março 09, 2014

"1959, 1987, 2013… e tudo por causa do transporte, de novo", por Roberto Lopes

PICICA: "Numa realidade globalizada, e altamente instável (citando apenas a primavera árabe, Turquia e Ucrânia como casos recentes de instabilidade política e rebeliões populares), fatores como o ciberativismo, utilização de diferentes tipos de redes sociais e trocas de informações fora da mídia convencional, fizeram com que a “chama” ou ânimo das manifestações, mesmo que diminuídas, não se extinguissem com as insuficientes e parciais “concessões” que o governo Sérgio Cabral fez logo após as manifestações de junho"


1959, 1987, 2013… e tudo por causa do transporte, de novo

06/03/2014
Por Roberto Lopes


Por Roberto Lopes, doutorando da UFRJ, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações

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Niterói, maio de 1959. O governo estadual garante o aumento de 30% aos profissionais ligados ao transporte de passageiros das barcas Rio Niterói. A concessionária, se opondo ao aumento, e em represália a ele, repassa-o para a passagem da barca, transferindo o ônus do gasto aos passageiros. O governo veta o aumento, a concessionária se nega a aumentar o salário dos funcionários, e os mesmos entram em greve. A população de Niterói, que há anos sofria com os serviços deficientes desse tipo de transporte, e sem ter como chegar ao Rio de Janeiro, despejou sua fúria na estação das barcas, depredando, queimando e pilhando as casas dos donos e funcionários da concessionária, e entrando em confronto em diferentes partes da cidade. Depois de alguns dias de instabilidade, em alguns momentos beirando ao caos, o governo do estado da Guanabara aproveita a situação e assume os direitos de serviços das barcas, conseguindo conter e amenizar a fúria popular presente nos protestos.

Rio de Janeiro, junho de 1987. Anunciado novo aumento na tarifa de ônibus, algo que começava a soar corriqueiro na realidade da cidade, parecendo que seria novamente acatado pelos cariocas… mas, em 30 de junho, uma pequena manifestação iniciada de manhã acabaria se transformando em um violento protesto popular que duraria cerca de dez horas, com 100 ônibus depredados e 19 queimados, com o centro da cidade se transformando em um campo de batalha, somente amenizada na madrugada do dia seguinte. Com os protestos obtendo apoio de boa parte da imprensa e com receio da continuação dos confrontos, o governo anunciaria, dias depois, a revogação do aumento.

Rio de Janeiro, junho de 2013. A cidade carioca, por um lado, entrando no furacão iniciado em Manaus, Recife, Porto Alegre, mas, principalmente, nos violentos embates ocorridos em São Paulo, e, por outro, pela brutal e indiscriminada reação da policia militar a protestos ocorridos na cidade entre os dias 10 e 16 de junho, realizou dois grandes protestos populares, de repercussão internacional, no dia 17 de junho (com número de participantes conflitando entre 100 mil pessoas-fontes oficiais- a 500 mil – fontes não oficiais) e 20 de junho (300 mil pessoas via fontes oficiais ou um milhão via fontes não oficiais), se espalhando para outras cidades do estado como, por exemplo, Niterói e São Gonçalo. Inicia-se um longo período de instabilidade, com protestos que chegariam a ocorrer na casa do governador do estado, Sérgio Cabral, e outros com desfechos trágicos (como o ocorrido na favela da maré em 26 de junho, até hoje com o número de mortos não totalmente esclarecido), e expandido, em menor medida, a depredação de trens ligados a Supervia (conhecida pelo desrespeito ao público usuário de seus serviços). O governo do estado inicialmente recua com o aumento das passagens de ônibus, porém aumentando-a em fevereiro desse ano, indicando que a tensão entre governo e alguns setores da sociedade deverão continuar (acirradas com a morte do cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Andrade).

As revoltas populares relatadas acima apresentam três importantes aspectos a serem levados em consideração ao focarmos os protestos corridos no Brasil na realidade fluminense.

Primeiramente percebe-se que a população do estado do Rio de Janeiro não necessariamente aceitou passivamente políticas de caráter não popular promulgadas pelo governo e que, quando preciso, partiu para a ação direta para resolver e expor seus descontentamentos. As revoltas de 1959 e 1987 demonstram claramente isso. Contudo essas duas manifestações apresentaram também uma população que na verdade “descontou sua raiva” diretamente nos (fracos) serviços oferecidos pelas redes de transporte. Em ambos os casos, as demandas apresentadas não eram muito amplas (apesar de todo um contexto social de desigualdade também influenciar esses protestos). O governo, em ambos os casos, acuado tanto pela agressividade dos mesmos, quanto pelo apoio de parte considerável da imprensa, e aproveitando-se da “pauta” reduzida de reivindicações, logo cederam e puderam acalmar os ânimos antes que a situação pudesse estimular outros desdobramentos.

