PICICA: "Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek afirma que “não
deveríamos permitir que o inimigo definisse o campo de batalha e o que
está em jogo, de modo que acabamos nos opondo abstratamente a ele,
apoiando uma cópia negativa do que ele quer.”1
Transposta para o contexto das manifestações que tomam conta das ruas
do Brasil desde as jornadas de junho de 2013, essa frase não poderia nos
ajudar a pensar a relação entre os protestos e a mídia corporativa
(isto é, os jornais e revistas de maior circulação, bem como, sobretudo,
as concessões de rádio e televisão controladas por grandes capitais)?"
Mídia corporativa: a catraca da democracia
19/02/2014
Por Germano Nogueira Prado
Por Germano Nogueira Prado, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“(…) o que tende a desaparecer sob a máscara abstrata do nome “violência” são as diferenças essenciais à compreensão (política) do fenômeno em causa.“
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Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek afirma que “não
deveríamos permitir que o inimigo definisse o campo de batalha e o que
está em jogo, de modo que acabamos nos opondo abstratamente a ele,
apoiando uma cópia negativa do que ele quer.”1
Transposta para o contexto das manifestações que tomam conta das ruas
do Brasil desde as jornadas de junho de 2013, essa frase não poderia nos
ajudar a pensar a relação entre os protestos e a mídia corporativa
(isto é, os jornais e revistas de maior circulação, bem como, sobretudo,
as concessões de rádio e televisão controladas por grandes capitais)?
Se
não, vejamos: em linhas gerais, podemos distinguir pelo menos três
posturas básicas através das quais a mídia corporativa procurou contar
sua própria versão dos protestos. A primeira delas consiste em tentar
esvaziá-los ou minimizar sua importância, simplesmente ignorando-os ou,
não raro, incluindo-os no máximo na parte do respectivo veículo que
trata dos problemas de trânsito. Dessa maneira, o que ocupa o primeiro
plano da narrativa “jornalística” não são as reivindicações que
mobilizam os manifestantes, mas o efeito (negativo) que esta mobilização
tem para a vida “normal” da cidade.
Assim,
com menor ou maior clareza, protestos podem ser interpretados como
anomalias que, no exercício regular da política, poderiam não existir –
melhor: não deveriam existir. Considerando que o estopim dos protestos
foi o aumento das passagens do transporte público, que trouxe consigo o
problema da mobilidade urbana e da garantia real (socioeconômica) do
direito de ir e vir, é no mínimo
curioso notar a inversão em jogo aí: os protestos são tomados como um
problema que afeta o trânsito “normal”, quando na verdade o
“funcionamento normal” cotidiano deste é que é o problema (causado,
sobretudo, pelo uso excessivo do transporte privado) para o qual aqueles
protestos apresentam uma solução (a melhora no transporte público).
Mas
aqui talvez uma segunda mudança no campo de batalha delimitado pela
mídia seja ainda mais fundamental. Pois se é verdade que não queremos
abrir mão de uma sociedade democrática; se é verdade que se trata de
ampliar e aprofundar a democracia (social, econômica e politicamente),
então as manifestações ou, antes, as mobilizações populares não devem
ser pensadas como episódios a serem eliminados. Pelo contrário: a
auto-organização da sociedade, a ocupação das ruas com o debate das
questões que dizem respeito à comunidade como um todo é elemento
constitutivo indispensável de uma comunidade que se quer democrática.
Nesse caso, tratar-se-ia não de insistir na “normalidade” das
manifestações ou na sua necessidade “episódica” no estado atual da nossa
sociedade, mas na importância estrutural da mobilização popular para a
constituição de uma democracia efetiva.
É
bem verdade que, mesmo abrindo espaço para a concepção das
manifestações como “anormalidade” na vida da cidade, quando é levada a
entrar no mérito da questão, a mídia tende a se valer do discurso de que
as manifestações “fazem parte da democracia”. Esse discurso acabou
surgindo, de certo modo, sobretudo quando esta adotou uma segunda
postura: a tentativa de “disputar” a pauta do movimento.
