinho de outubro, uma reunião com Secretários
Estaduais da Segurança Pública para uma conversa sobre o vandalismo que
estaria tomando as manifestações populares. O ministro adiantou:
“manifestantes pacíficos podem se manifestar, mas os vândalos terão
outro tratamento”. A questão que ficava para cada cidadão descrente no
discurso político era: como diferenciar um do outro? Se é possível
distingui-los, porque a inteligência policial já não resolve isto antes
da manifestação dar lugar ao vandalismo? Não, ministro, seu discurso não
convenceu.
Tudo ficou ainda mais
nebuloso quando Humberto Freire, coordenador da Secretaria
Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), do Ministério
da Justiça, veio à público para informar que não estaria descartada a
convocação das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança para
atuar durante a Copa do Mundo, logo no início de janeiro de 2014.
Em seguida, foi divulgado o teor do Manual de Garantia da Lei e da Ordem,
elaborado pelo Ministério da Defesa. A aprovação do material consta na
Portaria Normativa n.º 3.461, publicada no Diário Oficial da União e
passou a ter validade a partir de 20 de dezembro de 2013. Um manual de
emprego da força em situações extraordinárias. Anunciado como operação
militar conduzida pelas Forças Armadas em área previamente estabelecida e
por tempo limitado com o objetivo de preservar a ordem pública. Podendo
ocorrer por iniciativa própria da Presidente da República ou em
atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes
constitucionais. Ao longo do documento emergem vários riscos à
democracia. O item 4.3, trata das “forças oponentes”. Logo de início, o
item indica que não se trata de caracterizar um “inimigo” (na forma
clássica das operações militares, complementa), mas caracterizar as
forças que deverão ser objeto de atenção. Novamente, o fio da navalha,
algo que se diz sem falar. Como forças oponentes, o documento indica: a)
movimentos ou organizações; b) organizações criminosas, quadrilhas de
traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos
armados etc; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na
forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades,
instituições, organizações provocando ou instigando ações radicais e
violentas; e d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos
para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de
segurança pública policial.
Ora, como movimentos ou
organizações podem ser incluídos no mesmo rol de forças oponentes que
organizações criminosas? A dúvida é pertinente porque à página 63 do
Manual, a síntese deste item é ainda mais reveladora. Está lá:
“4. FORÇAS OPONENTES. 4.1. São segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos sociais,
entidades, instituições, e/ou organizações não governamentais que
poderão comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do
País, utilizando procedimentos ilegais. (grifo de minha autoria).
O ANEXO G (CONTROLE DE
DISTÚRBIOS EM AMBIENTE URBANO) ao Plano Operacional, inscrito no Manual à
página 65 é ainda mais revelador. No item “cenário” destaca:
1. CENÁRIO. Atuação de elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública.”
Ficamos à mercê da
identificação e discernimento da autoridade pública de plantão para
diferenciar o que são elementos integrantes infiltrados dos
manifestantes e componentes de movimentos sociais. Ingressamos no alto
risco de todo manifestante ser um potencial inimigo da ordem social. O
que nos remete às leis de exceção do regime militar.
Quando tudo parecia uma
obra inédita de George Orwell, a ofensiva da base governista após a
trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, durante manifestação no
centro do Rio de Janeiro, em 06 de fevereiro, nos sacode outra vez. O
projeto de lei, que no Senado recebeu o número 499/2013, foi proposto
por uma comissão parlamentar mista criada para consolidar várias leis em
um único projeto. O senador petista Paulo Paim, que havia pedido
análise do projeto por entender que poderia infundir terror ou pânico
generalizado, perdeu o bom senso e afirmou no dia 10 de fevereiro:
“Mediante o acontecido
com o cinegrafista, que foi covardemente assassinado, acredito que o
Senado tem que responder, não só para esse fato, mas para alguns que já
aconteceram e outros que vão acontecer se nada for feito. Por isso,
estou disposto a retirar o requerimento e fazer o debate que faríamos na
CDH”.
Foi acompanhado pelo senador Jorge Viana (PT-AC) que afirmou ser possível aprovar o projeto em regime de urgência.
Pressa que mereceu
repreensão da direção nacional do Partido dos Trabalhadores. Em nota
pública, a direção do partido ao qual a Presidente da República é
filiada sustentou:
“O Partido dos
Trabalhadores acompanha com atenção os debates no Congresso Nacional
sobre a adoção de uma legislação antiterror, especificamente no cenário
das manifestações que têm ocorrido no País. Entretanto, o PT não pode
aceitar qualquer texto legal que não tipifique – com clareza,
objetividade e precisão – crimes eventualmente ocorridos no contexto
dessas manifestações. Uma lei vaga nessa caracterização penal atenta
contra os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição e
poderia servir à criminalização de movimentos sociais, o que seria um
inaceitável retrocesso democrático. Em que pese nenhum parlamentar seu
estar ligado à autoria de projetos dessa natureza, o PT acha que o
Brasil precisa aperfeiçoar seus textos legais com vista a ter
dispositivos cíveis e penais que coíbam atos contra o patrimônio
público, o patrimônio privado e, principalmente, a integridade das
pessoas, provocados por aqueles que se aproveitam de legítimas
manifestações populares para cometer ações de violência. Com a
proximidade da Copa, a sociedade brasileira exige segurança para exercer
seus direitos de liberdade de expressão, de pensamento e de reunião. O
Poder Público necessita de um marco legal atualizado para lidar com
novas situações que ocorram nesses eventos. Por isso, o PT tem orientado
seus parlamentares a terem o máximo cuidado com projetos dessa natureza
para que uma lei em defesa da sociedade não se transforme em lei contra
a sociedade.” – Rui Falcão, Presidente nacional do PT.
O que, afinal, ocorre? A sequência de fatos não sugere pânico do governo que dirige o país?
Afinal, algo de muito estranho parece contradizer toda história do partido governista e seus dirigentes.
Com o advento do AI-5, a própria Presidente da República e vários de
seus colaboradores não recuaram, como parecem acreditar, agora, que
ocorrerá com o Manual de Garantia da Lei e da Ordem e a proposta de lei
499/2013. Ao contrário, vários pegaram em armas. O que levaria esses
personagens, tendo passado por este itinerário político, acreditarem que
esta reação geraria um resultado eficaz ou apaziguador?
Mais: a figura máxima do
petismo, o ex-Presidente Lula, foi líder das maiores manifestações
urbanas ao longo dos anos 1980 e parte dos 1990. Foi preso por liderar
uma imensa greve de metalúrgicos. Liderou a rejeição da eleição indireta
de Tancredo Neves e era dirigente do PT quando seu partido decidiu
bradar o slogan “Fora FHC”.
A motivação seria a
contaminação do processo eleitoral de outubro pelas manifestações que se
avizinham em protesto aos gastos públicos e efeitos sociais com a Copa
do Mundo? Se for, não seria uma declaração de perda de controle das ruas
ou de transformação de uma rica história de lutas sociais e protestos
de rua em paranoia conservadora?
Continuo perplexo. O último
semestre revelou a cara do novo Brasil. Aquele que apareceu nas
manifestações de junho e aquele dos rolezinhos. De dezembro de 2013 a
fevereiro deste ano, foi a vez do governo petista se revelar. E, com
ele, grande parte de seus dirigentes.
Continuo perplexo.
—
Rudá Ricci é sociólogo, doutor em ciências sociais
(Unicamp), diretor do Instituto Cultiva. Autor de “Lulismo” (Editora
Contraponto, sobre os oito anos de governo Lula) e “Nas Ruas” (Editora
Letramento, sobre as manifestações de junho de 2013).
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