janeiro 27, 2009

Memórias do hospício (VII)

Foto: Rogelio Casado - Hospital Colônia Eduardo Ribeiro - Manaus-AM, 1980
Nota do blog: Em meio ao revoltante abandono dos internos do então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, ali encontramos, no início dos anos 1980, várias gravuras realizadas pelos humanos que lá viviam. Observe a imagem acima, à esquerda. Trata-se de dois ícones de culturas e civilizações diferentes: o arco e flecha da cultura indígena e a cruz da civilização cristã. Antes da reforma física do hospital, essa e outras gravuras foram registradas pelo cineasta David Pennington, hoje doutor em comunicação pela UNb onde é professor, e Roberto Evangelista, artista plástico e mestre da União do Vegetal, em Manaus.

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Memórias do hospício (VII)

Foi o filósofo Hegel quem fez da loucura uma dimensão do humano, ao trazê-la para dentro do sujeito. Para ele só é homem aquele que tem a virtualidade da loucura. Aquele que transcende a si mesmo. Que aceita o conflito consigo mesmo. Que descola-se de si através da linguagem.

Para Hegel, algo próprio à razão humana se realiza através da loucura. Esta seria o Outro da Razão, afirma o filósofo Peter Pál Pelbart. E acrescenta: um outro que lhe é interior. E posto que não se trata de uma ameaça, de uma alteridade radical, em certo sentido é ela quem a caracteriza.

Pelbart afirma que a loucura não está além dos limites da condição humana, apenas os desloca. Nesse sentido, considera que a grande invenção teórica dos alienistas surgiu com uma idéia simples e surpreendente para a época, de que a loucura era curável.

Longo foi o processo de dissolução da alteridade humana, pela qual a loucura passou a ser vista como subjetividade dilacerada e sofrida. De conflito consigo mesmo, de ruptura interior. Pelbart considera esse movimento histórico de uma lentidão quase geológica.

O agravante é que foi nesse percurso, como nos lembra Pelbart, que se estabeleceu uma espantosa metabolização da alteridade – ou seja, aquilo que se revelava diferente por essência, como a mulher, a natureza, o louco, o cego, o surdo-mudo, o anão, os estropiados e desgraçados de toda a ordem. Essas figuras foram perdendo sua estranheza e se integrando a uma nova paisagem de seres. Deriva daí o confinamento dos loucos.

Se Hegel contribuiu para o trabalho histórico de desconstrução da alteridade, em que o Estranho passou a ser Familiar, seu conceito de loucura sobrevive entre os que defendem o hospital psiquiátrico como modelo de cuidados em saúde mental: a desrazão, feita loucura, transformou-se em doença mental.

O fato não causaria estranheza, se não vivêssemos outro momento civilizatório. O retorno dos loucos ao convívio social não merece ser refém do enfoque neo-organicista das neurociências.

Manaus, Dezembro de 2008.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com

Nota do blog: Artigo publicado no Caderno Raio-X, do Jornal Amazonas em Tempo.
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