PICICA: "Dentro do propósito de produzir e difundir conhecimento nas
lutas, das lutas e para as lutas, o coletivo de tradutores da UniNômade
publica hoje a primeira parte de um trabalho de fôlego. Estamos
traduzido a revista Documentando a Maidan (dez 2013 – fev 2014), uma revista do grupo Prostory,
elaborada por escritores, intelectuais e jornalistas locais, escrita
originalmente em ucraniano e recentemente levada ao inglês. Ela se
propõe a investigar a complexidade, as mil faces das lutas concentradas
na praça Maidan, que levaram a Ucrânia a uma situação imprevisível,
cambiante e profundamente polivalente — noutras palavras, como os
próprios editores classificam — revolucionária. O resultado é uma
narrativa em forma de mosaico, por vezes direta e realista, noutras
delirante, à beira de não fazer sentido.
Como primeiro texto, foi traduzido do inglês o editorial em forma
de conversa, onde vários participantes da edição comentam sobre temas
candentes da praça Maidan em seu desdobramento multifacetado: os mitos,
as ideologias, os extremismos e alguns dos conflitos que envolveram as
centenas de milhares que passaram, lutaram e acamparam pela principal
praça de Kiev."
A revolução ucraniana por quem a experimenta
15/03/2014
Por Prostory
Por Prostory | Trad. UniNômade Brasil
Dentro do propósito de produzir e difundir conhecimento nas lutas, das lutas e para as lutas, o coletivo de tradutores da UniNômade publica hoje a primeira parte de um trabalho de fôlego. Estamos traduzido a revista Documentando a Maidan (dez 2013 – fev 2014), uma revista do grupo Prostory, elaborada por escritores, intelectuais e jornalistas locais, escrita originalmente em ucraniano e recentemente levada ao inglês. Ela se propõe a investigar a complexidade, as mil faces das lutas concentradas na praça Maidan, que levaram a Ucrânia a uma situação imprevisível, cambiante e profundamente polivalente — noutras palavras, como os próprios editores classificam — revolucionária. O resultado é uma narrativa em forma de mosaico, por vezes direta e realista, noutras delirante, à beira de não fazer sentido.
Como primeiro texto, foi traduzido do inglês o editorial em forma de conversa, onde vários participantes da edição comentam sobre temas candentes da praça Maidan em seu desdobramento multifacetado: os mitos, as ideologias, os extremismos e alguns dos conflitos que envolveram as centenas de milhares que passaram, lutaram e acamparam pela principal praça de Kiev.
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Maidan: pluralidades colhidas
A nossa conversa editorial se encerra no momento de uma transformação de grande escala — em 24 de fevereiro, 2014. Em Kharkiv, no leste da Ucrânia, as pessoas temiam embates violentos entre ativistas da Maidan e grupos paramilitares; ao mesmo tempo, os ministérios em Kiev estavam aparentemente sob controle dos manifestantes; numa universidade, os estudantes expulsaram a administração corrupta e se organizaram como autogoverno. E enquanto esta publicação é impressa, a história da Ucrânia continua a ser escrita.
Como os protestos começaram pra vocês?
Nelia Vakhovska: A nossa experiência da Maidan é de um corpo político autônomo que expressa a descrença em relação a todos os políticos — de situação ou oposição. Em termos de política partidária, este corpo, apaixonado e diversificado em sua composição ideológica, é apolítico. Seu começo me lembrou muito da Revolução Laranja (2004-05): um protesto pacífico, com cultura pop e danças de roda, protagonizado pelas classes médias que queriam juntar-se à Europa.
Mas os conflitos de rua revelaram algo mais: a indignação, a raiva e o desespero de várias classes sociais, cansadas do arbítrio das autoridades. Uma “revolução” desesperançada. Soa banal, mas o divisor de águas entre os sonhos da Europa e os sonhos do “aqui-e-agora” ucraniano correu como sangue: primeiro, estudantes foram espancados, depois, ativistas foram mortos. Motivados pela disfuncionalidade do governo de Yanukovich, para mim, o que tinha começado como um protesto ambíguo, (des-)orientado pelo nacionalismo, havia se convertido numa revolução real, sem aspas.
