fevereiro 03, 2014

"Contra a transparência", por James Frey e Jocelyn Cohn

PICICA: "O trabalhador militante não deveria ter medo de fazer exigências que não cabem no orçamento na sua forma atual; uma exigência desse tipo é a essência do radicalismo."

Contra a transparência

2 de fevereiro de 2014  

O trabalhador militante não deveria ter medo de fazer exigências que não cabem no orçamento na sua forma atual; uma exigência desse tipo é a essência do radicalismo. Por James Frey e Jocelyn Cohn

A exigência por transparência surge inevitavelmente nas lutas no local de trabalho, especialmente quando estão envolvidas organizações liberais [*], sindicatos ou Organizações Não Governamentais (ONGs). “Abram os livros!”, exigem alguns, “e nos deixem ver de onde o dinheiro está vindo, para onde está indo e exatamente quanto pode ser gasto!” O imperativo de abrir os livros pode ser inspirado por intenções nobres, como o desejo por uma democracia radical no lugar de trabalho, e aparece em resposta ao mistério criado pela gerência sobre a fonte da riqueza da empresa. No entanto, a exigência de ver o orçamento dos patrões implica que os trabalhadores são um custo para o qual é necessário encontrar dinheiro, quando, na verdade, somos nós o componente mais necessário da produção, e a fonte de seja lá o que for encontrado no “orçamento”.

 

Então qual é a origem da exigência por um orçamento aberto? Exigir transparência parece conseguir uma prova irrefutável da desigualdade: se “seguirmos o dinheiro”, podemos mostrar que os patrões conseguem mais dele do que os trabalhadores e, armados desse conhecimento, nós, enquanto trabalhadores, podemos mostrar que muito dinheiro é “desperdiçado” nos salários dos gestores. Esse argumento é especialmente proeminente quando cortes salariais são apresentados sob o disfarce de “corte de custos” ou “austeridade”. “São os salários dos gestores que estão custando tanto, não os nossos! Corte no topo!” são os gritos por um orçamento aberto. Mas para aqueles trabalhadores que exigem uma igualdade desse tipo a fonte de riqueza da empresa continua sendo, como interessa à gerência, um mistério. Parece que essa riqueza vem de uma atividade externa ao trabalho, como compras feitas e lucros obtidos no mercado, juros adquiridos nos bancos, ou benemerência de doações generosas. A causa da má situação dos trabalhadores seria, assim, a subsequente má gestão desses fundos nas mãos dos patrões gananciosos. Desse ponto de vista, a pobreza do trabalhador pode ser facilmente corrigida – basta circular o dinheiro! Mas os trabalhadores em luta contra suas condições descobrem algo diferente. A desigualdade entre patrão e trabalhador não é acidental, causada apenas pela incompetência ou ganância; ela é fundamental ao trabalho na sociedade em que vivemos. A desigualdade é inerente às relações sociais entre a classe dos patrões, senhorios e políticos e a classe dos trabalhadores, inquilinos e a gente comum.

Na melhor hipótese, reivindicar transparência implica agir dentro do paradigma estabelecido pelos patrões e, por conseguinte, fede a reformismo, seja ingênuo ou pernicioso. Na pior hipótese, a exigência por transparência é uma exigência por um papel gerencial para a classe trabalhadora ou, para usar um termo em voga, a sua “autogestão”. Isso significa que a lógica autodestrutiva do capital é internalizada pela classe trabalhadora. Armado com livros abertos, o militante que devia se colocar como um adversário dos patrões e administradores com a sua lógica de governo, se torna ao invés disso um agente auto-regulador da austeridade, apontando para o desperdício e a redundância e exigindo uma parte maior do dinheiro para os trabalhadores, tal como um industrial ganancioso aponta para o seu mau uso em outro lugar. O salário do chefe é muito alto! Gasta-se demais com algum fator irrelevante! Essas afirmações são, é claro, verdadeiras: os chefes e os administradores de alto nível recebem mais do que deveriam, o dinheiro é desperdiçado e a classe trabalhadora come merda quando o dia é bom na empresa. Mas é igualmente verdade que quando os trabalhadores exigem salários e benefícios maiores, mensalidades menores, etc., não importa para nós de onde tudo isso vem. O trabalhador militante faz exigências e não sugestões baseadas na avaliação dos fatos disponíveis. Além disso, o trabalhador militante não deveria ter medo de fazer exigências que não cabem no orçamento na sua forma atual; uma exigência desse tipo é, na verdade, a essência do radicalismo. Claro que o atual arranjo do capital não consegue nos dar melhores salários e benefícios nem melhores condições. É por isso que lutamos! E em um nível muito básico, não será que nós, trabalhadores, já não fazemos trabalho gratuito o suficiente sem ter que ficar pensando como vamos conseguir as nossas próprias demandas?

