PICICA:
Millôr afirma que o bêbado é o subconsciente do abstêmio. Taqui um texto
que tem a sobriedade de uma garrafa de whisky lacrada - "Sobre dirigir
bêbado". Seu autor desconstrói, a seco, "Na estrada" e a geração
'beat', sem dó nem piedade! Caso você não seja, como diz o filósofo do
Meyer, um daqueles caretas que admite qualquer vício desde que a pessoa o
tenha abandonado, e tenha tido ânsias de vômito com a visão estética do
referido texto, então você pode se encharcar com este outro texto - "On the Road" - 'on the rooks'.
Sobre dirigir bêbado
‘Na estrada’, de Walter Salles, é um culto à geração ‘beat’ dos anos 1950. Filme reforça o estereótipo do espírito livre que teria mudado a cultura jovem americana: sexo e drogas
Rodrigo Elias
30/8/2012
Na estrada (On the Road)
Dir.: Walter Salles Jr., EUA; 2012
não é tão extravagante quanto a vaca que, na hora da ordenha,
escoiceia o balde, salta a cerca e corre atrás do seu bezerro"
[H. D. Thoreau, Walden (1854)]
Dizem que a juventude entra no seu vocabulário no exato momento em que sai da sua realidade. É provável que isto seja verdade. E é provável que este seja um dos encantos de On the road, livro do norte-americano Jack Kerouac publicado em 1957. Nostálgica para os maduros, atraente para os imaturos, a obra tem sido aclamada, desde o seu aparecimento, como um retrato fiel de uma geração que supostamente transformou a “cultura jovem” americana – e, por extensão, mundial – em meados do século XX.
Aquela geração de escritores, “artistas”, traficantes, ladrões e vagabundos, conhecida como beat (algo como “ferrada”), floresceu entre as décadas de 1940 e 1950, e o barulho que fez reverberou nos anos seguintes. Também conhecidos como hipsters, algo como “desajustados”, em oposição aos “caretas” das décadas anteriores, eles estariam na origem, por exemplo, do movimento que ficou associado à contracultura dos anos 60 e 70. Movimento que foi chamado pelo seu diminutivo, hippie – uma versão mais festiva e colorida daqueles drogaditos das décadas anteriores, animados em grande parte por uma difusa oposição à política externa norte-americana.
Uma forma fácil de ver as coisas é considerar que aquelas pessoas, como Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady, William S. Burroughs e Gregory Corso romperam com valores conservadores e ultrapassados (na vida e na arte) em prol de uma cultura livre e, mais do que isso, libertária. On the road narra de forma pretensamente romanceada o encontro de alguns destes “pioneiros”, que viajam pela América em busca de aventura, sem roteiro, movidos a álcool e drogas e fazendo sexo a cada oportunidade. A depender do leitor – ou do espectador -, trata-se de convite sedutor. Mas não totalmente novo.
De Homero a Paulo Coelho A jornada é um tema antiquíssimo em nossa cultura – de Homero a Paulo Coelho, pontuando, portanto, todo o espectro qualitativo da literatura ocidental. O gosto por viagens, a atração pelo “maravilhoso”, a necessidade de deslocamento como parte essencial da formação do indivíduo ou de um grupo está presente em quase todas as culturas - na poesia grega, nas sagas escandinavas, nos mitos migratórios indígenas, no “destino manifesto” americano, no Êxodo bíblico, nos Evangelhos, em Santo Agostinho, Marco Polo, Camões, Cervantes, Goethe, Thoreau, Joyce, Nabokov... Também é um lugar-comum historiográfico, a julgar pelos grandes mitos ou tópicos dos discursos que construímos sobre o passado – da travessia do Rubicão por Júlio César ao desembarque dos Aliados na Normandia. Trata-se, provavelmente, de uma constante antropológica – talvez ainda um resquício da trajetória contínua do homo sapiens, desde a sua expansão a partir do seu berço na África Oriental...
Interessa, entre outras coisas, saber até que ponto esta representação (ou estilização) do deslocamento, na literatura ou na cinematografia, é genuína – isto é, decorre de uma necessidade real, de algo imperativo. Podemos tomar um exemplo americano clássico: no caso de Henry David Thoreau, descrito em Walden ou a vida nos bosques, de 1854, estamos diante de um autêntico manifesto a favor de uma vida absolutamente diversa do modelo burguês e capitalista que está na base da nossa sociedade. Considerado por muitos estudiosos um dos mais importantes textos de filosofia já escritos, Walden é produzido a partir da experiência de isolamento do seu autor em uma mata em Concord, no estado de Massachusetts, durante dois anos.