Yevgenia Belorusets: Ao redor de dezembro, o protesto pacífico já tinha se tornado imprevisível, como se tentasse resistir à possibilidade interpretação. Parecia que, desde os primeiros dias, a Euromaidan era um campo de luta simbólica. É um pensamento em processo de formação, que ainda não desabrochou, cheio de correntes políticas ocultas, que só podem ser sentidas corporalmente, ainda não intelectualmente. É também o palco em que tem havido uma luta permanente, que salta aos olhos, pela apropriação dessa diversidade de correntes políticas, pela conquista do poder sobre elas, pela dominação intrusiva de certa retórica ou outra. O governo tentou de tudo para destruir o protesto. Enquanto isso, a “oposição” política ainda comercia com a obsoleta, porém intemporal mensagem: “Os heróis são vocês!”, cobrando em contrapartida um alto preço.
Nataliya Tchermalykh: A minha primeira Maidan foi virtual: começou online, em redes sociais — era a #Euromaidan. A paisagem política estava mudando rápido e nós não conseguíamos tirar nossos olhos das telas… Cedo, na manhã de 24 de fevereiro, anarquistas de São Petersburgo, trabalhando com o artista Petr Pavlenskiy, fizeram uma performance intitulada Liberdade, diante da Catedral de São Basil, em Moscou: os ativistas atearam fogo numa pilha de pneus, criando uma paisagem de fumaça preta no centro da capital, uma imagem que, no inverno, estava firmemente associada com Kiev.
Quaisquer que sejam os resultados políticos da revolução, a Maidan se tornou uma narrativa visual forte, uma convocação à ação política no mundo pós-soviético, e também além. As reverberações vão provavelmente ecoar por um longo tempo em todos os cantos. A Maidan nesses três meses ainda é um território não-mapeado, em que os pontos de referência ética, política e ideológica a que estamos acostumados se mostraram irrelevantes. A Maidan se multiplicou em milhares de vozes diferentes que, teimosamente, recusaram-se a fundir numa melodia única e harmoniosa. O único denominador comum dessa complexa matéria social e antropológica até agora foi o rito trágico de luto coletivo, partilhado pelas pessoas que morreram em 18 e 20 de fevereiro de 2014. Ainda nos resta construir o mapa da Maidan: talvez cada um de nós precise estar pronto para questionar todas as suas crenças e prejulgamentos.
Sobre seu envolvimento pessoal no protesto. Que formas ele assumiu (ou não)?
Nelia Vakhovska: “Não atire, seus bastardos!” — gritou um ativista na cidade de Khmelnytsky, sobre o corpo de uma mulher alvejada por um membro da polícia secreta. Parece que esta se tornou a minha fórmula para o protesto. Eu não posso assentir com as implicações misóginas, homofóbicas, xenofóbicas e populistas da Maidan. Durante períodos de trégua, eu não podia encontrar de jeito nenhum um lugar pra mim ali — às vezes por causa da distância geográfica, mas na maioria delas por causa da incongruência ideológica com o discurso vazio sobre a nação, o machismo, a disciplina paramilitar, o descontrole de grupos radicais de extrema-direita, a ausência de programa social e político etc.
Mas, mesmo nessa situação, eu frequentemente me vi jogada na Maidan — quer pelas notícias de Putin lançando uma sombra sobre minha família, quer pelo narcisismo da esquerda ucraniana, quer pela infantilidade dos relatos da mídia europeia sobre a Ucrânia. Eu estou à margem disso tudo. No entanto, em dias como hoje (18/2/14), quando cidadãos da Ucrânia são declarados terroristas, a incompatibilidade ideológica sai de cena e eu me vejo obrigada a tomar o lado dos cidadãos, lutando contra seu estado. Deste ponto de raiva impotente, vou repetir: “Não atirem, seus bastardos!”. Então eu vou e ajudo no hospital.
Yevgenia Belorusets: A política bateu na porta, tomou nossas vidas e descartou qualquer possibilidade de não-envolvimento. Ainda assim, no começo do protesto, você não poderia imaginar-se que um dia seria parte inseparável dele. Para mim, os obstáculos foram a retórica de direita, a ausência de representação política para a maioria dos manifestantes, e a ampla variedade de populistas ocupando o microfone. A participação de outros, de pessoas que se mudaram para as praças de Kiev tão cedo quanto dezembro, pareceu ser um enorme sacrifício para elas, um fardo de tarefas duras e difíceis.
