março 17, 2014

"Venezuela como dilema", por Pablo Stefanoni

PICICA: "[...] dado que frequentemente as críticas dos “excessos populistas” terminam sendo chamadas a abandonar a perspectiva das mudanças sociais profundas, a pergunta da hora para as esquerdas não “populistas” parece ser: como combinar radicalidade com pluralismo social. Ou dito com outras palavras, como construir as bases do que Richard Sandbrook chama de “transições socialdemocratas radicais”." 

Venezuela como dilema

13/03/2014
Por Pablo Stefanoni


Por Pablo Stefanoni, em lavanguardia, dica de Santiago Arcos | Trad. UniNômade Brasil

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Estaria vivendo a Venezuela uma intenção de golpe similar ao que, em 2002, alienou temporariamente Hugo Chávez do poder? Isso é o que diz o governo de Nicolás Maduro e repetem alguns dos meios bolivarianos. Mas a situação não é a mesma, em diferentes níveis, apresentando várias dobras sobrepostas que indicam um esgotamento — o que não significa, necessariamente, um fim imediato do ciclo — do modelo chavista de gestão — política e econômica — do estado.

Chávez chegou ao poder em 1999, depois de protagonizar um golpe de estado frustrado em 1992, quando lançou a frase profética: “Por ora não pudemos…”. Nesses anos, ainda ecoava a violentíssima repressão do Caracazo de 1989, que cobrou centenas de mortes (não existem números precisos e confiáveis) e manchou de sangue a mesma democracia venezuelana elogiada, que sobreviveu ao contexto sul-americano golpista dos anos setenta e que acolheu numerosos exilados do Cone Sul. Chávez finalmente tinha ganhado as eleições com um projeto nacionalista moderado que, apesar disso, tinha entre seus assessores o nacionalista de direita argentino Norberto Ceresole. Mas a desconfiança com que Chávez era visto por parte da esquerda latinoamericana, centrada no Fórum Social Mundial, foi diluindo-se e o bolivarianismo foi adquirindo a identidade de esquerda anti-imperialista, estreitamente ligada à Cuba e sintetizada mediante a fórmula do “socialismo do século 21″.

São muitos os balanços que podem ser feitos do chavismo, depois de catorze anos. No âmbito do ter, ocorreu a inclusão de amplas massas de excluídos — tanto econômico, como simbolicamente — e números positivos, em termos de redução da pobreza e da desigualdades, somados a uma liderança de Chávez que potenciou a integração regional segundo uma chave anti-imperialista. A construção de uma identidade popular também pode explicar os êxitos eleitorais chavistas, mais além das dificuldades econômicas.

No dever, o chavismo não pôde superar — mesmo parcialmente — o caráter rentista da economia — e da sociedade venezuelana — que o intelectual Fernando Coronil denominou o “estado mágico”. Sem dúvida, a revolução anticapitalista que Chávez imaginou jamais ocorreu — e não ocorrerá —, Venezuela segue um país hiperconsumista e as iniciativas continuadas sobre o cooperativismo, as comunas etc estão longe de ter um efeito sobre o modelo de acumulação rentista — um “socialismo petroleiro” capaz de redistribuir renda, mas incapaz de assegurar a produção de bens básicos, que precisam ser importados da Colômbia, Brasil, Argentina… ou Estados Unidos, diante de um consumo ostensivo de uísque escocês e grandes veículos utilitários.

Como o peronismo dos anos 40 e 50 na Argentina, o chavismo conseguiu, — com seu discurso que opõe a nação à antinação, — dar coesão a suas bases, mas deixou de fora 40% (conjunturalmente, um pouco mais) da população, gerando uma polarização que, embora seja eficaz para manter o poder, dificulta sobremaneira a construção de uma nova ordem estável. Como já ocorreu outras vezes e noutros cantos, o nacionalismo popular venezuelano democratizou, ao “nacionalizar as massas”, e des-democratizou, ao subestimar inclusive a institucionalidade construída debaixo de seu regime. É a eterna ambivalência populista que retorna, exigindo complexas análises e posicionamentos.

