A Guerra pela Água na Bolívia
Trabalhadores vs Transnacionais na luta pelo controle dos bens naturais
Alexander Hilsenbeck Filho / Daniel Caribé - Segunda-feira, 14 Julho, 2008
Em 2000, na cidade de Cochabamba (com cerca de 700 mil habitantes, considerando-se a área urbana e rural), na Bolívia, houve a privatização da água e do já precário sistema de abastecimento e redes de esgoto, ficando a cargo da Aguas del Tunari, um consórcio criado por capitais dos EUA, Itália, Espanha e Bolívia que, da noite para o dia, aumentou as tarifas em até 300% sem que houvesse sequer melhora nos serviços ou ampliação da área de cobertura para as zonas mais pobres.
Em Cochabamba apenas metade da população na zona urbana tem acesso a água tratada e na zona rural os camponeses, quase na totalidade indígenas, foram expropriados do seu sistema de irrigação e abastecimento que eram utilizados há séculos, um bem comum que se transformou em uma mercadoria muito cara, ou inacessível, de uma hora para outra. Pior do que vem acontecendo no resto da América Latina e no mundo, ao invés de tentar ludibriar a população com a promessa de melhores serviços e ampliação dos mesmos para os mais pobres, a privatização da água (e não somente do sistema de abastecimento, pois até a água da chuva passou a ser propriedade do Consórcio), em Cochabamba, se caracterizou pela transferência direta da renda dos mais pobres para os lucros das transnacionais.
A resistência dos trabalhadores foi ampla, forte e imediata, reunindo trabalhadores do campo, trabalhadores urbanos das mais diversas atividades, intelectuais, estudantes, associação de moradores e sindicatos.
Houve vários dias de batalhas com a polícia, no que ficou conhecido como a Guerra da Água, e culminou com a vitória da luta popular, de forma tangível. O processo de privatização foi cancelado, forçando a transnacional a sair da Bolívia e transformando Cochabamba num exemplo mundial de resistência e numa das cidades onde os trabalhadores têm mais poder, devido às formas organizativas que conseguiram erguer.
Mas as lições dessa união dos trabalhadores na luta foram mais amplas. O que se iniciou como uma luta por um bem indispensável, a água, que o capital está ávido para transformar em uma mercadoria especial devido ao nível de dependência que as populações e a própria indústria têm dela, evoluiu para críticas às políticas estruturais de um país dominado por uma plutocracia racista a serviço das empresas estrangeiras.
Tudo na Bolívia foi posto em xeque e daí para frente, qualquer avanço das elites nacionais e transnacionais sobre os trabalhadores é motivo de muita disputa.
Nos anos seguintes, a Bolívia viu o despertar de uma mobilização constante dos trabalhadores: dos cocaleiros aos indígenas, dos trabalhadores das minas às associações de moradores, que passaram a se organizar em todo o país, unificando discursos e práticas, fechando aeroportos e as principais vias de acesso rodoviárias e ferroviárias, com marchas e confrontos com a polícia e o exército, enfraquecendo os partidos políticos tradicionais, as instituições das classes dominantes e destituindo presidentes.
A tradicional Central Operária Boliviana não foi a única e nem a principal força organizadora dos atos de resistência, apesar de sempre tentar canalizar esse movimento para se fortalecer. Formas associativas de lutas sociais com direção e organização locais, alicerçadas em práticas de assembléias, consultas populares e transparência é que permitiram que tudo acontecesse da forma que aconteceu, inclusive obtendo uma vitória inquestionável frente ao poder do capital. Uma ação coletiva autogestionária que mostrou ser possível e eficaz a reconstrução real do processo democrático, desde baixo, pelos próprios trabalhadores. O protagonismo estava, e ainda está, nos locais onde os trabalhadores vivem e exercem suas atividades.
Mas a luta em Cochabamba contra a privatização da água não é algo isolado. Mostra uma tendência mundial, onde as transnacionais procuram novas formas de gerar lucros e controlar os trabalhadores. A lição que os donos do mundo tiraram disso tudo é que quando se mexe em um bem comum, essencial à vida muito antes da sociedade de classes ter sido inventada, deve-se ir com mais calma. Assim, a privatização da água continua em escala global, mas sob novas formas, principalmente onde a resistência popular tem uma história de combatividade.
O controle da água e de outros bens naturais promete ser um dos centros da luta de classes desse próximo período. Se a gestão for centralizada nas mãos das transnacionais, então está garantida a perpetuação da exploração do trabalho por um longo período, pois quem controlar esses bens controlará a vida, e a vida para estes só tem sentido na desigualdade, na opressão e na exploração. Mas se os trabalhadores aprenderem a geri-los – e é um bem que só pode ser gerido em escala global e, portanto, rompendo as barreiras nacionais nas quais a luta dos trabalhadores foi aprisionada após a II Guerra Mundial – então, a partir desta bandeira, a fragmentação da classe trabalhadora pode estar com os dias contados.
Afinal, se na realidade são os trabalhadores, através das tarifas e de seu suor, que financiam essas empresas (e o lucro de um pequeno punhado de capitalistas), porque não podem os próprios trabalhadores gerir esses serviços, sobretudo quando se trata de bens naturais e "públicos"?
Fonte: Mudar de Vida
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