Quando o protesto pacífico começou, muitos tiveram de pagar por sua participação com o drama de não ter mais uma casa. Eu vi pessoas tremendo de frio, exaustas, sentadas por horas do lado das barricadas, descansando um pouco ao redor de fogueiras ou dentro de barracas sempre geladas, atravessando o mais rápido possível as ruas cheias de lama, para se manter quentes. Mesmo de noite, essas pessoas não conseguiam sair da Maidan. Nela, tiveram tentativas de expulsá-los pelo governo, mas eles se armaram com bastões e escudos e ficaram. Num tempo congelante, a polícia lançou jatos de água contra eles, atirou com balas de borracha e, depois, foram balas letais.
A realidade política ucraniana não respeitava a opinião há tempos: palavras, sinais, gritos — por muitos anos, não significaram nada. Artigos analíticos de jornalistas ucranianos pareciam um interminável e fraco argumento por ação no nível político. O que está sendo formulado agora, para eles, é despojado de qualquer valor.
A ordem para atirar em pessoas desarmadas foi uma tentativa de assassinato, num terreno em que as autoridades, aos poucos, pretendem retomar. Isto significou um mergulho para além da questão da economia, para dentro da esfera existencial, em que a violência e a dominação assumem uma escala completamente diferente. Não é mais questão de opinião. O que estão fazendo é reduzir a existência do homem à formalidade, que então pode ser ignorada.
O que vocês acha do campo simbólico/mítico do protesto?
Nelia Vakhovska: Desde bem no começo, a Maidan emergiu vacilando entre a Europa e a Rússia, mas aí rapidamente deslizou para a oposição axiológica entre luz e escuridão (que os próprios manifestantes traduziram segundo um registro irônico: a tropa de choque, chamada Berkut, é descrita como uma tropa de Valquírias ou Nazgul, inspiração tirada de O senhor dos anéis), um nós x eles típico do poema épico mitológico. Nesse quadro, uma estrutura arcaica de gênero apareceu (“as meninas cantam o hino nacional e os meninos as protegem”), histórias de “amor nas barricadas” e “amor nos lados opostos das barricadas”, rituais da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e do Exército Insurgente Ucraniano (UPA), enquanto o “eles” expandiu até cobrir todos os estrangeiros (sobretudo, os russos) e os inimigos internos (provocadores, as regiões da Ucrânia Leste etc). Ao mesmo tempo, o sofrimento foi urdido como a questão central do “nós”, legitimando a ideia nacional e as monstruosidades de um nacionalismo radical. Mas tudo isto não surgiu agora, e em parte é auto-irônico e esperado, afinal, a presença das barricadas naturalmente produz uma bipolaridade.
Nataliya Tchermalykh: Sim, não há dúvida que a questão épica-heroica aparecerá nas descrições da Maidan: hoje em dia essa linguagem poética e mítica é dominante em toda a cultura ucraniana. O estado ainda fala com os seus cidadãos na linguagem romântica do século 19. Mas estou interessado noutro aspecto da Maidan: como símbolo político de uma democracia espontânea. Mas essa democracia está repousando, contudo, num campo mítico, abstrato. Sua estrutura é um oxímoro: é baseada na lógica mutuamente exclusiva do estado e da anarquia, da construção da “Nova Ucrânia” e da “Zaporizhian Sich” — cuja significância histórica era ser um antiestado que, apesar de tudo, existiu na história como uma república paramilitar separada. O que poderia ser mais paradoxal do que uma república anárquica no interior de um estado oligárquico?
Um paradoxo reside, ademais, no sistema de tomada de decisão, a base democrática da Maidan. É divertido pensar como as pessoas se informam e são mobilizadas pelas tecnologias mais avançadas da internet, mas ainda assim o próprio processo de tomada de decisão é feito com as mãos, à moda antiga: ninguém conta votos, quem gritar mais alto está certo. Isto, obviamente, quando essa voz não for imediatamente arrastada para voz da Maidan, por aqueles que falam em nome da Maidan, embora não tenham sido eleitos pra isso. O paradoxo também está presente no imperativo moral principal da Maidan: a ética de total reciprocidade entre as pessoas. A micropolítica do dia a dia traz a alegria do engajamento e da empatia — mas ao mesmo tempo esquece completamente a estrutura social necessária, isto que nós precisamos para reconstruir uma sociedade que funcione.