 

Uma vez que conseguirmos a abertura dos livros, entramos em terreno inimigo. Começamos a falar a linguagem do capitalista, a pensar os seus pensamentos misantrópicos, a passear por seus sonhos monocromáticos. E nesse terreno estranho estaremos sempre em desvantagem. Pode demonstrar-se pela mágica das tabelas que nossas exigências são simplesmente insustentáveis. Haverá informações que não podem ser revelada para nós ou que estão além da nossa compreensão e que o demonstrarão irrefutavelmente. O dinheiro simplesmente não está lá! E, claro, na atual composição de capital, provavelmente não está mesmo. Mas isso não é problema nosso. A inabilidade dos nossos patrões para atender as nossas reivindicações é justamente a razão pela qual estamos lutando, e seríamos tolos se nos furtássemos a esse fato como se fosse uma coisa fixa por toda a eternidade. No entanto, alguns podem ser convencidos. Podem nos fazer simpatizar com a classe dominante, sentir o pesado fardo dos fundos sempre a diminuir nesta era da austeridade. Poderíamos antecipar-nos em pensamento e refletir sobre os futuros períodos de pagamento de impostos ao invés de ficarmos no imediatismo infantil do presente. Podem nos fazer ver o mundo como ele realmente é para adultos que têm que tomar decisões difíceis. A mistificação do orçamento voltou a aparecer, para nos deixar inofensivos.

Fundamentalmente, a exigência por transparência muda por completo o teor da luta. Na luta, exigimos o que é nosso: o que nós fizemos e nos foi tomado. Através da reivindicação por transparência, o “orçamento” uma vez mais assume o caráter de fetiche que lhe foi dado pelos patrões para obscurecer o fato de que a fonte do valor está nos trabalhadores. Nossas reivindicações são algo que deve agora se encaixar na infraestrutura suicida do capital avançado, o que é, evidentemente, impossível. Não estamos mais exigindo o que foi fruto da nossa própria criação. Não estamos mais colocando a promessa de uma sociedade futura contra os vestígios da velha. Não estamos falando em uma linguagem que as burocracias não conseguem entender e não estamos mais fazendo reivindicações que eles não poderiam atender sem se modificarem a si mesmos em seus fundamentos. Através da transparência, nos tornamos funcionários de um sistema que nós mesmos estamos a reafirmar. E, como inúmeros outros antes de nós que tentaram “mudar o sistema poder por dentro”, seremos engolidos vivos juntamente com o potencial radical da nossa luta.

 

Quando os trabalhadores estão envolvidas na luta, quando nos organizamos, desafiamos os patrões, resistimos à disciplina e entramos em greve, revelamos a verdade do orçamento; quando os trabalhadores ganham salários mais elevados ou param a produção, revelamos a verdade sobre o orçamento. Essa verdade é que o conteúdo do orçamento não existe sem nós. Os trabalhadores não vencem porque elevamos a sua consciência de fora para dentro ou porque fazemos os patrões se sentirem mal ou assustados. Vencemos porque nossa luta revela materialmente o que os chefes sabiam o tempo todo, mas tentaram manter em segredo: que eles não são nada sem nós. Não precisamos de um orçamento transparente para elucidar a condição fundamental das nossas vidas como trabalhadores que produzem valor, o qual por sua vez é coletado pelos nossos patrões não produtivos. Essa é a origem da luta no local de trabalho, que está já desencadeada no momento em que resolvemos reivindicar pela “transparência” de uma relação que nós mesmos já colocamos a nu por meio da nossa atividade autônoma.

Perante a inevitável reivindicação por transparência, não devemos ter medo de responder: mantenham os livros fechados. É por meio da nossa luta como trabalhadores que a realidade material se torna mais transparente, não pela revelação de números em uma folha.

Nota dos tradutores

[*] Nos Estados Unidos liberal tem um significado próximo daquilo a que nos países de línguas latinas se chama esquerda reformista.

Tradução pelo Passa Palavra a partir do original aqui http://unityandstruggle.org/2012/11/10/against-transparency/

As fotografias que ilustram o artigo são de Alexander Semenov.


Fonte: Passa Palavra

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