Com
efeito, o aumento da mobilização levou a um deslocamento do campo de
batalha em torno das manifestações no interior do próprio discurso
midiático: não podendo mais ignorá-las ou tratá-las como meros problemas
de trânsito, a batalha então é para definir “o que querem os
manifestantes” – o que fez com que a postura da mídia oscilasse em pouco
tempo de uma condenação total a um apoio ambíguo aos protestos.
(Emblemática dessa mudança é a “retratação” de Jabor pouco tempo depois
ter condenado veementemente as manifestações)
Tratou-se
de um “apoio ambíguo” porque, embora represente o reconhecimento
inegável da força das ruas, ele veio acompanhado de um discurso que
busca(va) pautar o movimento e, com isso, tirar-lhe a força e escondê-lo
no mesmo movimento em que (parcialmente) o mostra. As estratégias nesse
sentido foram (e são) variadas: ora se tentou dizer que a manifestação é
“contra tudo que está aí”, o que leva a um esvaziamento de pautas
concretas e imediatamente atingíveis (como a luta contra o aumento da
passagem); ora se disse que é “pelo próprio direito de se manifestar”, o
que leva ao risco de tomar as manifestações como algo que se esgote no
próprio movimento de se manifestar, que não espera nenhuma resposta
efetiva do poder público ou não visa constituir algo de novo e duradouro
a despeito deste; ora, enfim, tentou-se fazer com que surfassem na onda
de manifestações pautas tradicionalmente conservadoras como a oposição
aos programas de transferência de renda; a redução dos impostos; o
nacionalismo exacerbado; e até uma difusa “antipolítica”, presente na
opinião comum de que “o problema são (apenas) os políticos” (o que tende
a levar a uma leitura meramente personalística do campo político),
articulada, por sua vez, com a reivindicação de uma “moralização”
abstrata da política – isto é, com uma “moralização” que desconsidera o
papel (estrutural) de corruptor desempenhado pelo (grande) capital.
Certamente
essas tentativas têm algum respaldo na composição complexa que as
manifestações foram tomando (e, quiçá, em parte já tinham ab initio)
na medida em que cresciam e outros grupos e pessoas se integravam ao
movimento. Em comum, uma espécie de insatisfação de fundo, mas que se
desdobrava em uma miríade de reivindicações concretas (ou nem tanto),
por vezes contraditórias, e não limitadas às referidas acima. Se, por
ex., os relatos de militantes de partidos de esquerda tendo suas
bandeiras retiradas e sendo espancados mostram que houve (ou há)
elementos de cunho reacionário e fascista nas manifestações (sejam eles
“infiltrados” ou não), é difícil negar que as organizações da esquerda
tradicional (sindicatos e partidos, sobretudo) em geral não têm
conseguido – ou talvez, ao menos tal como sempre se estruturaram, não
podem – estar à altura dos eventos que tiveram início em junho. O quanto
a mídia é “causa” ou “expressão” de alguns desses elementos é (quase)
impossível – e, quiçá, ocioso – dizer. O que interessa é marcar de que
“causas” ela toma partido, procurando, assim, (de)limitar o campo das
lutas. Mal ou bem, parece haver algum avanço quando o mérito mesmo das
mobilizações entre em jogo no discurso midiático – avanço que,
dependendo do modo como este mérito entra em jogo, pode ser apenas
aparente.
De
modo mais ou menos contemporâneo a essas duas e atravessando-as,
aparece uma terceira postura: a criminalização. Se a presença desta é
clara no primeiro comportamento mencionado (as manifestações obstruem
ilegalmente o trânsito, etc.), no segundo, ela precisou, em um primeiro
momento ao menos, ser “mais sutil”. Não sendo possível condenar os
protestos tout court,
a mídia operou a partir do corte entre “manifestantes pacíficos” e
“vândalos”, que, por sinal, vem se mostrando como uma eficaz versão da
velha estratégia “dividir para governar”. Os “vândalos”– ou seus (quase)
sinônimos na gramática midiática: os “mascarados”, os “black blocs” –
funcionaram desde então como nome abstrato para tudo que estragava a
“festa da democracia”, em especial os episódios de violência nos
protestos, que teriam (por si só) “afastado os cidadãos de bem” das
ruas.
