setembro 04, 2012

"A Revolta de Albert Camus.", por Bruno Cava

PICICA: "O ponto de partida de Camus é o absurdo. O homem se convence da irremediável ausência de sentido último em todas as coisas. Não tem mais nada sagrado ou transcendente para se agarrar. Bóia no oceano tempestuoso da dúvida. Deus está morto e o céu vazio, desgraçando esta criatura mortal e sofredora. Nessa condição que é a nossa, há duas atitudes possíveis. Ou o homem se rende à contingência e adoenta-se de niilismo, afundando num primeiro momento no mar da angústia e da paralisia, faminto por novas verdades e esperanças, ainda que disfarçadas. Ou se rebela, toma armas contra a injustiça e, firme, tenta de imediato por-lhes fim, agindo na urgência do presente. Uma ética niilista versus uma ética da revolta.

A primeira, a aceitação niilista do sem-sentido, pode levar o homem à tentativa de reintroduzir a transcendência pela via transversa. Daí por diante, o niilismo paulatinamente se transforma em ideologia. Se Deus não existe, pelo menos existe o Partido, a Revolução, o Futuro, então tudo é permitido. O que era rechaço imediato contra a opressão aos poucos ganha status de lógica e sistema. O assassinato cometido no afã dos insurrectos se codifica como justiçamento esquemático, impessoal e desapaixonado. Os tumultos dão lugar à disciplina revolucionária. Os crimes de paixão cedem a vez aos crimes da lógica, — o crime se faz razão e se dissemina silenciosamente, banal e insopitável. Está-se na meia-noite do século e Camus denuncia a revolta traída nos lençóis da revolução." 

A Revolta de Albert Camus.


Já ouvi algumas pessoas declararem que O Homem Revoltado é o melhor livro do século 20. Li e não duvido mais. Se não for, é decerto uma resposta ao século 20. Mas a maioria não pensava assim em 1951, quando foi publicado. Esse ensaio de mais de 300 páginas significou um banho de água fria na esquerda européia. Do intelectual engagé e militante da Resistência Francesa ninguém esperava tamanho anticlímax, numa época que a revolução socialista parecia inadiável no mundo ocidental. Dele, queriam ouvir outro grito revolucionário, mais uma conclamação às armas, no mínimo algumas palavras-de-ordem, mas Camus lhes ofereceu senões e poréns. Ambicionavam por uma mensagem audível, retumbante, implacavelmente dialética, e Camus lhes apresentou um caminho sinuoso, sinalizado por limites de velocidade e placas de “pare”. Um escândalo. Jean-Paul Sartre jamais perdoaria o colega franco-argelino.

O Homem Revoltado é todo ele arquitetado como libelo contra as utopias. Assim como o contemporâneo George Orwell, Albert Camus criticou à esquerda o socialismo real da União Soviética, contrariando todos os ímpetos e calores dos militantes do Partido Comunista Francês (PCF). A posição não poderia ser mais herética, pois se colocava na cena política e intelectual antes da defenestração do estalinismo por Nikita Kruschev, antes da insurreição húngara contra o imperialismo soviético (ambos os eventos de 1956), e muito antes da primavera de Praga de 1968.  Nesse sentido, o escritor antecipou em vários anos a decepção generalizada da esquerda com os rumos do marxismo-leninismo e sua doutrina cultural, o maniqueísmo zdanovista.

Não se trata, no entanto, de um ensaio pró-capitalismo, ou dos muitos panfletos “negros” anticomunistas disfarçados de historiografia imparcial. O livro está mais para autocrítica do que abjuração. E crítica no sentido mais lídimo da palavra: um estudo sobre as condições de possibilidade de seu objeto, ou seja, crítica edificante, propositiva, afirmativa.

É preciso notar que Camus foi do PCF de 1935 a 1937, até ser expulso e declarado “trotskista”, — rótulo intragável aplicado a quem ousa pensar por si próprio em qualquer coletivo de inspiração bolchevique. Envolveu-se com o movimento de independência da Argélia, fundou o Teatro do Trabalho, freqüentou círculos anarquistas e, finalmente, em 1941, aderiu à célula guerrilheira Combat, baseada em Bordeaux, mesmo ano em que finalizou o primeiro e mais conhecido romance, O Estrangeiro. Na clandestinidade, sob o codinome Beauchard, disparou publicações contra a ocupação nazista, até a libertação da França, em 1945. A seguir, condenou o terrorismo nuclear dos Estados Unidos, lançou o segundo romance (A Peste, 1947) e passou o resto da década de 1940 em cafés de Saint-Germain-des-Prés, num vidão de intelectual parisiense.

