fevereiro 13, 2011

"Uma pauta pós-revolucionária à Tunísia", por Frédéric Brun

PICICA: "A utilização da internet se desenvolveu no começo dos anos 90, e diferentes formas de anonimato permitiram o atrevimento de engrossar a critica ao regime, sobretudo no que diz respeito ao problema do controle da informação. Blogs e redes sociais foram os sustentáculos dessa mobilização. O novo ministro da juventude, Slim Amamou, foi preso e torturado durante os eventos revolucionários, por conta de sua articulação no Facebook e em seu blog. Esses jovens parecem como duas gotas d’água em relação ao todo de jovens precários e intermitentes europeus [i], que lutam no seio do novo capitalismo, inovam em formas de resistência inéditas, permitem avanços na tecnologia da comunicação." Em Tempo: Ao ler a matéria abaixo, você pode verificar o tamanho da desinformação patrocinada pela mídia brasileira. Salvo nos veículos chamados alternativos, você não lerá nada semelhante. Ao contrário, o quadro pintado pela mídia corporativa reproduz o mundo árabe como um bando de terroristas, uma gente exótica marcada pelo comportamento sanguinário e degenerado. E pensar que a península ibérica teve um dia forte influência da cultura árabe. Os argumentos dessa mídia seguem a cartilha do Império. Estão sendo desmontados pela força democrática da Multidão. 

Uma pauta pós-revolucionária à Tunísia

By Caue Seigne Ameni12/02/2011
Por Frédéric Brun, da revista Multitudes | Tradução: Cauê Seigne Ameni

A revolução na Tunísia foi o fator desencadeador do levante que se espalhou à Argélia e ao Egito hoje, embora ela se apresenta como uma combinação original de mobilizações.

Por uma juventude diplomada, culturalmente desenvolvida, mas sem emprego. Onde 3% da população são estudantes [assim como no Brasil, onde temos 5,8 milhões de universitários] e mais da metade dos estudantes são do sexo feminino. Suas pesquisas em informática são reconhecidas mundialmente. No entanto, a taxa de desemprego alcança os 14% para toda a população, dentre a qual 30% se compõem de graduados no ensino superior. Há falta de investimento nas atividades suscetíveis para aplicação de suas competências. A utilização da internet se desenvolveu no começo dos anos 90, e diferentes formas de anonimato permitiram o atrevimento de engrossar a critica ao regime, sobretudo no que diz respeito ao problema do controle da informação. Blogs e redes sociais foram os sustentáculos dessa mobilização. O novo ministro da juventude, Slim Amamou, foi preso e torturado durante os eventos revolucionários, por conta de sua articulação no Facebook e em seu blog. Esses jovens parecem como duas gotas d’água em relação ao todo de jovens precários e intermitentes europeus [i], que lutam no seio do novo capitalismo, inovam em formas de resistência inéditas, permitem avanços na tecnologia da comunicação.

Consideráveis lutas ocorreram em 1978 (a primeira grande greve geral dos operários árabes no mundo) e em 1981. Tais lutas, renovadas em 2008 nas bacias mineiras de Redeyef e Gafsa, formaram estruturas sindicais de alto nível, capazes de desenvolver um projeto para o país. Testemunharam o programa econômico da União Geral dos Trabalhadores Tunisianos, que exprimiu as crescentes tensões, na qual o Estado submisso teve de tornar-se predatório para continuar com seus lucros. A UGTT cumpriu um papel essencial nos acontecimentos do último mês, com a organização de uma greve geral em sucessivas ondas regionais, desdobrando-se nos eventos de quarta-feira, dia 13 de janeiro, em Stax. Chacoalhou o país com 40 mil manifestantes e com todas as empresas fechadas, enquanto caminhões do exercito iam sendo aplaudidos pelos manifestantes. Portanto, a greve da região de Tunis[ii], anunciada para o sábado seguinte, prometia ser decisiva, tanto que afugentou o ditador Bem Ali, que deixou o país na sexta às 16 horas. Os grilhões de submissão e de integração governamental se tornaram minoritários e a demissão de três ministros da UGTT do primeiro governo de transição anunciaram uma aceleração na transição.

Advogados, pesquisadores, médicos e jornalistas mobilizados nos direitos humanos, na saúde, na igualdade entre homens e mulheres, na educação e etc, todos formaram um sólida rede ativa e solidária. Eles sobreviveram e reavivaram as associações, como a dos direitos humanos, e associações feministas como a das mulheres democratas.[iii]

Entre os novos ministros nomeados hoje, que os partidos políticos dos emigrados não conhecem, existem homens e mulheres muito inseridos nas políticas alternativas que tentaram promover cada um em seu setor, o que pareceria ser impossível de articular sob a antiga ditadura.

Um pedestal constitucional (muito modificados por Ben Ali, num sentido ditatorial), herdeiro do Bourguibism [NT 1], oferece um código do estatuto pessoal muito mais avançado que em outros lugares e dá a possibilidade de viver o islamismo num certo espaço público secular. A revolução tunisiana enganará aqueles que pensam que o destino de um país árabe está condenado a se debater com o islamismo.

