PICICA: "Bettelheim era um modernista, um pensador de Estado, obviamente pouco
afeito a raciocínios mais moleculares e libertários, mas ele teve a
inegável potência de ir além às limitações do próprio plano teórico e,
uma vez confrontado com a realidade concreta na experiência, assumiu o
óbvio -- o que nem sempre é fácil para os intelectuais. É daí que ele
tirou uma conclusão absolutamente notável para um economista,
precisamente o de identificar no economicismo o mal da União
Soviética, um país cujos líderes colocaram a técnica acima da luta
política, e, por decreto, aboliram a luta de classes naquele país. E é
aí que o texto de Bettelheim se torna inquietante."
Bettelheim e a Luta de Classes no Paraíso
Realismo Socialista: Stalin retratado como grande timoneiro |
O francês Charles Bettelheim
(1913-2006) viveu como poucos o breve século 20º. Militante comunista,
historiador e economista, ele foi testemunha e personagem em grande
parte do que se passou na antiga Cortina de Ferro e nos países
não-alinhados; do processo de planificação soviético -- o qual conhecia
profundamente, sendo mais tarde um dos maiores críticos internacionais
--, à revolução chinesa -- da sua glória ao seu rápido descaminho --,
passando ainda pela Cuba revolucionária -- onde foi protagonista
histórico da célebre discussão sobre os rumos do país: chamado à opinar
sobre a situação, Bettelheim saiu derrotado ao propor uma economia
agrícola de policultura, voltada antes à garantia da segurança alimentar
para, só a partir daí, financiar a industrialização do país; Fidel
Castro, por coincidência, propôs o modelo vencedor, o socialismo de
monocultura agrícola, e Che Guevara saiu derrotado ao propor a
industrialização à fórceps.
A grande obra de Bettelheim foram os tomos da A Luta de Classes na União Soviética,
cuja produção se iniciou sob o impacto da invasão de Praga em 68 pelas
tropas soviéticas, pondo fim ao sonho de reforma do socialismo real -- o
que, possivelmente, chocou o mestre francês. Só o primeiro tomo de A Luta de Classes...,
sobre os cinco primeiros anos da Revolução Russa, é um calhamaço muito
bem detalhado de quase quinhentas páginas. É, talvez, o melhor relato da
composição de classe russa no período revolucionário. Mas a biografia
de Bettelheim é normalmente contada aquém do merecido, de um jeito
cristão, quase em paralelo com a história de Santo Agostinho: pois bem,
ele foi comunista, viu a verdade, e virou social-democrata no fim da
vida. Uma simplificação grosseira, sem dúvida.
Tudo bem,
Bettelheim era um modernista, um pensador de Estado, obviamente pouco
afeito a raciocínios mais moleculares e libertários, mas ele teve a
inegável potência de ir além às limitações do próprio plano teórico e,
uma vez confrontado com a realidade concreta na experiência, assumiu o
óbvio -- o que nem sempre é fácil para os intelectuais. É daí que ele
tirou uma conclusão absolutamente notável para um economista,
precisamente o de identificar no economicismo o mal da União
Soviética, um país cujos líderes colocaram a técnica acima da luta
política, e, por decreto, aboliram a luta de classes naquele país. E é
aí que o texto de Bettelheim se torna inquietante.
Se o projeto
marxista, a exemplo do cristianismo, propôs a abolição da Lei, o mundo
obrigacional, a partir da conquista do paraíso, o mundo da graça, mas a
pergunta que restou tanto para comunistas, diante da Revolução, quanto
para cristãos, diante da Conversão, foi: e depois? Como será? Bettelheim
problematizou justamente a persistência dos problemas, mas não para
readmitir uma transcendência como um novo teórico da Lei -- como
Vychinsky ou Tomás de Aquino foram --, mas para aprofundar na
imanência.
