março 18, 2014

"Bettelheim e a Luta de Classes no Paraíso", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Bettelheim era um modernista, um pensador de Estado, obviamente pouco afeito a raciocínios mais moleculares e libertários, mas ele teve a inegável potência de ir além às limitações do próprio plano teórico e, uma vez confrontado com a realidade concreta na experiência, assumiu o óbvio -- o que nem sempre é fácil para os intelectuais. É daí que ele tirou uma conclusão absolutamente notável para um economista, precisamente o de identificar no economicismo o mal da União Soviética, um país cujos líderes colocaram a técnica acima da luta política, e, por decreto, aboliram a luta de classes naquele país. E é aí que o texto de Bettelheim se torna inquietante."

Bettelheim e a Luta de Classes no Paraíso


Realismo Socialista: Stalin retratado como grande timoneiro
O francês Charles Bettelheim (1913-2006) viveu como poucos o breve século 20º. Militante comunista, historiador e economista,  ele foi testemunha e personagem em grande parte do que se passou na antiga Cortina de Ferro e nos países não-alinhados; do processo de planificação soviético -- o qual conhecia profundamente, sendo mais tarde um dos maiores críticos internacionais --, à revolução chinesa -- da sua glória ao seu rápido descaminho --, passando ainda pela Cuba revolucionária -- onde foi protagonista histórico da célebre discussão sobre os rumos do país: chamado à opinar sobre a situação, Bettelheim saiu derrotado ao propor uma economia agrícola de policultura, voltada antes à garantia da segurança alimentar para, só a partir daí, financiar a industrialização do país; Fidel Castro, por coincidência, propôs o modelo vencedor, o socialismo de monocultura agrícola, e Che Guevara saiu derrotado ao propor a industrialização à fórceps.

A grande obra de Bettelheim foram os tomos da A Luta de Classes na União Soviética, cuja produção se iniciou sob o impacto da invasão de Praga em 68 pelas tropas soviéticas, pondo fim ao sonho de reforma do socialismo real -- o que, possivelmente, chocou o mestre francês. Só o primeiro tomo de A Luta de Classes..., sobre os cinco primeiros anos da Revolução Russa, é um calhamaço muito bem detalhado de quase quinhentas páginas. É, talvez, o melhor relato da composição de classe russa no período revolucionário. Mas a biografia de Bettelheim é normalmente contada aquém do merecido, de um jeito cristão, quase em paralelo com a história de Santo Agostinho: pois bem, ele foi comunista, viu a verdade, e virou social-democrata no fim da vida. Uma simplificação grosseira, sem dúvida.

Tudo bem, Bettelheim era um modernista, um pensador de Estado, obviamente pouco afeito a raciocínios mais moleculares e libertários, mas ele teve a inegável potência de ir além às limitações do próprio plano teórico e, uma vez confrontado com a realidade concreta na experiência, assumiu o óbvio -- o que nem sempre é fácil para os intelectuais. É daí que ele tirou uma conclusão absolutamente notável para um economista, precisamente o de identificar no economicismo o mal da União Soviética, um país cujos líderes colocaram a técnica acima da luta política, e, por decreto, aboliram a luta de classes naquele país. E é aí que o texto de Bettelheim se torna inquietante. 

Se o projeto marxista, a exemplo do cristianismo, propôs a abolição da Lei, o mundo obrigacional, a partir da conquista do paraíso, o mundo da graça, mas a pergunta que restou tanto para comunistas, diante da Revolução, quanto para cristãos, diante da Conversão, foi: e depois? Como será? Bettelheim problematizou justamente a persistência dos problemas, mas não para readmitir uma transcendência como um novo teórico da Lei -- como Vychinsky ou Tomás de Aquino foram --, mas para aprofundar na imanência. 

Vejamos, segundo Bettelheim, o erro comum a Stalin e Trotsky era pregar o mesmo que os líderes ocidentais sobre a luta de classes, ou seja, que ela não existia -- ainda que o fizessem de um modo diferente, isto é, pela negação de sua existência nas condições específicas da União Soviética, jamais pela afirmação de sua inexistência em si. Os efeitos, no entanto, eram parecidos, isto é, por meio do mascaramento da dinâmica ela mesma dos conflitos sociais, a parte mais forte da disputa passava a ter mais força para se impôr.

A negação da existência da luta de classes no Paraíso, na pátria do socialismo, pelo stalinismo poderia parecer a tentativa de esconder o fracasso da revolução, mas uma rápida leitura dos escrito de Marx e Engels nos faz ver que não haveria motivo: nenhum dos dois propôs a equação "revolução = fim da luta de classes". O que fica claro ao longo da história soviética, e que Bettelheim bem demonstra, é que mascarar a luta de classes na União Soviética fazia parte de um projeto de naturalização das novas formas de opressão em elaboração, naturalmente ditadas pela ascensão da classe burocrática. 

Se a retórica da inexistência apriorística da luta de classes no ocidente, não por acaso, servia para negar a opressão dos proprietários, ou possuidores, sobre os trabalhadores e as pessoas todas, na União Soviética isso serviu para escamotear a primazia dos gerentes, os homens do partido, sobre os trabalhadores soviéticos. Stalin, e mesmo Trotsky, inauguraram muito antes de Fukuyama a doutrina do Fim da História -- ainda que no seu cercado. Com o adendo de que Stalin fez isso não como uma personalidade maligna, e transcendente, mas como correia de transmissão de um corpo burocrático silencioso, sem rosto ou aparentes pretensões maiores.

O discurso stalinista, centrado no desenvolvimento das forças produtivas como meta incontornável, que deveria ser conquistado a qualquer custo, escondia, pois, um projeto de poder -- os novos mandarins teriam seu estado de necessidade para legitimarem suas ordens -- e, mesmo que tomado de forma ética, jamais conduziriam à liberdade na medida que aí chega não pela edificação de objetos técnicos, mas das subjetividades que iriam agenciar tais objetos -- daí o interesse de Bettelheim em Mao, muito embora isso vá, felizmente, se desfazer quando a revolução cultural se torna à mera disputa entre aparelhos burocráticos.

O legado da obra de Bettelheim certamente é mais do que sua decisão, prática e tática, de apoiar a social-democracia contra os desvarios da economia neoliberalizada e os riscos do socialismo real, mas reside, a bem da verdade, nas incertezas e insinuações de fundo que ela deixou no ar. O capitalismo de Estado, como ele classificava o sistema econômico soviético, talvez não seria, já ali, um desenho da forma mais bem acabada de capitalismo: não serão os CEO's os novos burocratas do partido? Ambos não seriam, cada qual ao seu modo, os gerentes de meios de produção cuja propriedade é pulverizada -- e social --, o que implica na competência para, por meio de suas decisões "técnicas", determina a vida de incontáveis trabalhadores?

Elefantíase da economia, hegemonia burocrática, desenvolvimentismo, centralismo, fim da história, a dinâmica da composição de classes e o mascaramento dos conflitos sociais estão na ordem do dia. A pesquisa sobre a catástrofe soviética, bem como do socialismo de um modo geral, merece empenho porque, ao contrário do que pensamos habitualmente, isso é parte do nosso cotidiano. Ver isso nos nos impele a um destino inevitavelmente conservador, ao contrário, ele cria os anticorpos para isso ao mapear os riscos de degeneração nos processos interiores de libertação. E que façamos isso indo além de recuos táticos, para muito além da própria reterritorialização que Bettelheim fez, ainda que por prudência, no qual o "capitalismo de face humana" parecia o caminho menos desalentador.

Fonte: O Descurvo

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