O Homem Revoltado é uma obra que conjuga estilo e conteúdo. A força dos argumentos vem amplificada pela prosa por assim dizer compacta, em que as frases, além de integrar blocos discursivos, bastam a si próprias, tendendo ao aforismo. A harmonia clássica ilumina a exposição e lhe confere concisão e clareza. Contornam-se as firulas. Nenhum esboço de emotividade transpira pelos capítulos. Um texto seco, direto, viril. Um pensamento feito só de músculos, tendões e nervos.

Há obras ensaísticas pretensiosas, em geral teses sobre grandes temas, que começam muito firmes, porém, chega uma hora em que visivelmente dobram os joelhos. É comum escritores púberes ou acadêmicos deslumbrados proporem mundos e fundos na introdução de seus trabalhos de juventude. Às vezes, até abrem promissoramente a exposição de argumento, exibem o seu talento, mas de um modo ou de outro não são capazes de manter o fôlego. Parece como aqueles corredores diletantes (e exibidos) que, nos primeiros dez ou quinze minutos de uma maratona, até conseguem acompanhar o ritmo da elite. Contudo, passado o entusiasmo inicial, os maratonistas treinados terminam por se destacar da turba amadora, e assumem a liderança até o final da prova. O Homem Revoltado é um livro que mantém o fôlego por 350 páginas.

O ponto de partida de Camus é o absurdo. O homem se convence da irremediável ausência de sentido último em todas as coisas. Não tem mais nada sagrado ou transcendente para se agarrar. Bóia no oceano tempestuoso da dúvida. Deus está morto e o céu vazio, desgraçando esta criatura mortal e sofredora. Nessa condição que é a nossa, há duas atitudes possíveis. Ou o homem se rende à contingência e adoenta-se de niilismo, afundando num primeiro momento no mar da angústia e da paralisia, faminto por novas verdades e esperanças, ainda que disfarçadas. Ou se rebela, toma armas contra a injustiça e, firme, tenta de imediato por-lhes fim, agindo na urgência do presente. Uma ética niilista versus uma ética da revolta.

A primeira, a aceitação niilista do sem-sentido, pode levar o homem à tentativa de reintroduzir a transcendência pela via transversa. Daí por diante, o niilismo paulatinamente se transforma em ideologia. Se Deus não existe, pelo menos existe o Partido, a Revolução, o Futuro, então tudo é permitido. O que era rechaço imediato contra a opressão aos poucos ganha status de lógica e sistema. O assassinato cometido no afã dos insurrectos se codifica como justiçamento esquemático, impessoal e desapaixonado. Os tumultos dão lugar à disciplina revolucionária. Os crimes de paixão cedem a vez aos crimes da lógica, — o crime se faz razão e se dissemina silenciosamente, banal e insopitável. Está-se na meia-noite do século e Camus denuncia a revolta traída nos lençóis da revolução.

Aliás, a acusação do ensaísta não se dirige exatamente à “revolução”. O problema de matar “em nome da revolução” não reside propriamente na “revolução”, mas no “em nome”. Não que matar seja automaticamente um ato imoral. Pode-se matar em legítima defesa, por exemplo. Mas seria inadmissível matar “em nome da legítima defesa”. Para Camus, é tão inaceitável matar em nome da revolução, como matar em nome de Deus, da Pátria, da Humanidade. Tudo isso não passa de assassinato travestido de niilismo, a crença no nada das abstrações. Porque é niilista qualquer fórmula que põe o homem, este homem, enquanto “rosto e calor”, como menos importante do que ideologias, dogmas e igrejas, — sejam elas reguladas pela idéia de Deus, da Vontade Geral, da Marcha Inexorável da História ao Futuro.

Perante a tentativa de legitimar o assassinato, o livro recusa tanto a concepção revolucionária, quanto a burguesa.

A primeira concepção agasalha a violência imediata, a brutalidade exercida sem piedade ou comoção, a fim de, esperançosamente, desarticular os mecanismos de violência difusa e anônima. Mata-se visando a um futuro igualitário e sem classes. Eis a subversão da revolta, isto é, o triunfo do niilismo sanguinário, a culminar no terror jacobino, na seita de Nechaev, no nazismo e no estalinismo.

A segunda concepção horroriza-se com a violência imediata e sua face sangrenta, mas aceita a presença difusa da violência, como crime quotidiano do poder: perpetuação da opressão de classe, mediante a “virtude” do porrete estatal. Eis o cinismo de classe-média, o cinismo do desenvolvimento da nação e do povo, em direção a um futuro de glórias. Desculpa para a injustiça do presente, ausência de revolta.

Nem a máquina assassina comandada por burocratas e intelectuais do partido nem a máquina assassina administrada pelos filisteus. Nem a profecia revolucionária nem a profecia do progresso, — duas escatologias, duas tentativas de impor a cidade de Deus na cidade dos homens, com resultado o genocídio.

