Franco Basaglia
Foto: Rogelio Casado, 1979 - São Paulo-SP
Pelo fim dos hospícios
Franco Basaglia (1924-1980) veio ao Brasil no ano seguinte à votação da Lei 180, que após longa tramitação fechou os hospitais psiquiátricos na Itália. Aqui fez conferências em S. Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Entre as entidades que o trouxeram ao país, lá estava a Comunidade Terapêutica Enfance onde me encontrava fazendo residência médica em psiquiatria social. Acompanhei-o em todas as conferências paulistanas.
Jamais conheci alguém com idéias tão subversivas. O paralelo por ele estabelecido entre hospício e prisão é irrepreensível, como nos lembra a jornalista Leneide Duarte-Plon, citando uma passagem de uma das suas conferências em S. Paulo:
“Paralelamente ao asilo, há uma outra instituição que tem uma função de integração similar, a prisão. Esta instituição, em todos os países do mundo tem por finalidade a reabilitação do detento, como o asilo tem por finalidade o tratamento do doente mental. Penso que cada um de nós não pode deixar de sorrir ironicamente quando ouve dizer que a prisão e o asilo têm por objetivo a reabilitação de seus “hóspedes”. Na realidade, tanto o asilo quanto a prisão servem para conter o desvio dos pobres, marginalizar os que já são excluídos da sociedade. Em grande parte, asilo e prisão são intercambiáveis. Podemos pegar um detento e colocá-lo num asilo ou pegar um louco e colocá-lo na prisão, as funções institucionais são as mesmas. (...) A esta lógica absurda e infame do asilo, nós dissemos não. Depois, compreendemos que a internação de “loucos miseráveis” era uma conseqüência do fato de essas pessoas não serem produtivas numa sociedade que é baseada na produtividade e que, se elas continuavam doentes, era pela mesma razão, porque eram improdutivas, inúteis para um sistema social como o nosso”.
Curiosamente, segundo Leneide Duarte-Plon, quando Basaglia invocava os “direitos humanos” para denunciar a condição dos internos, Foucault na mesma época falava em “direitos dos governados”.
Por essa e por outras, continua na pauta do debate público o fim dos hospícios, a mais cruel das instituições.
Ana Marta Lobosque, psiquiatra e psicanalista, aponta duas posições antagônicas nesse debate: a dos que legitimam a existência do hospício, lamentando os abusos eventuais que distorceram suas finalidades (bota tempo nisso), o que exigiria um esforço de adequação para humanizá-lo e modernizá-lo; e da dos que sustentam que só a demolição do hospício pode por fim à representação que ele construiu da loucura na sociedade dos últimos duzentos e cinqüenta anos.
Ana Marta chama atenção para o fato de que o hospício não é uma edificação solitária. Ele se estruturou ao longo dos séculos em sintonia com outros aparelhos ideológicos, decisivos no arranjo dos tijolos da montagem social que fez do hospício um dos pilares da sociedade de controle. Entre eles a escola, o judiciário e a polícia.
Para a psicanalista, fechar hospícios não garante viver numa sociedade sem manicômios se não houver substituição do modelo manicomial. Este mantém-se intacto mesmo quando há modernização dos instrumentos tecnológicos e dos espaços físicos destinados aos loucos.
Não há saída sem o rompimento radical com o modo de olhar instituído no modelo manicomial. Eis o desafio posto para a psiquiatria contemporânea, em tempos de luta por uma sociedade sem manicômios. Antes, porém, uma advertência.
Na raiz da questão do aprimoramento ou da extinção do manicômio está o saber psiquiátrico. Conhecer o modo como foi construído o saber sobre o louco é fundamental nesse debate.
Manaus, Junho de 2010.
Rogelio Casado , especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, no caderno Saúde & Bem Estar.
Um comentário:
Acredito que a gênese da inclusão social são os CAPS 3 e os Centros de Convivência. A partir desses aparelhos da saúde e com a lógica intersetorial a construção vai ser infinita. Ainda somos desbravadores. Acredito que dentro de uns 50 anos vai estar bem melhor.
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