PICICA: "A aparente
ausência de um nome específico não equivale ao anonimato. A condenação a
pertencer a um "nome genérico", um nome de apropriação, é da ordem do
Poder, ou melhor, é a pedra de toque do Poder: e tudo vira número em uma
estatística ou uma figura, um modelo. Tudo perde a carne. O Poder foge à
regra -- porque ele faz as regras -- sempre que ameaçado, eis que ele
busca a carne -- a qual negligencia, mas sabe muito bem que existe -- e
se suas vítimas nunca têm nome próprio, os seus inimigos possuem -- ou devem possuir -- nome, rosto, RG, CPF, tipo sanguíneo."
Claudia tinha um Nome...e não Merecia (ser arrastada por um camburão até) Morrer
Imagem daqui |
Arrastar.
É uma ideia comum no nosso falar. Nós nos indignamos só de pensar em
"arrastões". Mas o que dizer de nós, a sociedade brasileira, esta
maravilha coletiva -- que ou apóia ou não se indigna o suficiente com a
violência de Estado -- diante de uma vítima de uma brutalidade sui generis que envolve o "arrastar", só que em uma situação inversa: Cláudia Silva Ferreira -- negra, mulher, mãe, tia, amiga, pobre, vizinha, um ser humano -- foi arrastada no asfalto por uma viatura policial em movimento, que a "socorria", depois de ter sido baleada em (mais) uma ação desastrosa da mesma polícia.
Há várias
nuances. Como as novas maneiras de usar as tecnologias tira absurdos
como esse da invisibilidade seria uma delas, o caso foi documentado em
um vídeo feito pelo celular de um motorista, mas o buraco é mais
embaixo. Importa aí a maneira como a sociedade brasileira parece tentar
eximir os policiais, a novilíngua da mídia "livre" que trata Cláudia
como a "mulher arrastada"
ou, até mesmo, a denúncia voluntarista de parte da esquerda -- que num
impulso trabalhista -- lembra que Cláudia era "trabalhadora" e não
merecia isso -- mesmo inconscientemente, dizer isso é como dizer que
quem trabalha poderia morrer, ou seria mais matável, menos digna de
proteção.
A meu ver, a questão central, o nó górdio dessa conversa, é precisamente o nome.
E eu tenho me debruçado sobre a questão há algum tempo. A
invisibilidade, o grunhido do pelotão de linchamento, a retórica da
mídia, o trabalhismo, tudo isso precisa, no calor dos fatos, iniciar seu
discurso com uma âncora, o nome. E Cláudia, um ser humano multifacetado
e bem real, perde assim o esplendor da sua diferença em relação ao
mundo para, de repente, ser reduzida a um nome genérico, homogenizador: a
vítima dos policiais bonzinhos -- a baixa "colateral" --, a
"arrastada", a trabalhadora são reduções que visam sujeitar a
complexidade de uma humana às regras de um discurso de poder.
A aparente
ausência de um nome específico não equivale ao anonimato. A condenação a
pertencer a um "nome genérico", um nome de apropriação, é da ordem do
Poder, ou melhor, é a pedra de toque do Poder: e tudo vira número em uma
estatística ou uma figura, um modelo. Tudo perde a carne. O Poder foge à
regra -- porque ele faz as regras -- sempre que ameaçado, eis que ele
busca a carne -- a qual negligencia, mas sabe muito bem que existe -- e
se suas vítimas nunca têm nome próprio, os seus inimigos possuem -- ou devem possuir -- nome, rosto, RG, CPF, tipo sanguíneo.
Não causa
espanto, a bem da verdade, que grande parte do discurso antagônico ao
sistema, em certa medida, aqui, ali ou bem longe daqui, capitule à mesma
lógica dos seus algozes. Possuem a mesma lógica interna o discurso da
mulher trabalhadora -- que não merecia morrer por isso e só por isso -- e o do protesto que "não teve trabalhador"
e que, por tabela, merece ser desqualificado: isso alude a uma ideia
utilitarista, para a qual tudo é traduzido numa linguagem de hierarquias
escalonada conforme a [suposta] importância para a produção. O
produtivismo como chave de explicação do porquê as esquerdas mundiais,
em grande medida, preferem caiar a senzala (pós-moderna) a libera-la.
O confronto
em questão, do qual Cláudia foi uma baixa bastante incidental, é parte
da guerra não declarada contra as minorias, os diferentes, da sociedade
global. Repercute aqui, ali em todo canto. Mas se discutir política
exige, antes de tudo, fugir da discussão sobre quem tem culpa no
cartório, é preciso enxergar, para além do mal, que nós que falamos,
falamos muito e fazemos pouco ou quase nada.
Fonte: O Descurvo
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