fevereiro 10, 2014

"O dia em que a praia de BH foi à luta", por Bruno Cava

PICICA: "[...] o comum se faz fabricando o direito à cidade contra todos os projetos antidemocráticos. E faz isso criando novos direitos."
O dia em que a praia de BH foi à luta
FotoBH2

Fazia um calor de 35 graus. A aglomeração no meio da praça sambava ao som de duas bandas de carnaval. Era mais um domingo de praia na Praça da Estação, centro de Belo Horizonte. No último sábado, 8 de fevereiro, éramos mil pessoas aparentemente à toa, muitas sem camisa, de óculos escuros, biquíni ou sunga, as peles vestidas de puro sol, numa paisagem que a maioria não esperaria ver numa cidade a 350 km do mar. Há vários anos, os corpos resistem à vontade do poder público de cercá-la, vedando o acesso livre. Nesse dia, tinha alguma coisa no ar. Um “a mais” em relação à performance habitual dos belo-horizontinos na Praia da Estação. Uma comunicação a baixa frequência corria solta.

Foi quando, perto das cinco, uma coluna de gente se destacou e foi até o viaduto Santa Tereza, que fica vizinho à praia. Sem parar de batucar e dançar por um momento, o bloco de carnaval desmontou a cerca de tapumes montada pela prefeitura e ocupou o espaço debaixo da estrutura de concreto, onde havia um canteiro de obras e escombros. O viaduto Santa Tereza é um ponto de encontro já estabelecido da cena cultural e ativista de BH. Ali, por exemplo, vinham acontecendo o Duelo de MCs, assembleias horizontais e debates sobre o direito à cidade. Ele também serve, há tempos, para o pernoite de moradores em situação de rua.

No sábado, a festa se convertia em ação política. Via-se uma unidade na diferença, invejável às organizações de luta de qualquer metrópole. Reunindo coletivos de luta de sem tetos, tarifa zero, moradia, grupúsculos mais ou menos orgânicos ou partidarizados, camelôs, midiativistas e arquitetos militantes, autonomistas, anarquistas, queers ou punks; o movimento conseguiu levar quase mil pessoas à ação direta, surpreendendo a polícia e a guarda municipal. No final da tarde e por toda a noite, se alternaram batucadas, funk, rap, kuduro, poesia e repente. Os playoffs de um torneio de MCs aconteceram com uma longa faixa como pano de fundo: “Fora Lacerda”. Pixadores e grafiteiros cooperavam para recobrir as superfícies do viaduto.

Como causa imediata, como se ouviu nas falas, a ocupação se opõe às obras iniciadas em janeiro pelo poder municipal para “reformar” a área do viaduto. Um projeto gestado em gabinetes e agora imposto a quem produziu e produz o espaço. O movimento, no entanto, não aceitava que 1) fossem expulsos as pessoas em situação de rua que ali se instalam, ainda que ocasionalmente; 2) se higienizasse o espaço, com a remoção de expressões estéticas, especialmente o pixo; 3) se destruísse a gestão autônoma já existente, capaz de organizar shows e eventos e ainda propiciar segurança, capaz de determinar suas próprias regras e gerir o espaço.

No sábado, a retirada dos tapumes pelos manifestantes foi símbolo para a recusa do isolamento do viaduto de seus reais produtores. Se, na atual gestão da cidade, o caráter público do espaço significa planejamento, intervenção e regulação de cima pra baixo, de maneira antidemocrática, o movimento demonstrou que deseja outra coisa. Nem privado, nem público — mas uma segunda via a essa falsa oposição: o comum — a autonomia e a auto-organização das formas de vida, além da lógica do mercado e do estado (duas faces do poder constituído).