O imperativo moral suplanta o social?
Vasyl Lozynskyi: A coisa mais potente foi o campo simbólico do protesto, mas o mito ainda é, na maior parte, um resíduo do passado. Apesar disso, uma nova mitologia também está sendo criada, uma que nós vamos ouvir mais a respeito no futuro. Eu penso que não apenas técnicas e táticas comprovadas de protesto tenham sido aplicadas, mas também têm havido muitas descobertas, por exemplo, como comunidades urbanas podem adaptar-se a protestos de longa duração, e como a esfera pública pode gerar o nascimento de novas formas sociais. Portanto, o ativismo de base é exatamente o que alimenta os vários mitos, tanto moderados quanto os de direita. É importante que essas bases do dia a dia possam produzir mecanismos de cooperação e não se voltem apenas para legitimar o mito do poder e da violência.
Taras Fedirko: A Maidan toma emprestado seu título do nome ucraniano para a principal praça de Kiev (Maidan Nezalezhnosti, ou “Praça Independência”). Isso é menos geografia do que história. Em 2004-05, na Revolução Laranja, os protestos ocorridos na Praça Independência abriram o precedente para chamar quaisquer protestos pelo país de “maidan”. A palavra então se tornou um termo à mão para as tentativas de luta pelos cidadãos, na história ucraniana recente. Em 2012, houve a Maidan dos Impostos, e em novembro de 2013 os manifestantes rapidamente apareceram com um novo nome: “Euromaidan”. Agora a Euromaidan aparentemente “venceu”, e o “maidan” da palavra se converteu num alerta. Da mesma forma que a maidan “Laranja” se traduziu numa grande decepção política, que levou a um afastamento afetivo e social da política por parte de muitos manifestantes da época. Em 2004-05, muitos tinham canalizado as suas esperanças e expectativas na confiança pessoal em líderes e sua capacidade de compor uma política transformadora.
Agora, a parcela “Euro” da Euromaidan é usada frequentemente para referir-se a um domínio particularmente indefinido, que pode ser convenientemente usado para depositar esperanças políticas e nutrir os sonhos por outras realidades políticas. A “Europa” é um mito ucraniano de longa data, e existe uma rica história pós-soviética e pós-Guerra Fria de crenças no futuro brilhante de uma Ucrânia europeia. De fato, os comentadores ocidentais ironicamente apontam como os manifestantes ucranianos parecem acreditar na imagem de uma Europa unida, mais do que nos cidadãos concretos da União Europeia, marginalizados numa crise econômica, de déficit democrático e das medidas de austeridade. Outros — principalmente a Esquerda Ucraniana marginal e os liberais que se opõem ao nacionalismo — veem como sua tarefa lembrar às pessoas que o nacionalismo étnico e as políticas segregacionistas da maidan não são compatíveis com os “valores europeus”, o que quer que isto possa significar. Ainda assim, como o desapontamento com as “preocupações profundas”, bem como com a inação dos líderes ocidentais pró-Europa, simplesmente a “maidan” ganhou popularidade como o novo nome para o protesto, e assim o protesto se tornou menos sobre a “Europa” e mais sobre o atual estado de anomia e violência. Finalmente, parece que a própria Euromaidan pode acabar virando um mito, uma narrativa recém-formatada, por meio do que o futuro do estado ucraniano poderia ser explicado. O protesto e suas vítimas já são glorificados como nomes de ruas, como aquela rua chamada de “Heróis da Praça Maidan”, enquanto as mortes, a violência e o sofrimento são vistos como “martírio pelo país”.
Como os intelectuais ucranianos reagiram à Maidan?
