fevereiro 19, 2011

"O outro lado que a CBN Manaus se recusa a ouvir", por Mario Bentes

PICICA: "Em primeiro lugar: jornalista não é juiz. Juiz é juiz. Cabe ao jornalista apurar uma informação, seja ela denúncia ou não, e ouvir todos os lados envolvidos. E cabe a este mesmo jornalista divulgar informações relacionadas ao desdobramento do caso, mesmo que a informação, por razões burocráticas, venha apenas tempos depois. (...) Em segundo lugar, Tiradentes – que se autoafirma advogado –, ao comparar as duas funções, ignora que mesmo um juiz, em seu papel de decidir quem está certo ou errado, faz questão de ouvir todos os lados. Um juiz, tal como diz a lei, tem de chamar testemunhas da promotoria e da defesa para, somente assim e amparado pela legislação, dar o veredito final. E mesmo assim, ainda há possibilidade de recurso de ambas as partes, caso não fiquem satisfeitas com o resultado." Em tempo: leia, também, para entender o caso, "Brasil: Abusos e Ameaças por trás da “Taxa do Lixo” de Manaus".

O outro lado que a CBN Manaus se recusa a ouvir



Quando, no dia 8 de janeiro de 2010, em artigo publicado no Observatório da Imprensa, o radialista Ronaldo Tiradentes – proprietário da rádio Tiradentes FM e retransmissora da Central Brasileira de Notícias (CBN) em Manaus – se comparou a um juiz para definir sua postura como “jornalista”, ele deu o tom do tipo de pensamento torpe e completamente distorcido sobre a instituição do jornalismo.

Disse ele, no referido artigo:

“Ser jornalista é como ser juiz. Em algumas ocasiões, as duas funções se assemelham. O juiz quando decide, agrada um lado do conflito e, desagrada o outro. A parte vencedora vai achar que a justiça foi feita. O perdedor, dirá que foi vítima de uma injustiça. No jornalismo também é assim. Uma matéria-denúncia deixa o denunciante mais aliviado de uma eventual injustiça e, o denunciado, revoltado.”

O que ele quis dizer é que ele e sua rádio decidem quem está certo ou errado. Simples assim. O microfone da CBN Manaus é como o martelinho do magistrado que bate na mesa quando dá o veredito.

Em primeiro lugar: jornalista não é juiz. Juiz é juiz. Cabe ao jornalista apurar uma informação, seja ela denúncia ou não, e ouvir todos os lados envolvidos. E cabe a este mesmo jornalista divulgar informações relacionadas ao desdobramento do caso, mesmo que a informação, por razões burocráticas, venha apenas tempos depois.

Em segundo lugar, Tiradentes – que se autoafirma advogado –, ao comparar as duas funções, ignora que mesmo um juiz, em seu papel de decidir quem está certo ou errado, faz questão de ouvir todos os lados. Um juiz, tal como diz a lei, tem de chamar testemunhas da promotoria e da defesa para, somente assim e amparado pela legislação, dar o veredito final. E mesmo assim, ainda há possibilidade de recurso de ambas as partes, caso não fiquem satisfeitas com o resultado.

O julgamento da médica

E foi assim, sem ouvir todas as testemunhas, que fez Ronaldo Tiradentes ao usar o microfone de sua rádio – reitero, usando a marca da CBN – para condenar, ao vivo e por bem mais de uma vez, a médica Bianca Abinader. Ele a acusou de “gazetar” o trabalho na Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade do Campo Dourado, na zona Norte de Manaus, para ficar conectada de forma “obssessiva” no Twitter.

Apesar de citar, em todas as ocasiões, que as denúncias contra a médica partiam dos moradores, nenhum único ser vivo que sustentasse tal afirmação foi ouvido pela rádio. O microfone da CBN Manaus não registrou uma única reclamação ao vivo, por telefone, nem nada do tipo. Apenas a versão de Tiradentes. Assim como não informou, de forma proposital ou por mera ignorância, que as UBS funcionam mediante agendamento antecipado, e não para atender urgências – como ele mesmo disse várias vezes.

Para disfarçar a perseguição pessoal contra a médica, ele usou como desculpa uma série de reportagens supostamente feitas pela rádio em sete casinhas, localizadas em várias partes da cidade – coisa que duvido muito que tenha acontecido naquela ocasião. E mesmo que tenha acontecido, a “série de reportagens” tinha motivação que nada tem a ver com a suposta sede de justiça de Tiradentes.

Lixo de taxa

Em fins de 2009, a médica foi uma das lideranças de um movimento que tinha como objetivo protestar publicamente contra a aprovação da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD) – a “Taxa do Lixo” – por parte da Câmara Municipal de Manaus (CMM). As chamadas ao protesto, assim como a divulgação da lista dos 24 vereadores que votaram a favor do pagamento criado pela Prefeitura de Manaus à população, aconteciam principalmente pelo Twitter e no site do Movimento Manaus de Olho, criado na época dos protestos.

