fevereiro 18, 2011

"KAFKA E A ESFINGE", por José Antônio Cavalcanti

PICICA: Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós”. Em tempo: recomendo a leitura do blog Caosgraphia.
Franz Kafka e Felice Bauer
                         
KAFKA E A ESFINGE  
José Antônio Cavalcanti

* Texto publicado no Caderno B - Jornal do Brasil, em 30/05/2010,

Milan Kundera, em A arte do romance, contrapõe o trabalho dos romancistas ao dos biógrafos: enquanto aqueles desmontam suas próprias vidas para construírem seus romances, estes desfazem as obras dos romancistas para reconstruírem o que nelas se dissolveu.  Dessa observação, o autor extrai uma condenação aos segundos: “O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor nem o sentido de um romance; apenas identificar alguns tijolos. No momento em que Kafka atrai mais atenção que Joseph K., o processo da morte póstuma de Kafka se iniciou”.


O postulado de Kundera, no entanto, é incapaz de obstar a força irresistível que leva o leitor de Franz Kafka, premido pela inquietação deslumbrante de seus textos, a invadir a esfera privada do homem de carne e osso na nascente da obra. Invasão semelhante àquela que tenta se apropriar de sentidos emanados de seus escritos, vestindo-os de leituras históricas, místicas, pós-modernas, proféticas, psicanalíticas, sociológicas, teológicas. Felizmente Kafka é um autor que sempre nos escapa. Nem por isso a estranheza que causa deixa de provocar no leitor a sensação de vivenciar situações familiares, de atravessar um mundo ao qual ele, de modo misterioso, também pertence.
 
Em O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka, Louis Begley resolve enfrentar a maldição de Kundera. Para essa tarefa o autor efetuou uma rigorosa pesquisa documental, valendo-se dos diários, da correspondência e da obra ficcional do romancista.

Os textos de Kafka publicados ainda em vida foram as novelas A metamorfose, Na colônia penal e os contos “O veredicto”, “Um médico rural”, “Um relatório para uma Academia”, “Um artista da fome” e o último texto escrito por ele, “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. Em carta ao amigo Max Brod, seu primeiro biógrafo, Kafka pediu que queimasse tudo, à exceção das duas novelas citadas e de “Veredicto”, “Na colônia penal”, “Um médico rural” e “Um artista da fome”. Em outra missiva, autorizou-o a recuperar textos e cartas em mãos de terceiros. O pedido revela o altíssimo grau de exigência que se impusera e a preocupação com o caráter inacabado dos textos ainda não publicados. 

A inscrição de uma crítica ferina à intolerância em seus textos, mediante a denúncia dos absurdos do poder face à fragilidade do indivíduo, fez com que seus livros também fossem queimados em público e, em outubro de 1935, inseridos na “Lista de obras nocivas e indesejáveis” elaborada pelo regime nazista.

No capítulo “A vida é meramente terrível”, Begley retrata os anos iniciais de Kafka, nascido em 1813, e o ambiente judaico em que foi criado, inserindo-o em uma sociedade marcada por acentuado antissemitismo. A coabitação com a família foi um tormento para Kafka. O conflituoso convívio com o pai encontra sua intensidade textualizada em Carta ao pai.

Alto, esguio, elegante, vegetariano convicto, tímido e com vergonha do próprio corpo, Kafka também era adepto de práticas esportivas, apesar de uma constituição física muito frágil, fator agravante da tuberculose que abreviou a sua existência, levando-o à morte em 1924, aos 41 anos. Formou-se em Direito, fato que seguramente propiciou contato mais íntimo com a linguagem jurídica, marca onipresente em seus textos. Exerceu atividades burocráticas no Instituto de Seguro contra Acidentes do Trabalho, onde ficou até ser aposentado por invalidez em 1922.

Na verdade, a maior preocupação de Kafka no início de sua vida adulta era “descobrir uma ocupação respeitada e segura que lhe deixasse tempo suficiente para escrever e não fosse tão árdua que lhe drenasse a energia intelectual e psíquica”, assim poderia praticar o que realmente lhe importava  ̶  “Como nada sou além de literatura e não posso e não quero ser outra coisa além disso, meu emprego nunca se apossará de mim”. Begley registra a relutância ou a incapacidade de Kafka em correr riscos. Ressentia-se do provincianismo da atmosfera intelectual de Praga, contudo nunca teve energia para romper com o círculo judaico germanófono no qual circulava: embora escrevesse em alemão, não se descolava de Praga.