Yevgenia Belorusets: Já nos primeiros dias da Maidan, eu ouvi exclamações exuberantes: as vozes atordoadas e jubilosas dos escritores ucranianos não podiam compreender por que eles não estavam lutando contra as esfinges e outras criaturas míticas, que pareciam estar vazando da ágora das ruas como se fosse uma cornucópia de monstros. O que eu não entendo é por que não estavam os intelectuais ucranianos falando da antidemocracia do Setor Direita? por que estavam se calando sobre a violência intestina entre os manifestantes? por que eles tacitamente aprovavam a luta vitoriosa contra estátuas, quando não tinha acontecido ainda nenhuma vitória política? Era óbvio que um sonho antigo estava se tornando realidade e eles custavam a acreditar em sua viabilidade. Quantas vezes em anos recentes eu encontrei pessoas por acaso me dizendo com desânimo estampado no rosto: a vida é dura, quase insuportável, mas assim é a nossa nação. Nós vamos sofrer até o seu fim amargo, até morrermos totalmente. E eu não era o único para quem parecia que havia um grão de confiança no meio deste fatalismo maldito.
Mas as vozes exultantes dos escritores e poetas não estavam apelando à lógica política, em vez disso elas apelavam para algum tipo de magia, que supostamente ajudaria a sustentar os protestos, fazê-los acontecer e desenvolver-se sabe-se lá como. A base dessa admiração cega é uma crença muito forte na apatia universal e na impossibilidade de o protesto acontecer na Ucrânia, em todo seu caráter maravilhoso e inesperado. O desafio para a realidade de hoje é como renunciar a esses milagres e conduzir em seu lugar uma política real, como conduzir a rotina política e econômica, largamente entediante, e o trabalho social.
Nelia Vakhovska: Eu concordo com Zhenya. O que realmente surpreendeu-me sobre a Euromaidan foi a teimosia com que intelectuais ucranianos não somente não desconstruíram os mitos cotidianos, como eles próprios criaram e desenvolveram dicotomias ideológicas: Ucrânia x Europa idealizada, heróis da Maidan x provocadores pagos e, por último, Ucrânia Ocidental x Leste. A história, a linguagem, a economia, a socialização, a habilidade de cantar músicas natalinas, e outras realizações de uma antropologia nacional doentia, foram usadas para fazer essa diferenciação de valores (será que não se inspiraram na propaganda de Putin?). Finalmente, graças aos esforços perenes de muitos “intelectuais”, o Mordor imaginário ucraniano foi identificado no Leste e, enquanto isso, a realidade política parecia destroçar o esquema fácil que dicotomiza a grandeza espiritual da Ucrânia, à direita, e da base social material, à esquerda. Subitamente, aprendemos que as fronteiras estão em… nossas mentes, como uma linha entre valores progressistas e regressivos. Mas à parte disso tudo, a Maidan como um lugar de valores inegavelmente “progressistas” falhou em falar consistentemente sobre os direitos humanos.
Quais posições, ideologias e pontos de vista parecem dominar o processo, e quais estão em minoria, suprimidos, ou ignorados?
Nelia Vakhovska: Escrevendo no Guardian, Timothy Garton Ash chamou a Maidan de “Chernobyl político” num artigo. Essa metáfora funciona tanto internamente quanto externamente, incorporando, por um lado, a o medo do dito “primeiro mundo” perante seus satélites e, por outro lado, a surpresa subversiva que os protestos foram para a Ucrânia. A ilegitimidade essencial das estruturas de representação política ficou óbvia no passado também, pelo menos para os ucranianos, embora somente no final de 2013, — no contexto da crise do mais recente mito rosado: a Europa, — que a indignação chegou ao clímax.
As perspectivas de uma nova ordem política me assustam devido à espontaneidade e falta de demandas sociais na Maidan, enquanto a história de sua luta e suas vítimas ensanguentadas têm consagrado a retórica da direita. Como resultado, existem várias vozes ignoradas aqui — não estou falando daquelas que não são expressas, mas que não conseguem achar suas próprias palavras e, por consequência, se juntam ao coro da “Glória à Ucrânia”. Eu não sei se mais alguém vai falar sobre isso, mas agora eu tenho a sensação clara que, na onda de euforia, um novo anúncio de vitória surgiu, quando uma nova rodada de glorificação de nossa própria vitimização vai tomar lugar. Aí, um culto dos heróis mortos, os “Cem Celestiais”, será criado na velocidade da luz, num contexto em que a crítica será então impossível; e aqueles que não participarem do protesto vão praticamente perder o direito de falar. Não nos esqueçamos que estamos falando de uma grande parte da população ucraniana que os novos heróis excluem do campo da legitimidade ética.