Ronaldo Tiradentes, que antes da autointitulada fama de “jornalista investigativo”, foi deputado estadual e cria declarada do atual prefeito, ex-governador do Amazonas e também ex-prefeito, Amazonino Mendes (atualmente no PTB), não podia deixar barato. Daí a perseguição, disfarçada de “série de reortagens”, para desmoralizar a médica e dar fim à campanha contra a Taxa do Lixo.

Além dos comentários ao vivo, onde chamou a médica de adjetivos que prefiro nem citar neste espaço (e que rendem processos judiciais dela contra ele), Ronaldo fez diversas postagens em seu blog – também abrigado pela marca da CBN – “incriminando” a médica. A mais recente delas foi a publicação de documentos oficiais da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), datados da época em que foi contratada pelo município a partir de concurso público, em que a médica declara prestar os devidos serviços exigidos pela Prefeitura.

E só. Nada que prove ou sustente as denúncias contra Bianca. Aliás, a única coisa que Ronaldo Tiradentes provou foi sua influência política sobre a Prefeitura de Manaus. A própria médica, ligada à secretaria mediante contrato, precisou passar por extensa burocracia para obter cópias dos mesmos documentos. Ronaldo os obteve de forma rápida. Eu mesmo questionei a empresa particular que presta serviços de assessoria de comunicação à pasta sobre o processo de aquisição de tais documentos, bem como sua legalidade, mas estou sem resposta há quase duas semanas.

Sabendo que tal fato geraria contestações, ele se antecipou, em seu blog:

“A funcionária pública-médica Bianca Abinader, já não pode mais dizer que é tão assídua assim. Nem os seguidores dela na internet. Está mais do que provado que ela falta ao trabalho e não cumpre as 8 horas contratadas e pagas pelo povo.
Mas, os seguidores da funcionária pública agora vão dizer outra coisa. Que eu tive acesso a “documentos secretos” que contam a vida pública dela em detalhes. Gente estúpida é assim mesmo. Eles nem sabem que existe um documento chamado Constituição Brasileira, que é a mãe de todas as leis, aquela que pode tudo, que resguarda lá no art. 5., inciso XXXIV, o direito de qualquer cidadão requerer informações da administração pública.”

A questão, na minha opinião, não é exatamente a liberação dos documentos, mas a clara facilitação do acesso para as mãos de Tiradentes. Como disse antes, a própria médica enfrentou grande burocracia para ter acesso aos papéis.

Mais perseguições e o “nada consta”

Após as primeiras “denúncias”, a médica deixou a casinha e foi encaminhada para outra, por determinação da própria secretaria, até para que a sindicância interna pudesse investigar o caso. Bianca passou a atuar na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Morro da Liberdade, na zona Sul de Manaus. A perseguição parecia ter acabado – a médica permanecia trabalhando como sempre esteve e se ausentou das redes sociais para evitar mais exposição de sua imagem.

Mas tudo mudou quando Tiradentes recebeu, na porta de casa, uma notificação judicial. Era o processo que a médica movia contra ele por calúnia e difamação. Ele se recusou a receber a notificação e partiu para o contra-ataque enfurecido. Foi justamente quando publicou os documentos com o nome da médica que, como já citei acima, nada provaram. E voltou a citar a médica nominalmente, ao vivo, na rádio.

Por outro lado, a Secretaria de Saúde concluiu a sindicância feita a partir das primeiras denúncias da CBN, em 2010, quando a médica atuava no Campo Dourado, e concluiu – com assinatura de Angela Maria Matos do Nascimento e Deolinda Maria Nogueira Cardoso, ambas nomeadas pela própria secretaria para comandar as diligências – que nada havia contra a médica:

“Da análise dos fatos em face do exposto, concluiu-se que o fato objeto da presenta averiguação, conforme resulta dos depoimentos e das declarações apuradas nos autos desta comissão, não se acerca de indícios de crime ou transgressão disciplinar, posto que, a Dra Bianca Abinader vem realizando com diligência as atribuições que lhe são inerentes a cargo.
Entretanto, recomenda-se a revisão dos processos de trabalho da Equipe e itensificar junto à população da área descrita os esclarecimentos sobre as características da Estratégia Saúde da Família.
Desta forma, quanto aos aspectos que nos compete examinar, manifestamo-nos favorável ao arquivamento dos presentes autos.
É o relatório conclusivo.”

