fevereiro 28, 2011

"Nossa absurda obsessão com Israel exposta", por Nick Cohen

Nossa absurda obsessão com Israel exposta


por Nick Cohen

A revolução árabe está despachando carradas de artigos, livros e discursos sobre o Oriente Médio para a lata de lixo da história. Em poucos meses, leitores visitarão bibliotecas ou arquivos de jornal e perguntarão como tantos que alegavam ser especialistas conseguiram desviar a vista da tirania e suas consequências.

Para uma geração de militantes politicamente ativos, ainda que não moralmente consistentes, o Oriente Médio significava Israel e apenas Israel. Em teoria, eles deviam ter sido capazes de defender princípios universais e apoiar uma justa resolução para os palestinos, ao mesmo tempo opondo-se a ditadores que mantinham árabes subjugados. Poucos, entretanto, foram capazes de se opor consistentemente à opressão em todas as suas formas. A direita não tem sido melhor que a esquerda liberal em suas obsessões com judeus. A mais breve leitura de jornais conservadores mostra que, em todos os momentos, sua preocupação primeira com mudanças políticas no Oriente Médio é como elas afetam Israel. Para ambos os lados, as vidas de centenas de milhões de árabes, berberes e curdos que não estavam envolvidos no conflito poderiam ser esquecidas.

Se você não acredita em mim, considere os fatos que editores de sucursais no Oriente Médio não cobriram, até que revoluções que não tinham nada a ver com a Palestina os forçaram a tomar conhecimento:

* Kadafi estava com tanto medo de um golpe, que manteve o exército líbio reduzido e mal equipado e contratou mercenários e “forças especiais” paramilitares com as quais poderia contar para, quando necessário, massacrar a população civil.

* Leila Ben Ali, a esposa do presidente tunisiano, era uma figura absurdamente extravagante, que praticamente implorava para correspondentes estrangeiros escreverem sobre sua ávida busca por riqueza. Apenas quando os tunisianos se levantaram, os jornalistas se movimentaram para contar a seus leitores como ela havia levado o populacho a se revoltar por combinar traços de Imelda Marcos e Maria Antonieta.

* Reconfortantemente, para aqueles que conservamos uma nostalgia das melhores tradições da esquerda, a Tunísia e o Egito tinham sindicalistas independentes que, como costumávamos dizer, podiam desempenhar “um papel de vanguarda” ao organizar e executar protestos.

Longe de ser uma causa da revolução, o antagonismo a Israel serviu em todo lugar aos interesses dos opressores. Europeus não têm o direito de ficarem surpresos. Dentre todos os povos, devíamos saber de experiência própria do nazismo que antissemitismo é uma teoria conspiratória relacionada ao poder, ao invés de um ódio racista básico da parte de imigrantes pobres. Regimes fascistas lançavam mão dessa tática quando desejavam negar liberdade a seu próprio povo. Os protocolos dos sábios de Sião, a farsa que a facção de extrema-direita do decadente regime tsarista soltou em 1903 para convencer os russos de que eles deveriam continuar a obedecer cada ordem do tsar, denunciam direitos humanos e democracia como fachadas por trás das quais autoridades secretas judaicas manipulavam os gentis ingênuos.

Os baathistas sírios, o Hamas, a monarquia saudita e Kadafi promoveram os Protocolos, afinal de contas por que elites depravadas não tratariam bem uma fantasia que repudia a democracia como uma fraude e justifica seus autoritarismos? Pouco antes da revolta líbia, Kadafi tentou um ato desesperado que seus predecessores europeus teriam compreendido. Ele tentou desviar a raiva líbia convocando uma revolução popular palestina contra Israel. Esse ato pode ou não ter sido justificado, mas ele certamente não teria feito nada para ajudar os infelizes líbios.

Em seu poema “Epitaph on a Tyrant”, Auden escreveu:
“When he laughed, respectable senators burst with laughter
And when he cried, the little children died in the streets.”

A amnésia europeia sobre como a tirania operou em nosso continente explica por que a revolução líbia está constrangendo uma rica coleção de incautos e patifes que desejavam fazer o jogo de Kadafi. Seus contatos na Grã-Bretanha eram antes confinados às franjas verdadeiramente lunáticas. Ele enviou armas para o IRA, financiou o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, a sórdida seita trotskista de Vanessa Redgrave, e hospedou Nick Griffin e outros neo-nazistas. Não devemos esquecer dessas figuras quando chegar a hora do acerto de contas. Mas quando Tony Blair, que foi tão eloquente ao denunciar os genocídios de Saddam, encenou uma reconciliação com Kadafi depois do 11 de Setembro, sua amizade abriu caminho para o establishment britânico abraçar a ditadura.

Não foi apenas a BP e outras companhias petrolíferas, mas também acadêmicos britânicos que aceitaram felizes a expressão de generosidade do ditador. A London School of Economics levou 1,5 milhão de libras de Saif al-Islam Kadafi, dinheiro que por definição tinha que ter sido roubado do povo líbio, apesar de ter sido alertada a devolvê-lo pelo falecido professor Fred Halliday, saudosa autoridade em Oriente Médio que nunca deixou de encarar ditadores nos olhos.

“Vim a conhecer Saif como alguém que valoriza a democracia, a sociedade civil e os profundos valores liberais como centro de sua inspiração”, murmurou David Held, da LSE, quando aceitou o cheque. A Human Rights Watch, que já foi uma confiável oponente de tiranias, foi além e descreveu uma fundação que Saif comandava na Líbia como um impulso para a democracia, disposta a encarar o ministério do interior em questões de liberdade civil. Enquanto isso, e para surpresa de ninguém, Peter Mandelson, a borboleta do Novo Trabalhismo, alvoroçava-se com Saif nas festas privadas da plutocracia líbia.

Semana passada, Saif, o fomentador “liberal” de direitos humanos e companheiro de jantar de Mandelson, apareceu na televisão líbia para dizer que os atiradores de seu pai lutariam até a última bala para manter a criminosa família Kadafi no poder, uma promessa que ele está cumprindo. O pensamento por trás de tantos que o cortejavam era que o único tema no Oriente Médio digno de ser engajado era o conflito palestino-israelense, e que a opressão de árabes por árabes era uma preocupação menor.

A longevidade dos regimes presididos pelas famílias Kadafi, Assad e Mubarak e pela Casa de Saud deveria ser uma razão para serem denunciados mais vigorosamente, mas sua aparente estabilidade contribuiu para o sentimento de que de alguma forma líbios, sírios, egípcios e sauditas querem viver sob ditaduras.

A União Europeia, que tanto fez para exportar a democracia e o estado de direito para ex-ditaduras comunistas da Europa oriental, desempenhou um papel desprezível no Oriente Médio. Ela canaliza ajuda financeira, mas nunca exige em troca democratização ou restrições dos poderes de polícia. Isso terá que mudar, se as promessas do mês passado tiverem que se concretizar. Se for ajudar com a construção da democracia, a Europa terá que se lembrar, assim como os recipientes de seu dinheiro, de que jamais se pode construir sociedades livres a partir de teorias conspiratórias racistas dos nazistas e dos czares. Elas são e sempre foram as melodias que os tiranos cantam.

Jornalista, escritor e comentarista político britânico. É colunista do The Observer, colaborador do The Guardian e crítico de TV da revista Standpoint. Publicou em 2007 What's Left: How the Left lost its way e, mais recentemente, Waiting for the Etonians. Seus textos são reproduzidos no Amálgama com sua autorização e em concordância com os termos de serviço do Guardian News & Media Limited.
Nick Cohen

Fonte: Amálgama

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