PICICA: No Amazonas o silêncio sobre esses territórios do horror foi rompido no início de 1980, quando abrimos o caminho da reforma psiquiátrica. Passada a estagnação dos anos 1990, o reformismo de araque leva um duro golpe: está em curso a desativação do hospício público de Manaus. De um lado é gratificante ver um sonho, tantas vezes adiado, posto em prática. Por outro lado, são preocupantes as soluções propostas, diante da ausência de uma rede de centro de atenção psicossocial, dispositivos cuja implantação é de responsabilidade do município. Como acabam de ser aprovados em concurso público municipal nove psiquiatras (em sua maioria egressos da Residência Médica em Psiquiatria, criada em minha gestão como Coordenador Estadual de Saúde Mental, na administração do Secretário de Saúde Wilson Alecrim, sob a condução do Secretário da Região Metropolitana Dr. Raymison Monteiro, no governo Eduardo Braga, em 2007), o próximo prefeito só não ampliará a rede de CAPS se deixarmos os postulantes ao cargo nas eleições deste ano silenciarem sobre a política municipal de saúde mental, como todos fizeram até agora, à exceção do então candidato pelo PT à prefeitura, Francisco Praciano. Em quatro anos de gestão Serafim Corrêa nenhum CAPS foi implantado. Amazonino Mendes deixa dois CAPS. É pouco para uma população com quase 2 milhões de habitantes.
Meninos e meninas dividiram com adultos as condições degradantes do Hospital de Barbacena
Por Daniela Arbex
Crime de lesa humanidade. Talvez essa seja a expressão possível para definir a rotina do Hospital Colônia de Barbacena onde, até a década de1980, crianças eram mantidas nos pavilhões e recebiam tratamento idêntico ao oferecido aos adultos, permanecendo, inclusive, no meio deles. Trinta e três meninos e meninas do hospital psiquiátrico da cidade de Oliveira (MG), que havia sido extinto nos anos 1970, foram transferidos para a unidade. Lá eles sentiram na pele os maus-tratos das correntes, da camisa de força, do encarceramento e do abandono. Deste grupo somente cinco vivem, entre eles Silvio Savat, que deu entrada na Colônia com cerca de 9 anos, e Maria Cláudia Geijo, que chegou à instituição, em 1974, aos 13 anos de idade, e permanece internada até hoje.
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Silvio, fotografado por Napoleão Xavier, em 1979, aos 11 anos, vestido de mulher e com o corpo coberto de moscas na colônia deu ao autor da foto a impressão de ver um cadáver. Filho de uma família de ciganos, ele e a maior parte do grupo foi transferido, a pedido do psiquiatra Jairo Toledo, para o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em Belo Horizonte, em 1980, atual Centro Psíquico da Adolescência e Infância, onde Silvio, aos 43 anos, ainda recebe atendimento no Lar Abrigado. "O Silvio, como os outros, chegou aqui imundo. Vieram para passar um dia e acabaram ficando a vida inteira. Quem os recebeu ficou chocado com o estado dos vinte e tantos meninos de Barbacena. Aqui eles tiveram que aprender até como usar o banheiro. Fizemos todo um trabalho de resgate da cidadania, inclusive com a retirada de documentos que eles não tinham. Nenhum dos quatro que ainda estão vivos fala, mas a gente entende o que eles querem, inclusive seus gritos. O bonito de verdade é que eles não têm mais o olhar perdido", afirmou a coodernadora do Lar Abrigado, Mercês Hatem Osório.
Quatro décadas de internação
Já Maria Cláudia, mostrada nua no interior da unidade há 31 anos, ainda mora na antiga Colônia, atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em um dos módulos residenciais da unidade, hoje transformada em hospital regional.
Sem família, Maria Cláudia, com exatos 50 anos, experimenta dias melhores do que aqueles da sua adolescência, mas está entre os pacientes asilares de Barbacena, tendo dificuldades para cuidar de si mesma. É uma das protegidas de Marlene Laureano, 56, funcionária da instituição há quase 40, a quem chama de mãe. Marlene tem carinho especial por Maria Cláudia e a trata por "neném". Ela, que testemunhou os tempos de horror na unidade, foi uma das que tentou dar alguma dignidade aos internos, levando às escondidas leite em pó, pago com o dinheiro do próprio bolso, a fim de alimentar internos que sofriam também de fome. Eleita pela comunidade do hospital como funcionária lição de amor, ela tem o olhar voltado para o interior da instituição. "Esses pacientes são a minha vida."
Menino Silvio, aos 11 anos, fotografado na Colônia vestido de mulher e com moscas por todo corpo. Hoje ele tem 43 anos e vive em Belo Horizonte; e Maria Cláudia Geijo, em 79 com 13 anos e hoje com 50 anos, uma das 33 crianças.
Filha de paciente foi doada ao nascer
Se crianças órfãs tinham Barbacena como destino, os "filhos da loucura", feitos dentro do Hospital Colônia - cerca de três dezenas - eram doados logo após o nascimento sem que suas mães biológicas tivessem a chance de abraçá-los. Compreensível que, depois disso, muitas mulheres tivessem, de fato, enlouquecido.Sueli Aparecida Resende, deu entrada na unidade, em 1971, aos 8 anos de idade, - ela era uma das crianças de Oliveira -, em função de crises de epilepsia. Engravidou dentro do hospital, 19 anos mais tarde, quando tinha 27 anos. Deu à filha o nome Débora Aparecida e lutou como uma leoa para amamentar sua cria. Não conseguiu. Débora foi tirada dos seus braços com dez dias de vida e, desde aquele episódio, Sueli tornou-se uma paciente cada vez mais agressiva. A cada data de aniversário da filha, rezava por ela e sonhava com o dia em que poderia tocar a menina e ver de perto alguém que, afinal, era um pedaço seu.
Sueli morreu no início de janeiro de 2006, de infarto, aos 50 anos, privada de realizar seu sonho. Se tivesse aguentado por mais um ano teria sido encontrada por Débora, hoje com 27 anos, que a procurou desesperadamente, em 2007, logo que soube que sua mãe verdadeira era uma paciente em Barbacena. Aos 23 anos de idade, Débora, doada a uma funcionária do hospital, descobriu sua origem e tratou de resgatar o passado. Entretanto, ao chegar ao antigo Hospital Colônia soube que a mãe havia falecido poucos meses antes. "Descobrir a minha história foi muito importante, porque, desde criança, eu carregava um vazio tremendo e me sentia deslocada no lar em que vivia. Eu era uma criança triste e, somente aos 23 anos, descobri minha adoção e também que meus familiares estavam envolvidos nessa mentira. Quando soube da minha mãe, fiquei muito emocionada e fiz questão de encontrá-la. Não deu tempo. No entanto, fui informada por funcionários do hospital que ela me procurou a vida inteira", revela Débora.
Formada em letras, Débora reside hoje em São João Del Rey com o marido e ainda não tem filhos. Para ela, falar de Sueli é motivo de emoção. "Em momento algum senti vergonha dela. Ao contrário, o que senti foi uma alegria imensa de saber, através dos funcionários do hospital, que minha mãe me amou muito e quis ficar comigo. Com essa descoberta, experimentei pela primeira vez o que pode ser um amor de mãe. A referência de vida dela era eu. Lamento extremamente não ter sabido de sua existência antes de sua morte. Meu desejo, se estivesse viva, era tirá-la de lá e oferecer-lhe uma outra condição. Deram-me uma família, mas não pensaram na dor da minha mãe, quando me arrancaram dela. Se tivesse tido a chance de abraçá-la, diria e ela o quanto a amo."
Fonte: Tribuna de Minas
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