É
talvez aqui que a advertência presente na frase de Zizek pode ser mais
útil. Pois o que tende a desaparecer sob a máscara abstrata do nome
“violência” são as diferenças essenciais à compreensão (política) do
fenômeno em causa2:
a diferença entre a violência dos manifestantes e a dos policiais,
entre a resistência e a repressão ativa (não raro arbitrária e
desproporcional), entre o depredação de coisas e o ataque a pessoas. A
abstração de todo esse complexo de relações vem articulada, em geral,
com a abstração de todos os fatores envolvidos para a concentração em um
deles, como principal, se não única causa do fenômeno (os vândalos).
Isso permite que o campo de batalha seja dominado por uma falsa
disjunção, que escamoteia o problema: tratar-se-ia de ser “contra o
vandalismo” ou “a favor” dele. Mas, na medida em que “ser a favor do
vandalismo” é entendido como crime, parece restar apenas uma opção para
quem não quer se subtrair ao (ou, antes, ser expulso do) jogo político
oficial.
O
que temos assistido depois da morte trágica do cinegrafista Santiago
Andrade é uma demonstração muito clara desse tipo de operação. O que se
viu (e se vê) não é a busca de justiça, mas um inquérito policial se
tornar um espetáculo tragicômico de gosto duvidoso protagonizado por um
advogado de “defesa” que é também delator de um dos seus clientes e por
dois jovens constrangidos ao desempenho do papel, prescrito por quem
comanda o show, de (simbolizar os) “vândalos”. Ao mesmo tempo, a mídia
vem promovendo, com o apoio de políticos da situação (à direita e à
“esquerda”), uma campanha por uma “repressão mais dura” dos protestos,
sobretudo pela criação de instrumentos legais ad hoc.
Nisso tudo, foram convenientemente “esquecidas” as outras mortes e as
outras vítimas da “violência nas manifestações”; esqueceu-se que a
repressão policial é comprovadamente a principal responsável pelos
ferimentos e pelas mortes nos protestos; e esqueceu-se até que dentre as
vítimas da polícia estão membros da grande imprensa.
Assim,
ainda que a lógica da criminalização não seja novidade, é preciso notar
uma mudança crucial: o uso político dessa morte trágica por parte da
mídia parece mostrar que a estratégia não é a condenação da violência
nas manifestações, mas a criminalização das manifestações tout court
usando como arma o discurso abstrato sobre a violência – assim como a
criminalização de militantes e de figuras da política institucional que,
mal ou bem, apoiaram os protestos e/ou poderiam colher dividendos
políticos destes.
A
princípio, os casos emblemáticos aqui são o da militante Sininho e o do
deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL. Mas talvez emblemático mesmo
seja o caso de Caio Silva de Souza e Fábio Raposo, os dois jovens
acusados da morte de Santiago Andrade: condenados pela mídia antes do
devido processo legal, “representados” (até pouco tempo) por um advogado
que parece mais preocupado com a espetacularização do caso e seu uso
para a perseguição política e a criminalização dos protestos, seria o
caso de a esquerda (sem aspas) e os movimentos sociais não só não
participarem do linchamento público, mas se posicionarem firmemente
contra qualquer tentativa do gênero e exigir, no mínimo, o respeito aos
direitos dos acusados e ao devido processo legal.
O
caso de Marcelo Freixo, todavia, parece ser emblemático em (pelo menos)
mais um sentido: como figura destacada da esquerda, ao condenar
abstratamente a “escalada da violência nas manifestações”, ao assinar o
pedido de CPI do Vandalismo, ele não teria cedido demais o campo de
batalha? Mais, ainda: uma vez que os nomes abstratos de “vandalismo” e
“violência” são as armas da criminalização das manifestações, mais do
que “apoiar uma cópia negativa do que o inimigo quer”, não estaríamos
aqui muito próximos de um passo mais nefasto – capitular diretamente
diante do que ele quer, comprando inclusive a gramática proposta por
ele?