Yevgenia Belorusets: Quase todos os “pontos de vista” foram ignorados. Provavelmente porque, — para continuar o que eu tinha falado antes — o protesto até agora foi conduzido no mesmo nível de conflito aberto, onde opiniões, programas e visões perdem o significado. Em vez disso, nós temos de ouvir ao comentários ininteligíveis, substitutos [ersatz], sobre os “radicais de extrema-direita” e “moderados” na Maidan. Corpos, e não posições, são apresentados como um argumento político importante, mas eu estou apenas agora percebendo o grau do erro dessa substituição. Eu falei com um ativista do Setor Direita e me surpreendi em ouvir opiniões tolerantes e democráticas, que nem sequer remotamente se enquadram em “posições políticas da direita”, como nesses comentários. Nós ficamos para tentar aprender em qual nome suas ideias legitimamente cabem.
Nataliya Tchermalykh: Eu também pensei bastante sobre isso: graças à situação revolucionária, sentidos implicados no real e politicamente conhecidos se distanciam. A linguagem política está mudando constantemente. Como tantos itens léxicos novos, comparações irônicas, memes e mitos geraram a Maidan? Foi ali que eu primeiro ouvi todos os dialetos ucranianos possíveis. Alguém com frequência ouve que a Maidan é uma metáfora composta, uma projeção, talvez mesmo um mapa ressuscitado de um país maior, ao redor de cujo coração se levantaram as barricadas. No entanto, do modo como a Maidan é descrita e vista de fora, prevalece outro dispositivo retórico — a metonímia, isto é, uma transferência das qualidades da pluralidade para uma instância única, por meio do princípio da contiguidade. Um número infinito de Maidans foram retratados nas páginas da imprensa estrangeira, no entanto todas pareciam únicas e separadas: a Maidan da bandeira europeia, a Maidan da cozinha esfumaçada, a Maidan do coquetel molotov, a Maidan dos tacos de beisebol e das balaclavas, a Maidan em chamas, a Maidan dos inocentes assassinados, a Maidan sagrada banhada em sangue. Através do princípio da metonímia, toda a Maidan estaria se deslocando para tornar-se, primeiro, pró-europeia e, depois, ultradireitista. Ocorre que os episódios não param de suceder-se, e não existem assim separados, sem subordinação, coordenação ou causalidade entre si. O fato é que ninguém conta a história da Maidan. A atividade de contar histórias deveria ser de jornalistas, políticos, editores, e da tradição oral. De vez em quando, essa atividade começa a ficar estranha, a parecer-se com linguagem nenhuma, mas somente com aquela da arte, uma possa descrever a Maidan como uma totalidade intuitiva, dotada das qualidades da subjetividade política.
Vasyl Lozynskyi: Eu acredito que houve uma mudança de direção, em relação à inicial, um protesto civil e social, onde todas as pessoas eram iguais e a única coisa regulada era o direito de negociar com o governo falar no palanque. Diante disso, o radicalismo — que está sempre presente — evoca ora a compaixão, ora o medo. Muitas posições moderadas ou superadas não foram ouvidas porque se estabeleceu um círculo infernal entre as demonstrações de força do governo e as desse radicalismo.
Taras Fedirko: Por trás dos mitos potenciais e atuais da Maidan, está a premissa de unidade (metafórica): “Maidan” como um nome único para muitas manifestações, Maidan como um espaço para causas e agendas políticas díspares, Maidan como a única instituição democrática legítima. É importante que essa unidade não se torne um mito de pureza ou nacionalista ou de qualquer outro tipo. A Maidan não deveria se tornar uma narrativa segregacionista, como a única interpretação da política ucraniana hoje. Parece-me que este número de Prostory almeja exatamente isso. Elaborar a complexidade dos protestos, buscando representar a o caráter diverso e fragmentário da Maidan.
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Tradução do ucraniano ao inglês: Ostap Kin
Edição em inglês: Ali Kinsella
Tradução do inglês ao português: Bruno Cava
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