PICICA: "Eu
tenho ligações com Caio. Não por ser um dos grevistas que ele,
provavelmente, protegeu em outubro de 2013 da sanha fascista da polícia
militar. Mas por ter compartilhado nas ruas das mesmas dores que ele,
por ter descoberto, talvez junto com ele, a potência do agir em comum.
Por ter concebido junto com ele que o tempo não é uma forma de ser, mas
uma força constitutiva, que nos constitui, ao mesmo tempo que é
constituída pelo nosso agir, pelo nosso viver. Eu tenho ligações com
Caio. Todos temos. E deveríamos exaltá-las. Deveríamos defendê-las. Para
defender Caio, mas também para defender o direito de outros Caios irem
às ruas. Para defender o direito de outros Caios tomarem o porvir em
suas mãos. Para defender o direito de outros Caios serem dignos do seu
próprio tempo."
Eu tenho ligação com Caio
24/02/2014
Por Silvio Pedrosa
Por Silvio Pedrosa, professor de história da rede municipal (Rio de Janeiro) e UniNômade
“Quem de nós pode ou
poderia afirmar ligações com Caio? Pouquíssimos. Talvez ninguém. Para
nossa vergonha, pois o ‘pobre’ não passa de uma figura conceitual em
nossas bocas e teclados, em nossos textos e teses.”
–
“se olhei para o sol resplandecente
ou para a lua que caminha com esplendor,
e meu coração se deixou seduzir secretamente,
e minha mão lhes enviou um beijo;
também isso seria crime digno de castigo,
pois teria renegado ao Deus do alto.”
Jó, 31, 26-28.
Caio
Silva de Souza, o acusado pelo manuseio do artefato explosivo que,
lançado ao chão, serpenteou pelo ar, atingiu e vitimou o cinegrafista
Santiago Andrade, é um jovem trabalhador de apenas 22 anos. Sob
descomunal pressão, inclusive de seu próprio advogado, ele confessou ter
segurado o rojão que, no dia 6 de fevereiro, durante manifestação
contra o aumento das passagens de ônibus, matou o funcionário da Rede
Bandeirantes de Televisão. No momento em que tudo ocorreu, a tropa de
choque da polícia militar lançava uma chuva de bombas de gás sobre os
manifestantes, dando prosseguimento a uma repressão brutal, iniciada
momentos antes dentro da estação Central do Brasil (mesma repressão que,
aliás, ocasionou a morte de Tasman Accioly, um ambulante atropelado por
um ônibus desgovernado em razão da confusão instaurada pela PM e
tornado estatística instantaneamente, como acontece com a vasta maioria
das mortes produzidas pela ação das nossas forças policiais).
Morador
de Nilópolis, na Baixada Fluminense, Caio e sua mãe moravam de favor na
casa de parentes. Ele dormia no sofá da sala. A mãe não tem condições
de trabalhar, pois a esquizofrenia de seu pai (avô de Caio) requer
cuidados. Para ajudá-lo na rotina diária, ela, há cerca de um ano,
passou a pagar, com parte da pensão do pai, o aluguel de uma quitinete
próxima à estação de Olinda – assim ele teria que tomar apenas uma
condução para ir e voltar ao trabalho. Auxiliar de serviços gerais no
Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, Caio era um precário, trabalhando
temporariamente para uma empresa terceirizada em troca de um salário
mínimo.
Caio,
segundo a própria mãe, se considera um herói, responsável coletivamente
pela redução das passagens de ônibus, resultado das mobilizações
multitudinárias de junho de 2013. Ele ia a todas as manifestações,
confirmando, do seu celular (pois não tem computador pessoal), a
presença nas mobilizações marcadas nas redes sociais. Nelas colocava seu
próprio corpo em risco, resistindo à violência policial, para que
outros manifestantes pudessem se afastar em segurança do centro do
conflito, para que a brecha democrática aberta pelas mobilizações
sociais não se fechasse, varrida pela violência que as polícias
despendem para quem ousa exercer o seu direito de manifestação.
Denunciado
por outro manifestante, Fabio Raposo, ele foi capturado na Bahia quando
tentava chegar ao Ceará na casa de avós. A prisão foi transmitida ao
vivo, irrompendo na programação da madrugada como notícia de última
hora, pois a Rede Globo de Televisão teve acesso privilegiado à
informação de sua prisão, mediada pelo advogado de seu próprio delator
(que anteriormente havia defendido milicianos e emergiu misteriosamente
na defesa de Raposo) que, ato contínuo, tornou-se o seu próprio
advogado. Antes mesmo de prestar depoimento à polícia, Caio foi
interrogado pela repórter que acompanhava o seu caso. A mídia
corporativa dava mais um passo no processo de se tornar uma instância
decisória do judiciário brasileiro. Foi indiciado por homicídio doloso
(com intenção) qualificado (por uso de explosivo – legalmente vendido em
qualquer esquina do país e usado às toneladas a cada final de ano) ao
arrepio das leis, ao arrepio do direito, como esclareceu o jurista Nilo Batista.
Como provas da sua culpa apenas a própria confissão, extraída sob
condições completamente excepcionais, e fotos e imagens de TV
completamente inconclusivas.