Mas se existem “duas esquerdas”, como têm sido repetido, também há duas direitas e a venezuelana estaria entre as “direitas carnívoras” (retomando uma expressão de Vargas Llosa sobre as esquerdas populistas, opostas aos socialdemocratas vegetarianos). Uma direita que com frequência não reconhece os resultados eleitorais favoráveis ao chavismo, já tendo tentado derrotá-lo por outras vias.

Desta forma, se gerou a situação de guerra civil de baixa intensidade, que de tempos em tempos volta a emergir. A última reaparição combina vários elementos.

Por um lado, uma situação econômica cada vez mais crítica, com uma inflação de 56% anuais, desvalorizações selvagens e desabastecimento e cortes de luz, com uma liderança, a de Maduro, muito mais débil que a de Chávez, que ganhou apertado as eleições. Por outro lado, uma forte oposição interna trabalha para definir uma estratégia para derrotar o chavismo. Se Henrique Capriles — e grande parte dos grupos empresariais e, aparentemente, os democratas estadunidenses — aposta em demover o bolivarianismo pela via eleitoral, apresentando-se como um candidato moderado, Leopoldo López considera que “a rua é a saída”. Logo depois da derrota eleitoral nas eleições municipais de dezembro passado, esses falcões antichavistas se convenceram que não podem ganhar o aparelho eleitorial-estatal-popular “vermelho-vermelhinho”, e que é necessário transformar a crise em rebelião social. Para isso, conta com os estudantes como uma das bases de apoio.

Ainda que essa estratégia seja minoritária, a repressão às mobilizações, com mortos e feridos — e grupos armados de ambos os lados — inundou as ruas de milhares de pessoas e colocou Maduro numa situação extremamente complexa e em tempo de evidenciar as arestas militaristas e autoritárias da construção chavista.

É evidente que nem todos que saem estes dias às ruas são “fascistas”. Isto não quer dizer que, “objetivamente”, possam contribuir à ofensiva da direita. Tampouco significa que não existam as conexões “obscuras” entre a direita dura venezuelana, o uribismo e os falcões norte-americanos. Mas é evidente que, diferentemente da Bolívia ou Equador, onde os governos nacional-populares construíram uma hegemonia relativamente estendida que legitimou as suas gestões, em Venezuela se manteve sempre uns 40% — ou mais — da população militante e irredutivelmente antichavista. A qualidade da condução econômica não é alheia às diferenças assinaladas. Tampouco a forma de gerir o poder. Basta ver por um instante a TV Venezuelana (a cadeia estatal) para sentir a ansiedade que a sobreatuação ideológica pode causar. O “populismo” não só colhe a oposição de quem se sente afetado materialmente por suas políticas, como também por setores, especialmente médios, sensíveis a essas sobreatuações e suas derivas antipluralistas.

Se as revoluções do século 20 mandavam ao paredão ou ao exílio os contrarrevolucionários, reais ou imaginários, os socialismos do século 21 devem governar no marco da democracia parlamentar, e os esforços homogeneizadores se chocam contra uma diversidade societal resistente a essas torções unificadores do corpo social. O problema para os partidos que se consideram expressão indiscutível da “substância” do povo é que não “podem” perder eleições nem sequer pensar em abandonar transitoriamente o poder. Nesse marco, qualquer restrição institucional parecerá menor, frente às necessidades do povo ou da revolução.

Mas, dado que frequentemente as críticas dos “excessos populistas” terminam sendo chamadas a abandonar a perspectiva das mudanças sociais profundas, a pergunta da hora para as esquerdas não “populistas” parece ser: como combinar radicalidade com pluralismo social. Ou dito com outras palavras, como construir as bases do que Richard Sandbrook chama de “transições socialdemocratas radicais”.

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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