Contra
essa leitura, há quem argumente que ele “está sob os holofotes da
mídia”, que “é preciso prudência”, que ele pode “evitar a criminalização
estando dentro da CPI”. Mesmo julgando que ainda assim seria melhor
arriscar ao menos recusar mais incisivamente o título abstrato de
“violência” (e o de “vandalismo”), o que é decisivo aqui são antes os
efeitos da decisão (sic) – pois, por melhores (ou piores) que sejam as
razões que levam a esta, a sua importância será medida pelo o que ela é
capaz de fazer (ou não) no espaço público e, assim, na escolha dos
caminhos de uma comunidade. Pelo sim e pelo não, talvez seja o caso de
fazer valer aqui, na direção inversa, o que disse (e o que faz) Pablo
Ortellado com relação aos Black Blocs3:
ainda que discordando da sua tática, Freixo segue sendo (ainda, espero)
um companheiro (de trincheira). Com muito mais razão, o mesmo vale para
Caio e Raposo: culpados ou não, não se pode transigir nem jurídica nem
politicamente com a sua redução a bodes expiatórios e a instrumentos de
criminalização dos protestos, dos movimentos sociais, da participação
popular.
Contudo,
é preciso chamar a atenção para outro ponto: este tipo de argumento em
defesa do Freixo é sintomático do que foi dito até aqui. Pois em tal
argumentação, não é (só) o sistema político(-representativo), mas é a
mídia corporativa (que, de resto, pode ser pensada como parte deste
sistema) que teria o poder de influenciar na formação de consensos
(tácitos), no horizonte dos quais o debate pode ser feito e as decisões
são tomadas; de delimitar, enfim, decisivamente, o campo de ação
“possível”.
Nesse sentido, é justo dizer que a mídia corporativa é uma das, se não a
catraca que emperra a (nossa) democratização – não raro cobrando
caríssimo, a preço de coerência, de liberdade, de alma para quem quer
passar, a todo custo, para o outro lado. Certamente as mídias
alternativas oferecem hoje muitas maneiras de pular a catraca (as
possíveis inconsistências da “resolução” à jato do caso da morte de
Santiago Andrade, por ex., já aparecem por todo lado). Mas a energia que
ainda é gasta em torno das pautas que a mídia corporativa veicula,
sobretudo através das grandes concessões de televisão, mostra o quanto
ele ainda é decisiva para a constituição do debate político.
Por
isso, talvez uma das muitas contribuições que as mobilizações que
começaram em junho podem dar, e quiçá uma das mais decisivas, é a de
colocar na ordem do dia a necessidade de democratização da mídia, em
especial das concessões de rádio e televisão – que, nunca é demais
lembrar, são públicas. A dobradinha entre Globo e polícia na exploração
política da morte de um membro da própria imprensa, uma espécie de
“(Não) vale a pena ver de novo” dos tempos da ditadura com cara de “A
volta dos que não foram”, mostra que não só a polícia precisa ser
desmilitarizada. Democratizar a mídia é (também) desmilitarizá-la, no
sentido de remover o que ela tem de ditadura (da comunicação), tanto na
sua origem quanto na sua estrutura.
O
tamanho e a duração da tarefa são testemunhados pelo quão pouco ela
avançou desde o início da (re)democratização do Brasil, apesar do que é
disposto na Constituição e dos esforços de alguns setores da sociedade
nesse sentido4.
Todavia, se, por um lado, a mídia corporativa ainda tem papel decisivo
na delimitação do campo em que se trava a luta política – por outro, é
sobretudo a mobilização da multidão que pode mudar as regras do jogo
para que se constitua uma comunicação enraizada, de fato, no comum.
—-
Germano Nogueira Prado é professor de filosofia do Colégio Pedro 2º e doutorando em filosofia pela UFRJ.
1 São Paulo: Boitempo, 2011. p. 148.
2 Cf. o recente artigo de Pablo Ortellado: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-bloco-dos-desobedientes,1130747,0.htm
3 https://www.facebook.com/ortelladopablo/posts/664939046905005
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