Música dos outros
por Clarice Casado
Sinto falta da crônica. Foi assim que comecei neste ofício. Acabei me jogando pro lado do conto, e, ultimamente, umas arriscadas em poesia, e deixei de lado a velha e boa crônica. Uma boa história do cotidiano, aquela historinha aparentemente idiota, mas que pode ficar deliciosa se cair nas mãos certas (aí vem meu lado exibidinho, que estava adormecido nestes tempos de contos e poemas...). Leitores, apresento-lhes hoje uma, saída de dentro de um elevador. Sempre há boas histórias a serem contadas depois que se sai de um elevador... Preste atenção.
Cena: nove horas da manhã, elevador gigante de um prédio movimentadíssimo da Alameda Santos, em São Paulo. Personagens: a secretária passando batom e tomando café da manhã ao mesmo tempo, o motoboy de jaqueta preta surrada com mp3 a mil nos ouvidos, o executivo de terno Armani com perfume exagerado para aquela hora da matina, duas ou três estagiárias de direito comentando a prova de direito de civil e a balada da noite anterior, o motoboy de jaqueta preta surrada com mp3 a mil nos ouvidos, um cara de camiseta e calça jeans com jeito de publicitário checando mensagens no celular, e eu, professora de inglês em um escritório de advocacia. Variam as pessoas, mas os riquíssimos espécimes humanos são sempre os mesmos. De vez em quando tem também as ascensoristas leitoras ou conversadoras, que são sempre dignas de nota. Não estou fazendo gozação ao dizer “riquíssimos”, não. É material para mil e uma histórias...
Eu ia pro vigésimo andar e o elevador é demorado. Em poucos segundos, todo mundo já olhava torto pro tal motoboy com fones no ouvido. Ouvia sei-lá-o-que-no-máximo-volume, dava pra escutar quase que perfeitamente. Era chato. Muuuuito chato.
A secretária estava quase terminando de passar o batom quando o elevador parou com um solavanco, no sexto andar. “Ai, meu Deus, tenho claustrofobia”, foi só o que tive tempo de pensar, entre risadas nervosas das estagiárias. O executivo mega-perfumado pegou logo o telefone de emergência pra avisar a segurança. Mal largou o treco e se virou com cara de fúria e quase gritando pro motoboy, que aparentemente continuava a ouvir a sua música infernal, sem se alterar, “Desde quando eu sou obrigado a ouvir a sua música, hein? Não me basta ficar preso nesta porra, eu ainda tenho que ouvir o seu bate-estaca horroroso? Você só pode estar de gozação, meu irmão, você deve ser maluco!!!”. Eu nem me mexi, apavorada, enquanto o resto do pessoal se entreolhava, sem bem saber o que fazer.
Os minutos em um elevador parado não passam. É como se cada um tivesse 240 segundos, principalmente quando o cara que está ouvindo a música a mil faz de conta que não ouviu o outro louco corajoso que está gritando nos ouvidos dele. Eu não sabia se ficava quieta ou dava apoio pro doido, já que a música também estava me incomodando demais, mas é óbvio que fiquei quieta, quem me conhece sabe que eu não iria entrar no barraco. Foi a secretária que resolveu tocar no ombro do motoboy enquanto o executivo bufava, “Amigo...”, e o cara não se mexeu. Pior: sorriu. Pra que, hein? Me perguntei, enquanto o executivo lhe arrancava dos ouvidos os fones e ele partia pra cima do executivo, as estagiárias gritavam e o suposto publicitário chamava de novo pelo telefone a segurança. Foi nessa confusão de segundos que as portas abriram, e os dois brigões, agarrados, voaram pro lado de fora! A mulherada gritava e saía desesperada, e ao mesmo tempo o pessoal que esperava no sexto andar tentava separar os dois, uma loucura, um negócio de filme besteirol americano, ridículo...! Quando finalmente se desgrudaram, depois de palavrões, socos e pontapés, o motoboy já estava de novo com seu mp3 e fones nas mãos entrando meio fugido no outro elevador que chegava. O executivo, suado, descabelado, mas ainda perfumado, se recompôs de cabeça erguida, sob os nossos ainda assustados olhares. Deixamos que ele pegasse o próximo elevador sozinho.
Enquanto esperávamos, ficamos todos quietos. Talvez pensando que o cara tinha toda a razão. A secretária pensou que estava era muito atrasada e que nunca mais ia se meter na vida dos outros. As estagiárias continuaram lembrando da noite anterior. O motoboy já estava lá na Paulista com a Haddock Lobo. O executivo chegou gritando com todo mundo no escritório. O publicitário já tinha na cabeça o slogan da sua mais nova campanha, Vá com tudo!, e eu, bom, eu tirei da bolsa minha agenda bem rapidinho pra fazer anotações literárias.
Viu? Nada como a velha e boa crônica...
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