OSWALDO, ACORDE, ELES FICARAM LOUCOS!
Marcos Rolim
Jornalista
Outro dia, o veterano Alberto Dines, em artigo publicado no Observatório de Imprensa, lembrava uma passagem curiosa da invasão da Tchecoslováquia em 1968 pelas tropas soviéticas: na defesa da Primavera de Praga, estudantes que saíram às ruas para protestar contra os “tanques vermelhos” picharam um muro com a seguinte frase: “Lênin, acorde, eles ficaram loucos”.
A polêmica aberta com a nova lei sobre a proibição de dirigir após o consumo de bebidas alcoólicas bem que poderia autorizar uma pichação do tipo. Pensei em algo como “Oswaldo, acorde, eles ficaram loucos”, lembrando o sanitarista Oswaldo Cruz e a indignação de importantes segmentos da população carioca quando da “Revolta da Vacina”, em 1904.
Aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei que tornou obrigatória a vacina contra a varíola permitia que os agentes de saúde, acompanhados por policiais, entrassem nas casas para aplicá-la. Houve grande descontentamento popular com manifestações de rua que deram origem a barricadas, ônibus queimados e lojas saqueadas. Ao final do movimento, o Rio de Janeiro contava centenas de feridos, 30 mortos e mais de mil pessoas presas. Com a repressão aos insurgentes, a vacinação em massa ocorreu e, em alguns meses, a varíola havia desaparecido. Dois anos depois, a população carioca se orgulhava de viver na “cidade mais linda do mundo”, anunciavam os jornais. A lei da vacina foi considerada uma “tirania” e muitos foram os formadores de opinião, à época, que estimularam a revolta, afirmando que a obrigatoriedade assinalava violência produzida por um Estado policial e liberticida.
Na esteira da revolta, um movimento militar tentou a deposição do presidente Rodrigues Alves que, após assumir o controle da situação, recusou-se a demitir Oswaldo Cruz, mas cedeu às pressões populares, revogando a obrigatoriedade da vacina. Em 1908, novo surto da doença atingiria mais de nove mil pessoas na “cidade maravilhosa”. No mundo, a varíola só seria erradicada em 1970, com uma grande campanha promovida pela Organização Mundial de Saúde
O Brasil vive, há muitos anos, uma tragédia sem fim em suas estradas e no trânsito das suas cidades. Apenas no ano de 2005, 35 mil pessoas morreram em decorrência de acidentes no país. Metade destas vítimas fatais é composta por jovens. Além das perdas humanas e do sofrimento que dilacera as famílias, os acidentes agregam impactos sociais e econômicos impressionantes. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas no ano de 2006 estes prejuízos chegaram a R$ 24,6 bilhões.
Não há qualquer dúvida que parte significativa destes acidentes está correlacionada ao hábito, tão típico das classes médias brasileiras, de dirigir após a ingestão de bebidas alcoólicas. Ah, claro, mas as pessoas que possuem este hábito e que bebem "moderadamente" não estariam aptas a dirigir? Matéria da Folha de São Paulo de 29 de junho trouxe algumas destas opiniões. O industrial Celso Forni, por exemplo, 61 anos, apóia firmemente a lei, mas acha que não tem razões para mudar seus hábitos; afinal, bebe há 40 anos e nunca sofreu um acidente. Um amor o seu Celso, vocês não acham? Detalhe: sua média de consumo diário são 10 doses de Red Label. Muito bem, agora vamos combinar: quem, entre os que se opõem à lei, nunca - mas nunquinha mesmo - retornou dirigindo de uma festa, ou de um belo jantar, “levemente tonto” e com a mesma lógica do seu Celso? Excluindo aqueles que de fato não bebem, todos nós já vivemos, com maior ou menor intensidade, esta experiência. Já ocorreu comigo – que quase não bebo; já ocorreu com vários dos meus amigos, inclusive com alguns entre os mais responsáveis e inteligentes. Pois bem, é nesta “curva” que mora o acaso. O problema, entretanto, é mais grave porque do outro lado tem gente que nada tem a ver com a festa e que, por um erro de “cálculo” do respeitável motorista, não voltará para casa nunca mais.
O que a nova lei está fazendo é eliminar a “curva”, sem proibir a festa. Em apenas 11 dias de sua vigência, segundo a EPTC, os acidentes de trânsito em Porto Alegre caíram 25%, o que significou 206 acidentes a menos, comparados com os 10 dias anteriores. Nas rodovias estaduais, no mesmo período, a queda foi de 13%. Mais: em Porto Alegre, os acidentes verificados foram menos graves e o número de mortos no trânsito caiu 60%. Isso mesmo: 60%!
As conseqüências da lei, então, não são desprezíveis e, em torno delas, o debate pode ganhar nova densidade. Como estamos no Brasil e esta é uma disputa que mobiliza interesses poderosos, não necessariamente orientados pelo bem comum, cada opinião contrária à lei, ainda que esta não seja a vontade dos críticos, acumula forças para o retorno das estatísticas anteriores e torna mais difícil que outras iniciativas saneadoras, como a urgente necessidade de se banir a propaganda de bebidas alcoólicas dos meios de comunicação, sejam implementadas.
Por isso, sustento que o bom debate deve dialogar com as evidências, embora exista quem prefira escrever artigos sobre bombons de licor. Cada um na sua, claro, porque democracia também é isso. Mas que dá vontade de acordar o Oswaldo, ah, isso dá.
Nota do blog: Texto enviado por Fernanda Penkala.
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