Em segundo lugar, conforme já citado, os transportes são apenas a ponta de um iceberg de uma duradoura, e por vezes violenta, realidade de desigualdade em que, pelo menos na capital fluminense, é vivenciada em constantes políticas de exclusão e exploração social, existentes desde o inicio do século 20. Evitando usar a imagem de “cidade partida”, cunhada pelo escritor Rubem Fonseca, o Rio de Janeiro caracteriza-se na verdade por uma ampla região prejudicada no âmbito político, econômico, social e cultural, visualizada na falta de iniciativas governamentais para melhoria de sua infraestrutura, também recebendo doses consideráveis de violência, expulsão e deslocamento, imposto por diferentes administrações, sombriamente evidentes em políticas recentes de “melhoria” da cidade para a copa do mundo e olimpíadas (visíveis nas Unidades de Polícia Pacificadora em algumas comunidades da cidade). Diferente dos protestos anteriores, as manifestações de 2013 enfatizaram em seus discursos a precarização sofrida na cidade em setores como educação e saúde.

Por fim, todos os movimentos descritos possuíram, e no caso de 2013 ainda possuem, uma heterogeneidade (com a participação de diferentes grupos políticos e sociais) que explica tanto o sucesso inicial das mesmas como as encruzilhadas encontradas no decorrer do tempo. É preciso cautela antes de dizer que as manifestações de 1959 e 1987, representadas por uma população trabalhadora descontente, tanto de base pobre quanto ligada à classe média, não foram bem sucedidas. Tanto no caso das barcas quanto nos ônibus, o governo do estado melhorou, ou obrigou as empresas de ônibus e barcas a melhorarem, consideravelmente a qualidade dos transportes durante um breve tempo após as manifestações. Contudo, os principais problemas sofridos por esses serviços (cartelização e monopolização), não focados diretamente nas demandas dos protestos, continuaram, chegando a níveis escandalosos nos primeiros anos do século 21.

E é aí que os protestos de 2013 no RJ se diferenciam dos anteriores. Numa realidade globalizada, e altamente instável (citando apenas a primavera árabe, Turquia e Ucrânia como casos recentes de instabilidade política e rebeliões populares), fatores como o ciberativismo, utilização de diferentes tipos de redes sociais e trocas de informações fora da mídia convencional, fizeram com que a “chama” ou ânimo das manifestações, mesmo que diminuídas, não se extinguissem com as insuficientes e parciais “concessões” que o governo Sérgio Cabral fez logo após as manifestações de junho. Fenômenos como a “dona baratinha” (símbolo dos protestos contra o dono das frotas de ônibus Jacob Barata) ou das manifestações de grande porte feitas pelos professores cariocas em outubro de 2013 mostram interessantes desdobramentos das manifestações de junho. Por outro lado, a guerra de informações imposta pela mídia oficial e o governo, representada principalmente pela insistente criminalização de grupos como os Black Blocs, apresentam um lado sombrio e não tão simpático dos acontecimentos. Ainda existe certa indefinição sobre o que toda essa movimentação poderia acrescentar para a realidade carioca além da resistência as políticas autoritárias do governo Sérgio Cabral e de melhorias relacionadas aos transportes. Contudo, conforme citado ad nausea no ano passado, os protestos mostraram, com propriedade, que os mesmos foram (e são) muito mais do que reclamar por apenas “vinte centavos de aumento”.

No Rio de Janeiro, sabemos qual o fator, como e de que forma os fluminenses ocasionalmente se rebelam contra o governo. Dessa vez, contudo, são percebidas mudanças e (alguns não tão bons) desdobramentos. Será que, dessa vez, a voz do carioca, cedo ou tarde, trará melhorias amplas, e em longo prazo, para a cidade?

REFERÊNCIAS

ASSIS, Charleston Jose de Sousa. A Revolta de 30 de Junho – Levante Popular contra o Aumento das tarifas de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado em história. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003.

ASSUMPÇÃO, E. A.; FRANCO, T. B.. Por uma cidade menor: hegemonia e resistência na cidade do Rio de Janeiro. Lugar Comum (UFRJ), v. 1, p. 145-155, 2013.
Vídeos:

Os anos JK. Direção: Silvio Tendler (1980). Imagens sobre dissenso enérgico democrático nas barcas em 1959 entre 01h01min até 01h02min do filme.

Imagens sobre os protestos e ações diretas ocorridos em 1987

100 MIL – RJ. Protesto no Rio de Janeiro. Documentário da produtora “Três filmes” (2013).

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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