Vejamos, segundo Bettelheim, o erro comum a Stalin e Trotsky era pregar o mesmo
que os líderes ocidentais sobre a luta de classes, ou seja, que ela não
existia -- ainda que o fizessem de um modo diferente, isto é, pela
negação de sua existência nas condições específicas da União Soviética,
jamais pela afirmação de sua inexistência em si. Os efeitos, no entanto,
eram parecidos, isto é, por meio do mascaramento da dinâmica ela mesma
dos conflitos sociais, a parte mais forte da disputa passava a ter mais
força para se impôr.
A negação da
existência da luta de classes no Paraíso, na pátria do socialismo, pelo
stalinismo poderia parecer a tentativa de esconder o fracasso da
revolução, mas uma rápida leitura dos escrito de Marx e Engels nos faz
ver que não haveria motivo: nenhum dos dois propôs a equação "revolução =
fim da luta de classes". O que fica claro ao longo da história
soviética, e que Bettelheim bem demonstra, é que mascarar a luta de
classes na União Soviética fazia parte de um projeto de naturalização
das novas formas de opressão em elaboração, naturalmente ditadas pela
ascensão da classe burocrática.
Se a
retórica da inexistência apriorística da luta de classes no ocidente,
não por acaso, servia para negar a opressão dos proprietários, ou
possuidores, sobre os trabalhadores e as pessoas todas, na União
Soviética isso serviu para escamotear a primazia dos gerentes, os homens
do partido, sobre os trabalhadores soviéticos. Stalin, e mesmo Trotsky,
inauguraram muito antes de Fukuyama a doutrina do Fim da História --
ainda que no seu cercado. Com o adendo de que Stalin fez isso não como
uma personalidade maligna, e transcendente, mas como correia de
transmissão de um corpo burocrático silencioso, sem rosto ou aparentes
pretensões maiores.
O discurso
stalinista, centrado no desenvolvimento das forças produtivas como meta
incontornável, que deveria ser conquistado a qualquer custo, escondia,
pois, um projeto de poder -- os novos mandarins teriam seu estado de
necessidade para legitimarem suas ordens -- e, mesmo que tomado de forma
ética, jamais conduziriam à liberdade na medida que aí chega não pela
edificação de objetos técnicos, mas das subjetividades que iriam
agenciar tais objetos -- daí o interesse de Bettelheim em Mao, muito
embora isso vá, felizmente, se desfazer quando a revolução cultural se
torna à mera disputa entre aparelhos burocráticos.
O legado
da obra de Bettelheim certamente é mais do que sua decisão, prática e
tática, de apoiar a social-democracia contra os desvarios da economia
neoliberalizada e os riscos do socialismo real, mas reside, a bem da
verdade, nas incertezas e insinuações de fundo que ela deixou no ar. O
capitalismo de Estado, como ele classificava o sistema econômico
soviético, talvez não seria, já ali, um desenho da forma mais bem
acabada de capitalismo: não serão os CEO's os novos burocratas do
partido? Ambos não seriam, cada qual ao seu modo, os gerentes de meios
de produção cuja propriedade é pulverizada -- e social --, o que implica
na competência para, por meio de suas decisões "técnicas", determina a
vida de incontáveis trabalhadores?
Elefantíase
da economia, hegemonia burocrática, desenvolvimentismo, centralismo, fim
da história, a dinâmica da composição de classes e o mascaramento dos
conflitos sociais estão na ordem do dia. A pesquisa sobre a catástrofe
soviética, bem como do socialismo de um modo geral, merece empenho
porque, ao contrário do que pensamos habitualmente, isso é parte do
nosso cotidiano. Ver isso nos nos impele a um destino inevitavelmente
conservador, ao contrário, ele cria os anticorpos para isso ao mapear os
riscos de degeneração nos processos interiores de libertação. E que
façamos isso indo além de recuos táticos, para muito além da própria
reterritorialização que Bettelheim fez, ainda que por prudência, no qual
o "capitalismo de face humana" parecia o caminho menos desalentador.
Fonte: O Descurvo
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