março 24, 2007

José, de Sálvio Luiz Nienkötter












JOSÉ

Ensimesmado, o menino passava as tardes a olhar pro céu. Ideava, via mesmo, o Deus-Jesus andar, soberbo, sobre aquele azul colossal. Podia vê-lo desfilando... devagar (era todo de ouro o deus, mas andava!), encarando pio e austero as almas que lhe suplicavam.

Imaginava também que havia como que uma escada-escala aérea e etérea que ia do inferno até lá..., té lá em cima. Os bons, pensava, estão sempre lá no topo da escada, é morrer e entrar no céu. Já os maus ficavam tão abaixo que podiam sentir o calor das labaredas ou até sentir queimar os calcanhares pelo fogo eterno.

A si atribuía uma posição intermediária naquela escala, baixo-intermediária, baixa!... baixa mas não a ponto de deixá-lo exposto às chamas temidas, só quase. Era baixa agora, mas ia melhorar... ia e muito. Melhorava, nunca mais esticava o pescoço de patinhos e os pendurava na cerca de arame farpado como daquela vez (foi tão bom esticá-los: faziam shcuaack e ficavam compridos que só). Não ia mais fazer nada que contrariasse aquele deus tão bom, embora severo. Severo como convinha a um deus, lógico.

Quando às vezes ouvia o pai, mãos calosas, a reclamar de má colheita, calava, mas sabia o porquê da desgraça. Falta de reza... oras. Pois que se rezavam em procissão para pedir chuva na seca e chovia (um dia chovia!), porque não se rezava pela colheita farta? Não reclamasse então! Tinha cinco ou seis anos e sabia mais que aqueles adultos grandalhões?

A família era enorme: dez filhos..., doze bocas. Nesta época o menino, José, dera pra ter olhos só para o irmão mais velho, o Sebastião. Haviam feito um pacto, jamais pronunciado, de serem inteiramente fiéis um ao outro, bons, cúmplices. Eram de uma afeição sublime que escorria à pieguice. Mas pieguice não era.

Quando brincavam no balanço, por exemplo, discutiam a primazia da vez, como qualquer criança, mas pelo avesso: é sua vez Zé!, não, é a sua agora Tião.

As molecagens de um, encobria o outro, sempre, e vice-versa, claro. As poucas molecagens que faziam, amiúde eram descobertas, e então regiamente castigadas. Se apanhava um choravam dois; igualmente. Sofriam dois. Chegavam, no limite, a atribuir-se culpa alheia mesmo sabendo que as conseqüências... apanhar dói muito, revolta; mas apanhar no lugar do outro era quase uma bênção e uma bênção quiçá maior que a dor e que o sentimento de injustiça.

Zé era muito espiritualizado, negócio de ficar horas olhando estrela era com ele. Não fossem os sapos, aqueles monstros, ficaria no pátio nu de terra branca e batida, que brilhava com a luz da lua, a noite inteira. Mas não o deixavam e, nem demorava nadica, aparecia algum, - sai sapo chato, sai!

Embora José fosse muito das coisas de Deus, do Menino Jesus, do Anjo da Guarda, como sua casa era ponto de encontro da garotada da vizinhança, com estes aprendeu um monte de coisa que devia ser muito feia, já que sempre tinham de fazê-las escondidos.

Nem compreendia bem o que era aquilo, mas era bom. Especialmente com a priminha da mesma idade, a Nica. Ainda assim, às vezes, aquilo enchia um pouco. - Vamos brincar de gangorra, dizia o Zé. - Não! Vamos fazer niqui-naque, falava a prima. Tião brincava mais com a Dete, embora o troca-troca fosse muito freqüente também. Uma vez um vizinho flagrou-os num grupo de dezenove, todos nus e... Não contou aos pais. Ou por pudor ou por seu próprio passado, quem sabe.

Um dia o Tião contou ao Zé o como nasciam as crianças. Zé esperneou, resistiu bravamente. Que crianças nascessem assim... vá lá, mas que o pai e a mãe fizessem “isso” não podia admitir, e não admitia. O irmão que parasse de caçoar.

Com o tempo passou a ficar preocupado com que da priminha pudessem nascer “pequeninos filhos, filhos de criança”. Que medo que dava, o quê falaria à tia, mãe da menina? E à sua própria mãe? Não tinha coragem de comentar esse temor nem com o irmão... que ficasse tudo nas mãos de Deus, pensava com culpa.

Sendo maior a família que a casa, dormiam de dois em dois. Desde que se entendia por gente José dormia com Sebastião. Acontece que Sebastião fazia xixi na cama todas as noites e, em todas as manhãs era castigado, para que parasse com aquilo. Aqueles castigos doíam mais no Zé que no irmão. Vinha padre benzer, mas nada resolvia. O padre reiterava à mãe a sua obrigação de “educar” o Tião, assim pararia.

À noite logo que apagavam o lampião, o irmão pedia ao Zé que o ajudasse a rezar, para que o papai-do-céu não o deixasse molhar a cama naquela noite. Os dois davam-se as mãozinhas – Pai nosso, que estais no céu.... Ave Maria cheia de graças... não ia muito longe e José, já aquecido, adormecia. Lá pelas tantas acordava, sentindo um quentinho gostoso escorrendo pelo lençol... que logo esfriava. Dormia novamente, só acordava pela manhã, com o choro do irmão sendo fortemente educado.

Assim sucediam noites e noites... rezar... sentir quentinho... choro do irmão apanhando. Não mãe, não mãe! Numa tarde olhando pro céu, vendo o Jesus de ouro andando... de repente o Jesus dourado vira-se para ele e com movimentos mecânicos nos lábios diz: - a culpa é tua Zé. Você não reza direito, não reza direito e ainda dorme antes de acabar. A tarde fez-se noite! A culpa afundou no seu espírito tão profundamente que não conseguiu mais pensar em qualquer outra coisa, por dias, meses. Pegou mania de empoleirar-se sozinho no estaleiro do paiol. – Vem brincar Zé! – Depois.

A culpa o fez dedicar-se ainda mais ao irmão. Com o tempo a censura dos pais aumentava: que pouca vergonha! Daquele tamanho e fazendo xixi na cama... o que não pensariam os vizinhos... a culpa agravou-se quando veio um sinal dos Céus. Numa páscoa, tão esperada por ambos, também o coelhinho resolveu castigar Tião: Enquanto o Zé recebeu uma cesta recheada o outro recebeu uma cesta parca, quase vazia, dois ovinhos no fundo. Pior, o irmão não aceitou que juntassem as cestas e as repartissem fraternamente, era como se Tião visse o castigo divino como algo a ser suportado.

José achou alívio em dividir com vizinhos, às escondidas. Pela primeira vez experimentou um lenitivo na culpa. Porém, seus planos de tornar-se padre foram ficando de lado, apenas durante a missa os reiterava com o Divino, mas cada vez menos convicto.

O irmão só parou de molhar a cama aos dezessete, quando foi medicado depois de diagnosticada a diabetes que lhe corria nas veias desde que nascera. Pra culpa do Zé não houve remédio, mas, talvez, fosse menor que a de Dona Margarida, a mãe, dês que ouviu o médico. Zé perdera a fé para sempre, virou comunista, diziam. - Tião era tão feliz... Posted by Picasa

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