PICICA: "O
ponto de partida de Camus é o absurdo. O homem se convence da
irremediável ausência de sentido último em todas as coisas. Não tem mais
nada sagrado ou transcendente para se agarrar. Bóia no oceano
tempestuoso da dúvida. Deus está morto e o céu vazio, desgraçando esta
criatura mortal e sofredora. Nessa condição que é a nossa, há duas
atitudes possíveis. Ou o homem se rende à contingência e adoenta-se de
niilismo, afundando num primeiro momento no mar da angústia e da
paralisia, faminto por novas verdades e esperanças, ainda que
disfarçadas. Ou se rebela, toma armas contra a injustiça e, firme, tenta
de imediato por-lhes fim, agindo na urgência do presente. Uma ética
niilista versus uma ética da revolta.
A
primeira, a aceitação niilista do sem-sentido, pode levar o homem à
tentativa de reintroduzir a transcendência pela via transversa. Daí por
diante, o niilismo paulatinamente se transforma em ideologia. Se Deus
não existe, pelo menos existe o Partido, a Revolução, o Futuro, então
tudo é permitido. O que era rechaço imediato contra a opressão aos
poucos ganha status de lógica e sistema. O assassinato cometido no afã
dos insurrectos se codifica como justiçamento esquemático, impessoal e
desapaixonado. Os tumultos dão lugar à disciplina revolucionária. Os
crimes de paixão cedem a vez aos crimes da lógica, — o crime se faz
razão e se dissemina silenciosamente, banal e insopitável. Está-se na
meia-noite do século e Camus denuncia a revolta traída nos lençóis da
revolução."
A Revolta de Albert Camus.
Já ouvi algumas pessoas declararem que O Homem Revoltado é o melhor livro do século 20. Li e não duvido mais. Se não for, é decerto uma resposta ao
século 20. Mas a maioria não pensava assim em 1951, quando foi
publicado. Esse ensaio de mais de 300 páginas significou um banho de
água fria na esquerda européia. Do intelectual engagé e militante
da Resistência Francesa ninguém esperava tamanho anticlímax, numa época
que a revolução socialista parecia inadiável no mundo ocidental. Dele,
queriam ouvir outro grito revolucionário, mais uma conclamação às armas,
no mínimo algumas palavras-de-ordem, mas Camus lhes ofereceu senões e
poréns. Ambicionavam por uma mensagem audível, retumbante,
implacavelmente dialética, e Camus lhes apresentou um caminho sinuoso,
sinalizado por limites de velocidade e placas de “pare”. Um escândalo.
Jean-Paul Sartre jamais perdoaria o colega franco-argelino.
O Homem Revoltado é todo ele arquitetado como libelo contra as utopias. Assim como o contemporâneo George Orwell, Albert Camus criticou à esquerda
o socialismo real da União Soviética, contrariando todos os ímpetos e
calores dos militantes do Partido Comunista Francês (PCF). A posição não
poderia ser mais herética, pois se colocava na cena política e
intelectual antes da defenestração do estalinismo por Nikita Kruschev,
antes da insurreição húngara contra o imperialismo soviético (ambos os
eventos de 1956), e muito antes da primavera de Praga de 1968. Nesse
sentido, o escritor antecipou em vários anos a decepção generalizada da
esquerda com os rumos do marxismo-leninismo e sua doutrina cultural, o
maniqueísmo zdanovista.
Não se
trata, no entanto, de um ensaio pró-capitalismo, ou dos muitos
panfletos “negros” anticomunistas disfarçados de historiografia
imparcial. O livro está mais para autocrítica do que abjuração. E
crítica no sentido mais lídimo da palavra: um estudo sobre as condições
de possibilidade de seu objeto, ou seja, crítica edificante,
propositiva, afirmativa.
É
preciso notar que Camus foi do PCF de 1935 a 1937, até ser expulso e
declarado “trotskista”, — rótulo intragável aplicado a quem ousa pensar
por si próprio em qualquer coletivo de inspiração bolchevique.
Envolveu-se com o movimento de independência da Argélia, fundou o Teatro do Trabalho, freqüentou círculos anarquistas e, finalmente, em 1941, aderiu à célula guerrilheira Combat, baseada em Bordeaux, mesmo ano em que finalizou o primeiro e mais conhecido romance, O Estrangeiro.
Na clandestinidade, sob o codinome Beauchard, disparou publicações
contra a ocupação nazista, até a libertação da França, em 1945. A
seguir, condenou o terrorismo nuclear dos Estados Unidos, lançou o
segundo romance (A Peste, 1947) e passou o resto da década de 1940 em cafés de Saint-Germain-des-Prés, num vidão de intelectual parisiense.