O autor propugna pela revolta enquanto violência que se faz na hora da ação, na urgência da luta, decodificada e não-premeditada. Uma violência voltada à desconstrução dos mecanismos de violência, aquém da extrapolação utópica, sem a pretensão de legitimar-se nas calendas gregas, sem jamais tergiversar na veemente rejeição à pena de morte. Em todo caso, uma revolta em que cada um é pessoalmente responsável por suas ações, em que morte alguma se justificará com a invocação de letras maiúsculas. Como sustenta Ivan Karamázov, é preciso poupar todos e cada um, sem exceção.

A revolta camuseana perscruta por uma justa medida, qual no classicismo latino, por uma clareza de meio-dia contra todas as noites românticas de torpeza e pessimismo. A eficácia não pode derrotar a justiça: os fins justificam os meios assim como os meios justificam os fins. Anseia por um equilíbrio entre meios e fins, entre ação e ponderação, por um antídoto contra as “idéias alemãs”. Refere-se por essa expressão aos calores demasiado iconoclastas e exageros demasiado românticos, ao orgulho luciferiano e às imprecações cínicas. Contrapõe-se assim o autor ao “demasiado” das idéias regicidas, deicidas e liberticidas; às crenças dos “religiosos da virtude” (iluministas), dos “religiosos do crime” (libertinos e poetas malditos), dos “religiosos da história” (marxistas-leninistas). Em todos eles, rasteja o verme de um niilismo que viceja como ideologia assassina.

Por mais que O Homem Revoltado tome Nietzsche como inimigo preferencial, criticando-lhe os conceitos niilistas de vontade de potência e amor ao destino (amor fati), isso se deve atribuir mais à apropriação distorcida que o século 20 fez do filósofo, do que à letra do menos germânico dos filósofos germânicos. Nietzsche encara a filosofia como clínica, e o niilismo como a principal infecção a combater-se. Daí a sua filosofia martelar o metabolismo “alemão”, — ou seja, a sua sisudez burocrática, o seu idealismo inveterado, o seu espírito implacável de sistema, — pródigo em transformar os mais nobres ideais e virtudes em máquinas impessoais de morte. Mas Camus não reabilita Nietzsche, embora ambos os insubmissos simpatizem com ares mais mediterrâneos, greco-latinos ou renascentistas, conforme o caso.

Às “idéias alemãs”, opõe-se o “pensamento mediterrâneo”, uma metáfora que nada tem de bairrista. Enlanguescido à beira de nosso mar, acalentado pela brisa seca, ligado intimamente à terra ensolarada e ao corpo sensual, o homem mediterrâneo não sucumbirá às profecias, não trocará a sua alegria e liberdade por promessas de salvação ultraterrena. Generoso e irresignado, ele diz ‘sim’ à vida, em toda a sua tragicidade e absurdo, mas está pronto para o ‘não’ diante da mais tênue injustiça. Sua dignidade consiste na revolta e através dela se percebe unido aos outros homens. A eles combinado menos por ideologias abstratas, do que pela potência de insurgir-se, pela prática comum de direitos concretos. Pela luta em nome de coisa alguma, luta pela afirmação do que eles são: corpos livres, sadios e invioláveis. “Eu me revolto, logo existimos.”

Logo após a publicação de O Homem Revoltado, Sartre reagiu ferozmente e encheu Camus de contestações e ironias. O livro foi repudiado pela esquerda quase unanimamente. Seria esquecido rapidamente, era o veredito de seu tempo. Hoje, soam óbvias as objeções camuseanas ao otimismo e fervor revolucionários, bem como o diagnóstico do totalitarismo disfarçado de revolução, principalmente por parte da URSS. O Homem Revoltado, que rendeu um Nobel a Camus em 1957, tornou-se um dos livros mais admirados pelas letras mundiais, senão _o_ mais admirado.

É para perguntar: e na nossa geração? seria, hoje, jogar um balde de água fria em quem sequer conhece o fogo, em quem nem pensa em ateá-lo a nada? A mim, foi alimento do mais nutritivo. Confirmou-me que compreender e sentir o absurdo não significa aceitá-lo, mesmo sabendo da fatuidade última e da tragicidade inescapável da condição humana. Por isso mesmo, precisamente por causa desse reconhecimento dilacerado, é preciso não aceitar e revoltar-se. Uma revolta que não pode sucumbir a apelos transcendentes, ao retorno dos deuses, à epidemia de niilismo passivo. É preciso livrar-se dos ídolos da tribo, suas promessas de paraíso e suas certezas oficiais. A pureza do homem revoltado, a justa medida de sua revolta está em perseverar sempre revolta, — mesmo que isso signifique a derrota, mesmo que isso signifique o aniquilamento.

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