Mais adiante, em outro trecho do documento, os membros relatam a apuração in loco, ao entrevistar os moradores sobre a atuação da médica Bianca Abinader junto à comunidade do Campo Dourado:

“Ao realizarmos visita nos domicílios dos usuários constatamos que dentre os entrevistados 99% disseram estar satisfeitos com a qualidade dos serviços prestados pela Equipe da ESF N17, e o 1% somente, mostrou-se insatisfeito devido não conseguir marcar consulta para nenhum dos membros de sua família. A queixa maior deles não é quanto a qualidade do serviço, mas sim quanto a disponibilidade dos mesmos”.

O outro lado, jamais ouvido

Evidentemente, como era de esperar para quem conhece o tipo de jornalismo praticado por Ronaldo Tiradentes, nada disso foi comentado. Até hoje – sexta-feira, dia 18 de fevereiro, Tiradentes não fez uma única postagem sobre o assunto da sindicância. Prefere o lugar-comum de afirmar que, como cidadão, tem o direito de pedir informações sobre servidores públicos. Pura desfarçatez e cortina-de-fumaça para negar o óbvio: a própria secretaria desmente que a médica faltava ao trabalho.

Mas Ronaldo Tiradentes é daqueles que atira antes e pergunta depois. Aliás, minto: atira e não pergunta nada, nem antes nem depois. Foi assim que, por retaliação à notificação judicial, ele foi até a comunidade do Morro da Liberdade para denunciar a ausência da médica. Faltou dizer que a UBS do local entrou em reforma há algumas semanas e que, portanto, o atendimento foi suspenso – o que impede a médica de atuar.

Do mesmo modo, não informou aos seus ouvintes que a médica, bem como uma agente comunitária, entraram em processo de transferência ainda em curso e, por conta disso, permancem com destino incerto e, por razões óbvias, sem atuar profissionalmente em qualquer unidade até que se conclua o procedimento.

Como jornalista de fato, fui até o local onde ainda não há registro de sindicâncias e nem a presença dos microfones da CBN Manaus. Pessoalmente, entrevistei moradores, lideranças comunitárias e pessoas doentes – alguns acamados – sobre a atuação da médica Bianca Abinader. Todos foram unânimes em afirmar o bom trabalho de Bianca e o desejo de tê-la de volta à comunidade. Todos os depoimentos foram gravados em vídeo, e serão disponibilizados em breve no YouTube.

Além disso, há ainda outros moradores – muito mais do que pude conversar pessoalmente, que reafirmam o desejo de que a médica em questão permaneça no local. Um abaixo-assinado com cerca de mil assinaturas e entregue no dia 11 de fevereiro ao secretário de Saúde, Francisco Deodato, mostra o reconhecimento da profissional em questão.

Diz um trecho do documento:

“A Comissão de Lideranças da Comunidade do Morro da Liberdade vem, através desta, solicitar apoio sobre a situação da Casinha de Saúde 23 do Morro da Liberdade.
Recentemente foram transferidas da unidade a nossa médica, Dra Bianca Abinader, e uma de nossas agentes comunitárias de saúde, D. Margareti Rossi. Com isso, nossa carente perdemos duas profissionais que prestavam serviço indispensável de saúde e prevenção com a população.
(…)
O trabalho desempenhado por essas duas profissionais é de extrema importância para a população carente aqui do Morro, portanto reivindicamos o retorno destas o mais rápido possível, pois nossa comunidade confia e acredita na qualidade dos serviços prestados por Dra Bianca e D. Margareti em prol de nossos enfermos.”

Algumas das lideranças que assinam o documento: Gelcimar Lopes, presidente da Associação dos Moradores do Morro da Liberdade; Nelcivan Lopes de Souza, conselheiro local de saúde da UBS Morro da Liberdade; Altacy Magalhães Reis, presidente da Associação das Donas de Casa do Morro da Liberdade; Raimundo Santigo Ferreira da Silva, vice-presidente da Liga Municipal Desportiva do Morro da Liberdade; Sindomar Carvalho, diretor da Associação Social Educando Liberdade; Enéas Silva de Lima, presidente da Sociade Civil do Morro da Liberdade; Frei Marcos, Paróquia do Coração Imaculado de Maria; Enedino Gomes de Almeida, Grupo dos Amigos do Morro da Liberdade; Roberto Aragão Soares, conselheiro de Saúde da Zona Sul; Lúcia Magalhães Reis, coordenadora do Grupo da Terceira Idade do Morro da Liberdade.

Martelada do juiz

Como já afirmei acima, duvido muito que Ronaldo Tiradentes abra os microfones da CBN Manaus para ouvir a comunidade. É provável que tente, em um exercício de adivinhação, desqualificar os nomes aqui citados apenas para seguir na linha de ataque contra a médica. Talvez venha a afirmar que os depoimenos foram comprados por seus amigos de Twitter etc.

Tudo isso porque, tal como um juiz, Ronaldo Tiradentes já deu o veredito e bateu o martelinho.

Fonte: Identidade Bentes

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