O Homem Revoltado é
uma obra que conjuga estilo e conteúdo. A força dos argumentos vem
amplificada pela prosa por assim dizer compacta, em que as frases, além
de integrar blocos discursivos, bastam a si próprias, tendendo ao
aforismo. A harmonia clássica ilumina a exposição e lhe confere concisão
e clareza. Contornam-se as firulas. Nenhum esboço de emotividade
transpira pelos capítulos. Um texto seco, direto, viril. Um pensamento
feito só de músculos, tendões e nervos.
Há
obras ensaísticas pretensiosas, em geral teses sobre grandes temas, que
começam muito firmes, porém, chega uma hora em que visivelmente dobram
os joelhos. É comum escritores púberes ou acadêmicos deslumbrados
proporem mundos e fundos na introdução de seus trabalhos de juventude.
Às vezes, até abrem promissoramente a exposição de argumento, exibem o
seu talento, mas de um modo ou de outro não são capazes de manter o
fôlego. Parece como aqueles corredores diletantes (e exibidos) que, nos
primeiros dez ou quinze minutos de uma maratona, até conseguem
acompanhar o ritmo da elite. Contudo, passado o entusiasmo inicial, os
maratonistas treinados terminam por se destacar da turba amadora, e
assumem a liderança até o final da prova. O Homem Revoltado é um livro que mantém o fôlego por 350 páginas.
O
ponto de partida de Camus é o absurdo. O homem se convence da
irremediável ausência de sentido último em todas as coisas. Não tem mais
nada sagrado ou transcendente para se agarrar. Bóia no oceano
tempestuoso da dúvida. Deus está morto e o céu vazio, desgraçando esta
criatura mortal e sofredora. Nessa condição que é a nossa, há duas
atitudes possíveis. Ou o homem se rende à contingência e adoenta-se de
niilismo, afundando num primeiro momento no mar da angústia e da
paralisia, faminto por novas verdades e esperanças, ainda que
disfarçadas. Ou se rebela, toma armas contra a injustiça e, firme, tenta
de imediato por-lhes fim, agindo na urgência do presente. Uma ética
niilista versus uma ética da revolta.
A
primeira, a aceitação niilista do sem-sentido, pode levar o homem à
tentativa de reintroduzir a transcendência pela via transversa. Daí por
diante, o niilismo paulatinamente se transforma em ideologia. Se Deus
não existe, pelo menos existe o Partido, a Revolução, o Futuro, então
tudo é permitido. O que era rechaço imediato contra a opressão aos
poucos ganha status de lógica e sistema. O assassinato cometido no afã
dos insurrectos se codifica como justiçamento esquemático, impessoal e
desapaixonado. Os tumultos dão lugar à disciplina revolucionária. Os
crimes de paixão cedem a vez aos crimes da lógica, — o crime se faz
razão e se dissemina silenciosamente, banal e insopitável. Está-se na
meia-noite do século e Camus denuncia a revolta traída nos lençóis da
revolução.
Aliás,
a acusação do ensaísta não se dirige exatamente à “revolução”. O
problema de matar “em nome da revolução” não reside propriamente na
“revolução”, mas no “em nome”. Não que matar seja automaticamente um ato
imoral. Pode-se matar em legítima defesa, por exemplo. Mas seria
inadmissível matar “em nome da legítima defesa”. Para Camus, é tão
inaceitável matar em nome da revolução, como matar em nome de Deus, da
Pátria, da Humanidade. Tudo isso não passa de assassinato travestido de
niilismo, a crença no nada das abstrações. Porque é niilista qualquer
fórmula que põe o homem, este homem, enquanto “rosto e calor”,
como menos importante do que ideologias, dogmas e igrejas, — sejam elas
reguladas pela idéia de Deus, da Vontade Geral, da Marcha Inexorável da
História ao Futuro.
Perante a tentativa de legitimar o assassinato, o livro recusa tanto a concepção revolucionária, quanto a burguesa.
A
primeira concepção agasalha a violência imediata, a brutalidade exercida
sem piedade ou comoção, a fim de, esperançosamente, desarticular os
mecanismos de violência difusa e anônima. Mata-se visando a um futuro
igualitário e sem classes. Eis a subversão da revolta, isto é, o triunfo
do niilismo sanguinário, a culminar no terror jacobino, na seita de
Nechaev, no nazismo e no estalinismo.
A
segunda concepção horroriza-se com a violência imediata e sua face
sangrenta, mas aceita a presença difusa da violência, como crime
quotidiano do poder: perpetuação da opressão de classe, mediante a
“virtude” do porrete estatal. Eis o cinismo de classe-média, o cinismo
do desenvolvimento da nação e do povo, em direção a um futuro de
glórias. Desculpa para a injustiça do presente, ausência de revolta.
Nem a
máquina assassina comandada por burocratas e intelectuais do partido nem
a máquina assassina administrada pelos filisteus. Nem a profecia
revolucionária nem a profecia do progresso, — duas escatologias, duas
tentativas de impor a cidade de Deus na cidade dos homens, com resultado
o genocídio.