O sem teto ameaçado pela polícia, o queer perseguido por gangues homofóbicas, a cultura de afirmação negra continuamente desqualificada são apenas alguns exemplos de sujeitos sociais, com suas culturas vivas de resistência, que sabem muito bem como o “público” não é garantia de nada, quando se vive numa sociedade fundada sobre a desigualdade, o preconceito e o racismo. O fato é que, pressionado pelos acordos de governabilidade, e inepto para relacionar-se com a cidade que governa, o poder público não pode tolerar a autonomia do movimento de ocupação e valorização do urbano. O poder público precisa impor suas regras para controlar e regular a exploração, para pacificar o território.

Não admira que, à ocupação nos últimos anos pelo duelo de MCs, sem tetos e grupos autônomos, o poder responda com o projeto de um complexo de “esportes radicais”. Ao direito à cidade como potência de produzir e produzir-se na cidade, a prefeitura prefere um pacificado centro de lazer com tintura cool, que mal esconde o racismo de suas pretensões higienizadoras. Um ativista sem teto do grupo Real na rua, na assembleia de domingo, disse que “querem nos jogar pro esgoto; o feio, o preto, o sujo não podem existir na cabeça da prefeitura, mas na verdade são eles que querem sujar o meu, o nosso viaduto, o que nós criamos”. O projeto do poder continua sendo destruir o quilombo — ainda que pós-moderno.

No entanto, o comum se faz fabricando o direito à cidade contra todos os projetos antidemocráticos. E faz isso criando novos direitos. O sem teto não quer necessariamente uma moradia como as outras: ele lança à cidade outra maneira de percebê-la e habitá-la. O camelô, igualmente, não pede somente por reconhecimento e direitos trabalhistas: ele traz em si já um saber vivo a respeito da mobilidade urbana e liberdade produtiva. As lutas pela cidade, igualmente, não visam a apenas disputar um quinhão como os outros, dos empreendimentos privados ou espaços públicos, mas pôr em questão o próprio estatuto do espaço, a própria lógica proprietária e verticalizada: como produzir o urbano, e como vivê-lo como caldo relacional de diferenças. É assim que, em vez de um pacificado espaço de lazer para “esportes radicais”, propagandeado pela prefeitura para destruir o quilombo e “valorizar” a região para o mercado imobiliário; trata-se de uma ocupação que pretende levar o direito à cidade à sua dimensão criativa: resistir é criar e, criando outra cidade, inventar a si mesmo.

No viaduto Santa Tereza, tomado por um conjunto tão rico, é esperado que apareçam algumas tensões, como as já experimentadas desde as jornadas Occupy, inclusive em sua expressão, por aqui, com as ocupas (AcampaSampa, OcupaBH, OcupaRio, Ocupa dos Povos etc). Como, por exemplo, as tensões entre acampados e os que dormem em casa, militantes e não-militantes, com ou sem partido, pixo ou grafite, e assim por diante. Essas tensões não precisam decompor e afinal destruir o movimento, desde que ele consiga fazê-las funcionar politicamente, numa contínua requalificação. A tensão entre composição e decomposição do movimento depende dessa capacidade de tanto respeitar as singularidades sem alguma obsessão em unificar pautas ou forjar consensos rígidos, quanto também construir uma prática política por meio do que elas se fortaleçam mutuamente.

Nesse sentido, o eixo #Nãovaitercopa, já entreouvido e gritado no viaduto, pode ser uma boa aposta para conjugar pautas afirmativas de direitos e resistência ao poder, em vez de ser usado apenas como contestação formal. O comum, afinal, é terreno de criação de luta inclusive ao redor das próprias pautas, em permanente atrito com o poder constituído uma vez que este tentará neutralizar, pacificar e, enfim, cooptar o comum. Mas, enquanto as diferenças permanecerem calcadas sobre a rede de conflitos e reexistências urbanas, elas não poderão ser facilmente vencidas e capturadas, e não se deixarão traduzir-se apenas como valores para o mercado ou a representação institucional.

Aquele sábado tão ensolarado, quando BH virou mar, não poderia ter ocorrido em momento mais oportuno e necessário, ante os últimos acontecimentos nas lutas da multidão no Brasil. Um evento exemplar de organização.

Foto: Talita Tibola.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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