Caio
é mulato, pobre, morador da periferia e sem conexões políticas. Após a
prisão, ele confessou receber 150 reais por manifestação, insinuando que
tal dinheiro viria de partidos (e organizações) de extrema-esquerda,
cujas campanhas eleitorais são financiadas, com parcos recursos, a
partir de doações de pessoas físicas. Um dos quadros mais conhecidos de
um desses partidos políticos, que recentemente alcançou quase um milhão
de votos na eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro, estaria
supostamente envolvido no esquema. Durante dias, durante semanas,
mobilizaram-se diversas redes da esquerda carioca na defesa do nome
desse político. Todos tinham ligações com ele e as exaltavam com orgulho
nas redes sociais. Caio não só não mereceu qualquer mobilização, como
foi tratado de forma protocolar pela maioria das organizações de
esquerda da cidade e do estado: ‘as culpas precisam ser apuradas e os
envolvidos punidos!’ ouvimos e lemos. Alguns dentre estes devem ter
aludido às passagens de Caio pela polícia para desqualifica-lo (dando um
crédito seletivo à mídia corporativa, aquela mesma que fabricava um
‘factoide’ contra o seu político predileto – as passagens não passavam
de detenções para averiguação não confirmadas).
O
próprio político, presidente da Comissão de Direitos Humanos da
Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro, não se movimentou
para apurar as condições suspeitas nas quais Caio havia sido envolvido
no incidente do dia 6 de fevereiro. Limitou-se a defender a própria
‘trajetória’, declarando-se contrário a ‘qualquer violência’ e
partidário do ‘isolamento’ dos manifestantes violentos (no discurso
midiático-policial: ‘vândalos’ e ‘baderneiros’). À essa altura Caio era
só mais um pobre encarcerado nas prisões brasileiras. Sua identidade já
havia sido subsumida pela onda de criminalização e perseguição política
para a qual ele serviu apenas de pretexto. Caio era apenas uma peça de
carne negra a ser moída no moinho satânico da mídia corporativa. Apenas
um anel (um símbolo que representava a perniciosidade da esquerda
autonomista que surgiu nas ruas e redes em 2013) a ser cedido em troca
do cessar-fogo e da manutenção da mão da esquerda partidária.
Quem
de nós pode ou poderia afirmar ligações com Caio? Pouquíssimos. Talvez
ninguém. Para nossa vergonha, pois o ‘pobre’ não passa de uma figura
conceitual em nossas bocas e teclados, em nossos textos e teses. E, no
entanto, estaríamos circunscrevendo nossas relações de forma
excessivamente judicial (talvez inconscientemente a única forma pela
qual poderíamos pensar – com horror – estar relacionados a Caio) sem
sequer notar que muitos de nós que tivemos (e exaltamos) ligações com o
deputado estadual envolvido no caso talvez também jamais tenhamos
mantido qualquer relação comprovável com ele.
Pode-se
mesmo (e certamente alguns terão dito como forma de não macular essa
ala do espectro ideológico) dizer que Caio não é de esquerda. Não
possui, certamente, ‘formação política’. Não seria necessário, então, ou
mesmo possível esboçar ‘ligações com Caio’. E nem seria recomendável,
sob pena de incluir variáveis complexas ao cálculo político-eleitoral.
O
quê Caio possuía, entretanto, era um impulso de justiça, que declarou
na madrugada em que foi preso à funcionária das organizações Globo:
queria uma educação pública melhor (para outros Caios mais jovens,
moradores de Nilópolis e da periferia carioca e fluminense) um sistema
de saúde mais digno (para seu avó, esquizofrênico, para sua mãe, que
padece de problemas neurológicos). Os ‘realistas’ de esquerda,
sobretudo, apologistas da realidade, dirão que Caio foi ingênuo. Que não
se muda o mundo nas ruas. Que é preciso engajar-se numa organização,
militar num partido: ‘disputar as instituições’. A ‘ingenuidade’ de Caio
teria sido, então, a crença num dos lugares comuns que garantem
pertencimento à esquerda: a insatisfação com o atual estado de coisas e a
disposição para participar de um movimento real que o possa abolir.
Nossas
ligações com Caio são de ordem ontológica. Caio estava conosco em 17 de
junho, na ‘batalha da ALERJ’. Em 20 de junho, Caio deve ter enfrentado a
violência policial, o ‘caveirão’, enquanto muitos de nós corríamos para
longe do confronto. Também deve ter estado nas ruas quando os
professores grevistas foram atacados na Cinelândia enquanto seu futuro
profissional era decidido no interior de uma Câmara de vereadores
cercada e defendida por centenas de policiais. A ‘ingenuidade’ de Caio
se manifestava na alegria de estar junto, de agir politicamente em
comum, construindo uma democracia, uma democratização por dentro de uma
ordem oligárquica, cujas instituições apenas formalmente delineiam uma
expectativa de soberania popular. Caio era (e é) uma expressão de
singularidade, de desejo por outro mundo.
Eu
tenho ligações com Caio. Não por ser um dos grevistas que ele,
provavelmente, protegeu em outubro de 2013 da sanha fascista da polícia
militar. Mas por ter compartilhado nas ruas das mesmas dores que ele,
por ter descoberto, talvez junto com ele, a potência do agir em comum.
Por ter concebido junto com ele que o tempo não é uma forma de ser, mas
uma força constitutiva, que nos constitui, ao mesmo tempo que é
constituída pelo nosso agir, pelo nosso viver. Eu tenho ligações com
Caio. Todos temos. E deveríamos exaltá-las. Deveríamos defendê-las. Para
defender Caio, mas também para defender o direito de outros Caios irem
às ruas. Para defender o direito de outros Caios tomarem o porvir em
suas mãos. Para defender o direito de outros Caios serem dignos do seu
próprio tempo.
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