O
autor propugna pela revolta enquanto violência que se faz na hora da
ação, na urgência da luta, decodificada e não-premeditada. Uma violência
voltada à desconstrução dos mecanismos de violência, aquém da
extrapolação utópica, sem a pretensão de legitimar-se nas calendas
gregas, sem jamais tergiversar na veemente rejeição à pena de morte. Em
todo caso, uma revolta em que cada um é pessoalmente responsável
por suas ações, em que morte alguma se justificará com a invocação de
letras maiúsculas. Como sustenta Ivan Karamázov, é preciso poupar todos e cada um, sem exceção.
A
revolta camuseana perscruta por uma justa medida, qual no classicismo
latino, por uma clareza de meio-dia contra todas as noites românticas de
torpeza e pessimismo. A eficácia não pode derrotar a justiça: os fins justificam os meios assim como os meios justificam os fins. Anseia
por um equilíbrio entre meios e fins, entre ação e ponderação, por um
antídoto contra as “idéias alemãs”. Refere-se por essa expressão aos
calores demasiado iconoclastas e exageros demasiado românticos, ao
orgulho luciferiano e às imprecações cínicas. Contrapõe-se assim o autor
ao “demasiado” das idéias regicidas, deicidas e liberticidas; às
crenças dos “religiosos da virtude” (iluministas), dos “religiosos do
crime” (libertinos e poetas malditos), dos “religiosos da história”
(marxistas-leninistas). Em todos eles, rasteja o verme de um niilismo
que viceja como ideologia assassina.
Por mais que O Homem Revoltado tome Nietzsche como inimigo preferencial, criticando-lhe os conceitos niilistas de vontade de potência e amor ao destino (amor fati),
isso se deve atribuir mais à apropriação distorcida que o século 20 fez
do filósofo, do que à letra do menos germânico dos filósofos
germânicos. Nietzsche encara a filosofia como clínica, e o niilismo como
a principal infecção a combater-se. Daí a sua filosofia martelar o
metabolismo “alemão”, — ou seja, a sua sisudez burocrática, o seu
idealismo inveterado, o seu espírito implacável de sistema, — pródigo em
transformar os mais nobres ideais e virtudes em máquinas impessoais de
morte. Mas Camus não reabilita Nietzsche, embora ambos os insubmissos
simpatizem com ares mais mediterrâneos, greco-latinos ou renascentistas,
conforme o caso.
Às “idéias alemãs”, opõe-se o “pensamento mediterrâneo”, uma metáfora que nada tem de bairrista. Enlanguescido à beira de nosso mar,
acalentado pela brisa seca, ligado intimamente à terra ensolarada e ao
corpo sensual, o homem mediterrâneo não sucumbirá às profecias, não
trocará a sua alegria e liberdade por promessas de salvação
ultraterrena. Generoso e irresignado, ele diz ‘sim’ à vida, em toda a
sua tragicidade e absurdo, mas está pronto para o ‘não’ diante da mais
tênue injustiça. Sua dignidade consiste na revolta e através dela se
percebe unido aos outros homens. A eles combinado menos por ideologias
abstratas, do que pela potência de insurgir-se, pela prática comum de
direitos concretos. Pela luta em nome de coisa alguma, luta pela afirmação do que eles são: corpos livres, sadios e invioláveis. “Eu me revolto, logo existimos.”
Logo após a publicação de O Homem Revoltado,
Sartre reagiu ferozmente e encheu Camus de contestações e ironias. O
livro foi repudiado pela esquerda quase unanimamente. Seria esquecido
rapidamente, era o veredito de seu tempo. Hoje, soam óbvias as objeções
camuseanas ao otimismo e fervor revolucionários, bem como o diagnóstico
do totalitarismo disfarçado de revolução, principalmente por parte da
URSS. O Homem Revoltado, que rendeu um Nobel a Camus em 1957, tornou-se um dos livros mais admirados pelas letras mundiais, senão _o_ mais admirado.
É para
perguntar: e na nossa geração? seria, hoje, jogar um balde de água fria
em quem sequer conhece o fogo, em quem nem pensa em ateá-lo a nada? A
mim, foi alimento do mais nutritivo. Confirmou-me que compreender e
sentir o absurdo não significa aceitá-lo, mesmo sabendo da fatuidade
última e da tragicidade inescapável da condição humana. Por isso mesmo, precisamente por causa desse reconhecimento dilacerado, é preciso não aceitar e
revoltar-se. Uma revolta que não pode sucumbir a apelos transcendentes,
ao retorno dos deuses, à epidemia de niilismo passivo. É preciso
livrar-se dos ídolos da tribo, suas promessas de paraíso e suas certezas
oficiais. A pureza do homem revoltado, a justa medida de sua revolta
está em perseverar sempre revolta, — mesmo que isso signifique a
derrota, mesmo que isso signifique o aniquilamento.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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