A partir desta experiência algo radical de deslocamento, Thoreau (americano de ascendência francesa, como Kerouac) redige um autêntico tratado sobre o que seriam as reais necessidades materiais – e espirituais – dos homens. Deu corpo, deste modo, a uma concepção literária romântica transcendentalista que inspirou gerações a buscar ao mesmo tempo uma ligação com a natureza e com formais mais elevadas de vida intelectual, destituídas dos artificialismos criados pela vida burguesa. Thoreau, portanto, tinha um alvo definido: a mesquinhez de um mundo de aparências, de consumo desenfreado, onde as pessoas valem o que possuem e são escravizadas pela lógica econômica que nos rege. E propunha uma alternativa: a vida apenas aparentemente simples, mas dedicada ao cultivo do intelecto, ao respeito à liberdade dos indivíduos (era, inclusive, abolicionista radical) e à compreensão imediata – isto é, sem intermediários – do mundo circundante. O deslocamento, no seu caso, era genuíno e útil. Além do conteúdo da sua obra, a qualidade da escrita: Thoreau era bom escritor.
Outros exemplos de genuíno deslocamento, transformados em arte de qualidade, poderiam se somar a este, seja na música – Cocaine blues, uma composição popular norte-americana gravada desde a primeira metade do século XX, entre outros, por Woody Guthrie (1944) e Johnny Cash (1968) – ou no cinema – um bom exemplo atual é o longa Aqui é o meu lugar (2011), de Paolo Sorrentino, no qual o protagonista, vivido por Sean Penn, é forçado a empreender uma jornada, contra todos os seus medos e convicções, na qual acaba por reencontrar os trilhos da própria vida. Sair de um lugar e chegar a outro, seja uma fuga ou uma busca, aparece como uma necessidade e como uma experiência transformadora sobre o indivíduo e a sua concepção de mundo.
Sem sujeira sob as unhas
A experiência do deslocamento entre os hipsters, que teve sua pílula dourada por Walter Salles Jr. no filme,é diferente. Na película do diretor do brasileiro, produzida dentro do mais alto padrão de qualidade hollywoodiano, com fotografia belíssima, trilha sonora irrepreensível, elenco famoso e simpático (há, inclusive, bons atores, mas em participações menores) e produção de arte rigorosa, o espectador tem contato com uma representação dos beats sem sujeira sob as unhas, cuja rósea aventura de descobrimento é bem convidativa.
Mas o grupo inicial, tal como aparece no livro seminal de Kerouac e em outros relatos, pelo menos aquela parte do grupo que se dedicou à criação literária, não tinha uma idéia clara do que estava fazendo. O deslocamento, neste caso, não é resultado de uma inadequação consciente ou intelectualmente elaborada – não há uma necessidade imperativa, mas decisões ocasionais que coincidem e que, se elaboradas posteriormente, não o são de forma coerente ou, digamos, sublime. Trata-se – e isto é bem claro no livro de Kerouac – de cair na estrada para seguir um vagabundo e ex-ladrão com pretensões literárias, que catalisa as atenções do grupo, Dean Moriarty (nome do personagem na ficção) / Neal Cassady (seu nome real), com quem os outros (como Kerouac e Ginsberg) têm um envolvimento de natureza sexual.
Cassady, como escreveu Claudio Willer em Geração Beat(2009), era bissexual, polígamo e oferecia suas mulheres aos seus amigos – que efetivamente transavam com elas. Atitudes que já foram eufemisticamente nomeadas de “revolução sexual”. Nestas interpretações – inclusive no tratamento dado ao tema no filme de Walter Salles Jr. – pode-se notar uma flagrante tentativa de sublimar uma postura em relação ao outro (especialmente às mulheres) que não é, necessariamente, política.
Quebrando qualquer regra de convivência social em vigor nos Estados Unidos na primeira metade do século XX, estes homens – não apenas os do núcleo central, retratado no livro e no filme – viveram aventuras regadas a álcool, cocaína, benzedrina, heroína, ópio, anfetaminas, maconha e haxixe; transaram aleatoriamente entre si, roubaram, aplicaram golpes, mataram pessoas, trataram mulheres como objetos descartáveis ou, na “melhor” das hipóteses, como objetos de troca – mulheres que, aliás, entre as que se suicidaram, foram forçadas a se prostituir para conseguir drogas para os maridos, ou abandonadas com seus filhos ou assassinadas; um capítulo quase sempre omitido quando se trata desta festejada geração beat.
