Por Ana Luiza Viana.
Vivemos em meio a enormes demandas por reformas, com destaque para reforma política, cujo significado é o clamor por reformar o poder e a forma como é exercido, tendo em vista a manutenção de uma sociedade muito desigual – ainda – no Brasil, apesar dos avanços da primeira década do século XXI. Porém, nem todos que defendem a reforma política o fazem por esta razão.

Em todos os momentos de crise a reforma política ascende ao pódio, porém, sempre o que está em jogo são as diferentes concepções sobre o que fundamenta a sociedade: se maior igualdade ou a manutenção do status quo, baseado na defesa de qual princípio for. Agora, por exemplo, a desigualdade é creditada ao papel preponderante da educação e do conhecimento na obtenção de maiores renda e do dinamismo tecnológico envolto na concentração de renda (aqueles que acumulam maior capital são mais empreendedores e correm maiores riscos).

A brilhante discussão iniciada pelo livro “O Capital no século XXI”, de Thomas Piketty, traz evidências sólidas do papel da política tributária na construção de uma sociedade mais justa. Tanto no Brasil quanto na América Latina a questão tributária tem sido postergada, através do poder Legislativo, pelo veto fiscal, contra mudanças mais progressistas que penalizem menos o trabalho e taxem mais a riqueza e o patrimônio. Sempre com a anuência do poder Executivo, o que justifica a defesa por uma melhoria do sistema representativo, que, por não representar os interesses comuns, tem perdido gradativamente legitimidade junto aos seus cidadãos.
Democracia interditada

O Brasil é um exemplo ilustrativo. Somos vítimas do chamado presidencialismo de coalizão, que faz do executivo refém do poder dos partidos em prol da “governabilidade”. Vive-se a constante sensação de governar com os derrotados e suas agendas atrasadas. E, pior, luta-se constantemente contra uma inércia imposta pelo sistema político que causa desalento, desinteresse e joga todos, políticos e partidos, no mesmo limbo do senso comum.

A crise desse modelo que já não representa deixa a certeza de que essa construção foi implementada exatamente para evitar mudanças estruturais, e enfrentamento às diferentes faces da desigualdade e injustiças históricas que nos cercam diariamente.

Propor mudanças pontuais, apenas eleitorais, é importante, mas outros pontos são cruciais, no sentido de as demandas sociais terem força de expressão na democracia representativa, o que não vem ocorrendo desde a Constituição Federal de 1988.

Por isso, necessitamos de uma reforma renovadora do sistema político, alicerçada nos princípios da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social.
Representação e participação

Fazer a reforma que o Brasil necessita é aperfeiçoar a democracia representativa: partidos políticos democráticos fortes, programáticos, com densidade na sociedade, com vida o ano todo e não apenas em momentos eleitorais, como instrumentos de representação política de parte da sociedade, e não de interesses pessoais ou de grupos. A fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanha, a votação em listas escolhidas de forma democrática e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades.

O clamor pelo aperfeiçoamento da democracia representativa é vital para construção de uma sociedade mais igualitária, pois pode romper com a pouca disposição do legislativo nacional em reformar a política tributária, que é peça essencial para qualquer iniciativa voltada para uma melhor desconcentração da renda e com papel altamente sinérgico na construção de um estado social voltado para diminuição das iniquidades sociais.

A reforma política, por seu poder mobilizador, transformador e democratizante pode conduzir o Brasil a um ciclo de transformações profundas e necessárias rumo a um país desenvolvido e civilizado. É a “reforma mãe” que tem poder de abrir espaço na agenda política da sociedade para a discussão de outras reformas fundamentais, como a urbana, a agrária e a revisão do pacto federativo, fundamentais para o país continuar a avançar nas próximas décadas com mais dinamismo e força.
Conexões positivas

A questão da política tributária é peça chave para o desenvolvimento social e, de certa forma, a concentração começa aí. No caso da Saúde, as implicações são profundas e foi justamente o perfil concentrador e pouco progressivo de nossa estrutura fiscal que coloca em risco o alcance das políticas sociais universalistas.

Precisamos também repensar a atual arquitetura da participação (democracia participativa). A multiplicação de espaços participativos (conselhos e conferências) não significa automaticamente a partilha de poder. Precisamos caminhar na direção da construção de um sistema integrado de participação que inclua a política econômica e de desenvolvimento e não apenas as políticas sociais.
Reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, que seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação em que todos se sintam não apenas representados, mas participantes e com mecanismos de exercício do poder de forma direta.

Na Saúde, as mudanças mais gerais nas relações entre Estado, mercado e sociedade, no período pós-1988, foram demarcadas pela descentralização e o estímulo à conformação de sistemas de políticas públicas no contexto de reconcentração de recursos políticos e fiscais no Executivo Federal; a flexibilização e a mercantilização da gestão e oferta de serviços públicos; a emergência de novos atores; e institucionalização de práticas participativas associadas à democratização.

Porém, o desenho participativo, por si só, não foi suficiente para minimizar de forma cabal as desigualdades na oferta, acesso, uso e bem estar na Saúde, dado o estímulo à descentralização que pode conformar grande heterogeneidade, e ao empresariamento da oferta e gestão em Saúde, que conduz à preponderância do lucro sobre o bem comum.

A grande verdade é que processos constituintes resultam de processos de mudanças profundas na sociedade, e não o contrário. Essas mudanças podem surgir quando há o esgotamento de modelos sociais que não conduzem à melhoria do padrão de vida de grandes camadas da população e quando também a política passa a ser vista como problema e não parte da solução.
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Ana Luiza D`Ávila Viana é professora doutora no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da pesquisa Região e Redes – Caminho para a Universalização da Saúde no Brasil.

Fonte: Cebes