A cegueira de todos (tanto esquerda quanto direita), a respeito ao suposto milagre econômico tunisiano, foi rapidamente desmascarada pelo movimento. A fascinação pela economia e seus indicadores (crescimento, PIB, taxa nacional de desemprego) não permitiram ver a crise real, uma crise social global [iv]. Hoje sabemos  de uma renda de 30% da economia circulando nas mãos do clã de Ben Ali e um saque de vários bilhões remetidos anualmente ao exterior. Observadores internacionais indicam que a corrupção e a apropriação ilegal chegam a 20% do PIB,ou seja,  quatro bilhões de dólares por ano. Esse sistema funcionou como uma bolha, através de empréstimos e dívidas.

As somas destes elementos dão à população, aos jovens, às mulheres, aos mineiros, a capacidade e a vontade de uma manifestação não-violenta, pois se sentem convictos de seus direitos e seus avanços. A fraternização dos policiais (que se manifestaram para criar um sindicato) e de militares que recusaram a utilizar da força, e a autoorganização dos manifestantes em quarteirões e condomínios dia após dia para resistir e caçar as milícias de Ben Ali são fenômenos próprios da sociedade tunisiana, deflagrados a partir de seu [alto] nível político e cultural[v]. A cada dia o movimento popular tem ido além das diretrizes dadas pelos partidos políticos e a maioria dos sindicatos. Os manifestantes, verdadeiros protagonistas dessa revolução, não querem descartar e expandir seu espaço potencial de forma permanente.

A obra realizada é inigualável na história recente, as iniciativas multiplicam se. Entretanto, como fazer com que a euforia não dê lugar à perplexidade, diante da vastidão de mudanças a efetuar?

A França e a Europa estão desacreditadas em face das posições de seu ministro da defesa e do parlamento europeu. Daí a nossa assistência aos tunisianos para aprofundar sua revolução é também um ato de luta contra Sarkozy e para mudar nós mesmos[vi].

A partir de então, podemos contribuir para criar fatos irreversíveis:
  • Desenvolver rapidamente uma forma original e bem avançada da Associação Européia (não cometer o mesmo erro, com a Iugoslávia. A Tunísia poderia ser o primeiro Estado de maioria muçulmano a entrar na União Européia, antes da própria Turquia);
  • Elaborar plataformas para o co-desenvolvimento na França, nas regiões;
  • Mobilizar todos os projetos possíveis para apoiar o nascimento de redes de associações, imprensa, mídias independentes e revistas;
  • Incentivar os imigrantes a exportar o know-how aprendido na França para a Tunísia: isso pode mudar fortemente a imagem que os imigrantes tem interiorizado deles mesmos há anos e dar algum sentido a suas trajetórias e a sua história de exílio.  Essa mudança de espírito nos imigrantes será de grande utilidade para minar algumas bases do populismo antiimigratório.
Hoje, graças à revolução tunisiana todos os tunisianos são parabenizados, admirados, escutados, considerados cidadãos. Todos tornaram se um pequeno pedaço do herói coletivo de Tunísia.

Notas do autor: [i] Os jovens que trabalham nos call centers somaram 12 mil 2009, em 190 centros. Dada a precáridade e a dureza deste trabalho podemos contar cerca de 50 mil jovens que algum dia por aí tiveram que trabalhar.
[ii] A união regional de Tunis (3 milhões de habitantes sob 10 milhões) é a principal estrutura da UGTT. Ela oscilou na crítica no começo dos acontecimentos e anunciou uma manifestação para 17 de dezembro, diante da sede da UGTT.
[iii] A associação das mulheres democratas organizou uma importante manifestação em Tunis, no dia 29 de janeiro.
[iv] O relatório do PNUD de 2010, alegou um milagre tunisiano em matéria de desenvolvimento humano (Francisco R. Rodriguez e Emma Samman). A ilusão desses indicadores utilizados mostra a cegueira dos observadores ou da realidade parcial de que essa melhora promoveria uma expansão dos direitos fundamentais do povo. Difícil encontrar pessoas que se opõem aos indicadores de Amartaya Sem e Strauss Kahn.
[v] Qualquer analista do islamismo, como Jean-François Bayart em Médiapart detêm o discurso simétrico de Sarkozy, no tocante ao desprezo dos povos: “A Tunísia de 2011 esta mais próxima de Bucarest de 1989, a queda foi demasiado rápida para ter sido honesta”
[vi] Um exemplo da afinidade de Sarkozy com Ben Ali foi o projeto de reforma na previdência na Tunísia, calcado sobre o projeto de Woerth. Apresentado em outubro de 2010, passando a idade de 60 a 62 anos. O ciclo de renovações das 51 convenções coletivas prevista entre setembro e dezembro de 2010, deu lugar a uma reclamação pesada que a Business News escreveu dia 8 de setembro do mesmo ano: “Não será surpreendente de ver a UTICA (sindicato do pratonato) se aliar ao UGTT para um mesmo combate. A nosso ver, a urgência não esta implicada com a aposentadoria de 2016 ou de 2020, mas com os desempregados de hoje.”


Nota da Tradução:
[1] – Bourguibismo é como ficou conhecido o modo de governar autoritário e nacionalista de um dos heróis da independência tunisiana, Habib Bourguiba, presidente entre 1957 e 1987, baseado em um estado forte, monopartidário e laico. Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Habib_Bourguiba

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Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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