Begley apresenta o autor vivendo num mundo fechado, num gueto exclusivamente judaico  ‒ “Nenhum cristão jamais foi incluído, germanófono ou falante do tcheco”. Daí o aspecto inusitado de sua paixão por Milena Jesenská, de formação católica, com quem trocou correspondência e que dele nos deixou um retrato inesquecível: “Ele via o mundo cheio de demônios invisíveis a dilacerar e destruir seres humanos indefesos. (...) Ele compreendia as pessoas como só alguém com uma imensa sensibilidade à flor da pele pode compreender, alguém que é solitário, alguém que pode reconhecer os outros num lampejo, quase como um profeta. Seu conhecimento do mundo era extraordinário e profundo; ele próprio era um mundo extraordinário e profundo”.  

Todo o segundo capítulo flagra, na sensibilidade kafkiana, a sobrevivência das experiências de perseguição e exclusão sofridas pelos judeus e de intolerância do nacionalismo tcheco ao uso do idioma alemão. O autor, no entanto, adverte: “Mas ler a ficção de Kafka como histórias e parábolas da experiência antissemita adornadas com uma piscadela destinada ao público judaico é subestimá-lo. Em sua ficção ele transcendeu sua experiência judaica e sua identidade de judeu. Ele escreveu sobre a condição humana”.

Kafka apaixonava-se, era correspondido, demolia a própria paixão, subia e descia em uma gangorra sentimental, escrevia centenas de cartas, parecia que o amor ia acontecer, para tudo se desfazer no ar, inviabilizando qualquer possibilidade de união e permanência. O que dizer de alguém que conseguiu ficar noivo duas vezes da mesma mulher para abandoná-la? Qual o verdadeiro enigma de Kafka? Impotência, loucura, homossexualismo, impossibilidade de qualquer convivência, dedicação exclusiva à literatura, ascese? 

Das mulheres com quem se relacionou, apenas Felice Bauer e Milena Jensenská foram imortalizadas em cartas de uma tensa e angustiada expressão amorosa. Pelo exame da correspondência, pode ser percebido o grau absurdo da intromissão de Kafka na vida de Felice: “Deve anotar, por exemplo, a hora em que vai para o escritório, o que comeu no café da manhã, o que vê da janela de sua sala, que tipo de trabalho faz lá, os nomes de seus amigos e amigas, por que ganha presentes, quem tenta prejudicar sua saúde dando-lhe doces e as milhares de coisas de cuja existência e possibilidades eu nada sei”. Algumas  mulheres tiveram relativa importância, como Dora Diamant, Julie Wohryzek, Hedwig Weiler. Outras passaram em puro anonimato. Sobre todas, contudo, podem ser aplicadas as palavras de Kafka em referência à sua relação com Felice: “Não posso viver com ela e não posso viver sem ela”. A mulher surge como alguém simultaneamente desejado e inalcançável.

Após apresentar o período final de Kafka, no quarto capítulo, “Sou feito de literatura, não sou nada além disso”, registrando o agravamento de seu estado físico, o autor esboça uma tímida interpretação na última parte do livro – “O machado para o mar congelado dentro de nós” –, título extraído de uma bela passagem de Kafka: “Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós”. 

Ao apontar para a multiplicidade de leituras de O processo, Begley marca um ponto positivo ao criticar aqueles que veem no encontro no qual o noivado de Kafka e Felice foi rompido a culpa, a humilhação e o julgamento tematizados no romance, cuja frase inicial é uma das mais famosas da literatura do século XX: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.

Begley manifesta claramente sua preferência: “O castelo é um romance mais rico do que O processo na amplitude da narrativa, no desenvolvimento de personagens secundários cativantes e inesquecíveis (Frieda, Olga, Amália, as duas albergueiras da aldeia, Pepi e Bürgel, entre outros) e nas descrições da aldeia sem nome coberta de neve e dos interiores de estalagens e cabanas de camponeses que fazem lembrar as pinturas de Peter Bruegel. Se Kafka houvesse conseguido concluí-lo ou pelo menos levá-lo até mais próximo do término, O castelo seria o auge de sua criação”.

Benjamin, citado por Begley, parece antecipar as afirmações de Kundera: “Kafka possuía uma capacidade rara de criar parábolas para si mesmo. No entanto, suas parábolas nunca se esgotam pelo que é explicável: ao contrário, ele tomou todas as precauções concebíveis contra a interpretação de seus escritos”.  Isso não anula o trabalho de Begley, mas nos faz voltar correndo para os textos de Kafka, seduzidos pela Esfinge que neles nos acena e provoca.



 O mundo prodigioso que tenho na cabeça - Franz Kafka: um ensaio biográfico
Louis Begley
Tradução de Laura Teixeira Motta
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
256 páginas - R$ 37,00










Fonte: Caosgraphia

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