Na escalação do elenco para o filme, Kristen Stewart, uma das queridinhas do momento vive Marylou / LuAnne Henderson, ou, nas palavras do narrador-autor Sal Paradise / Jack Kerouac, a “gostosa gata linda Marylou”, uma das mulheres de Moriarty / Cassidy, a quem ele se refere como “a piranha” – na verdade, a menina de dezesseis anos com quem se casara, que compartilhava com os amigos e a quem abandonou quando isto lhe foi conveniente.
A viagem
Enfim, ao longo desta jornada – ou desta viagem – estes rapazes acreditaram que eram a vanguarda artística, literária e espiritual (sim, eles geralmente atribuíam valor religioso aos seus delírios lisérgicos) do mundo. Mas talvez eles não fossem tão vanguardistas, ou talvez este legado não seja tão digno de celebração. Algumas linhas mestras dos hipsters presentes nos anos posteriores podem ser alvos de controvérsia: as propostas da “sociedade alternativa” dos hippies, a não ser que se esteja querendo, no máximo, “curtir uma” (o que deve ser legítimo em nossos dias, uma vez que quase tudo parece legítimo), caem no vazio. O que não impede, é claro, que uma reabilitação bem maquiada daquelas gerações desperte a simpatia dos nossos contemporâneos.
Por dois motivos: em primeiro lugar, assim como eles, nos achamos ótimos. Em segundo lugar, por conta de uma certa atitude apenas supostamente política em relação às drogas ilegais – lutamos para viver em regimes democráticos, ou em um “estado de direito”, desde que isto não afete a minha vontade individual, que vou satisfazer a qualquer custo, dentro do meu quarto, à revelia de todo o processo (violento) que me torna isto possível. Em geral, nos achamos muito especiais, inteligentes, cosmopolitas, politizados etc. Mas, na maioria das vezes, não passamos de hipócritas bilíngues supereducados. Não somos moralmente superiores porque usamos drogas, gostamos de poesia e votamos na esquerda. Os beats também não eram.
Destino dos beats
Kerouac foi sustentado ou abrigado por parentes boa parte da vida. Escreveu porção considerável da sua obra sob efeito de entorpecentes e álcool – seu livro Big Sur, de 1962, registra as alucinações causadas pelo abuso diário de bebida, e On the road, escrito a partir de uma “narrativa espontânea”, só ficou inteligível e pôde ser publicado depois de muito trabalho dos editores. Kerouac tem o mérito de ter escrito este livro inaugural em três semanas – mérito que seria ainda maior se o livro fosse bom. Reacionário, terminou seus dias isolado, morando com a mãe e aderindo ao mais extremo conservadorismo católico. Morreu de hemorragia, conseqüência de cirrose, aos 47 anos. Recusou – e odiou – até o fim o epíteto de “rei dos beats”, mas houve quem lucrasse muito com esta nova subcultura, que acabou seduzindo gerações e, paradoxalmente, se institucionalizando.
O celebrado poeta Allen Ginsberg, principal ideólogo do grupo, foi um destes. Dado a misticismos orientais e ocidentais, era dotado de uma espécie de certeza messiânica nas suas ideias, além de acreditar piamente que fazia parte de um seleto grupo de gênios. O autor do famoso poema Uivo (1956) era propagandista do uso de drogas (chegou seriamente a propor a distribuição de LSD para a população mundial como maneira de alcançar a paz, e distribuía o quanto podia entre os conhecidos); além disso, era defensor de um método pedagógico que consistia basicamente em promover orgias entre professores e alunos (o que fazia, enquanto professor). Ginsberg acabou por institucionalizar este conjunto de valores que hoje conhecemos por “cultura beat” – criou instituições, integrou-se à academia, virou guru artístico de grandes nomes (como Jim Morrison e Bob Dylan), foi reconhecido como um dos maiores poetas da língua inglesa e conseguiu viver até os 70 anos.
Se há, pois, alguma contribuição efetiva que deve ser avaliada em termos qualitativos no que diz respeito àquela geração, deve ser a arte que produziu. E esta, por conta da sua multiplicidade e irregularidade, não pode ser tomada como um todo. Talvez um pouco por conta da dificuldade de se generalizar estas contribuições, o que amiúde tem resultado, como no caso da recepção do filme On the road, é uma glamorização daquele modo de vida – apenas parcialmente cristalizado no grande ecrã. Entretanto, é bom lembrar que nem toda literatura é necessária, assim como nem toda viagem é verdadeira.
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