fevereiro 27, 2011

Nota sobre destemperos verbais e intenções do discurso

PICICA:  "Perderão tempo e gastarão tinta os que considerarem esta breve nota como uma tentativa de transformar a postura ofensiva do prefeito em algo mais aceitável. Foi porque se deteve o foco no elemento ofensivo que se permitiu a resposta supostamente reparadora vista no vídeo em que o alcaide pede desculpas ao respeitável público, reduzindo o episódio a um incidente do cotidiano."

acriticaweb | 25/02/2011 |

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NOTA SOBRE DESTEMPEROS VERBAIS E INTENÇÕES DO DISCURSO

Na galeria dos políticos que causaram impacto na opinião pública com seus destemperos verbais, Amazonino Mendes veio juntar-se a Art(h)ur Virgílio Neto, cuja maior bravata foi ameaçar o presidente da república Luís Ignácio Lula da Silva com uma surra. Neto é campeão nessa modalidade. Sobre ele pesa a responsabilidade de mando das agressões sofridas pelos camelôs de Manaus na sua gestão como prefeito. Por esta perderia a disputa à Prefeitura, por aquela perdeu a eleição para o Senado.  Amazonino, neófito nessa modalidade, que se cuide!

Qualquer especialista em linguagem sabe que palavras, além de expressar idéias e pensamentos, servem também para dissimular e ocultar. No episódio entre o prefeito de Manaus e a cidadã moradora do bairro Santa Marta, três frases mortíferas foram proferidas pelo incauto: “Então morra,morra, morra aí!”, referindo-se à resistência da morada em sair da área de risco daquela ocupação, onde morreram três pessoas; “Então, tá explicado”, referindo-se à naturalidade da imigrante, que como seus conterrâneos paraenses estão sujeitos a um violento preconceito social na cidade de Manaus; e “Isso é ignorância”, referindo-se aos argumentos das mulheres que pediam pela urbanização do bairro. 

Para além da suposta xenofobia, explorada à exaustão pelos seus adversários – e que no máximo merece censura pública, mas não um pedido de impeachmeant – , o desafio dos leitores e/ou telespectadores é não se deixar enganar por outras intenções, ainda não decifradas, dos que se apropriam da notícia veiculada nos meios de comunicação isolando o texto do contexto em que ele se produz. 

Ora, nenhuma frase pode ser interpretada ao nível da própria fala posto que seus elementos se inserem em discursos. E nestes há muitos enunciados e silêncios. Circunscrever a fala do prefeito à prática da xenofobia não é um expediente inócuo, certamente. Reforça os danos provocados pelo próprio emissor, mas não oferece a ossatura necessária para um discurso crítico sobre os problemas acumulados em sucessivas administrações e que resultam em tragédias anunciadas.

Perderão tempo e gastarão tinta os que consideram essa breve nota como uma tentativa de transformar a postura ofensiva do prefeito em algo mais aceitável. Foi porque se deteve o foco no elemento ofensivo que se permitiu a resposta supostamente reparadora que se vê no vídeo em que o alcaide pede desculpas ao respeitável público, reduzindo o episódio a um incidente do cotidiano. 

Quem entrou nessa barca furada, perdeu a oportunidade de pautar o debate público com aquilo está para além da subjetividade de Amazonino Mendes e de seus enunciados ofensivos: o caos que reina na cidade. Sobre esta uma quarta frase do prefeito, se não dissimula o enunciado populista, tampouco mascara as soluções historicamente oferecidas para as populações periféricas desprovidas de poder contratual: “Vocês são meus filhos; eu sou o pai de vocês”. 

O uso prodigioso de estereótipos denuncia, evidentemente, o pressuposto ideológico do discurso de Amazonino Mendes. Mas quando seus críticos abandonarão as armadilhas impostas pela lógica cartesiana para dissecar as formas menos sutis do autoritarismo que tira do alcance público matérias que dizem respeito ao bem estar de todos, como o Plano Diretor da Cidade, o futuro do transporte que queremos, a urbanização da cidade, a moradia digna, as questões trazidas pela imigração, e tantas outras afins dentro de uma visão de saberes partilhados, em que o coletivo se expresse de maneira polifônica? O resto é conversa de boi voador.

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