março 24, 2014

"Levante de junho e a democracia brasileira: André Singer, Jessé Souza, Marcos Nobre e além", por Bruno Cava

PICICA: "Foi a primeira vez que grandes mobilizações aconteceram por fora da máquina representativa de partidos, sindicatos e movimentos sociais tradicionais, com muita contundência. Talvez, neste ciclo, não se possa falar em movimento, mas em movimentos, no plural. A multiplicidade do levante se desdobrou não só numa constelação de novos grupos autônomos, coletivos e midiativismos, mas também numa mudança qualitativa da composição das lutas: outras formas de fazer política, mobilizar-se e agir (ver, por exemplo, o mapeamento militante por Bernardo Gutiérrez). O levante de junho foi a condição para uma requalificação do cenário ativista, repercutindo nos recentes atos pela mobilidade urbana, #NãovaiterCopa, greve dos garis, rolezinhos de shopping e novos sujeitos auto-organizados desde as favelas, periferias e grupos marginalizados, como os sem teto.

A tese do esvaziamento das manifestações é simplesmente falsa. Não passa de wishful thinking de quem torce para que tudo volte a ser como era antes de junho. As manifestações não pararam. As ruas e redes não se esvaziaram. Tanto transmitiram o impulso para várias lutas sociais, fortalecendo-as; quanto geraram uma mudança no nível da percepção, que mobiliza a gente a lutar por direitos. Com a diversificação de frentes, a palavra “manifestação”, possivelmente, não capte bem a extensão e profundidade que o ciclo iniciado em 2013 exprima." 

Levante de junho e a democracia brasileira: André Singer, Jessé Souza, Marcos Nobre e além
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Assembleia horizontal de BH, no Viaduto Santa Tereza. Foto: Ricardo Malagoli



Passados nove meses do levante de junho de 2013, o movimento já viveu o suficiente para que seja possível avaliar seus efeitos e capacidades. Como pode refundar a democracia? Como transforma as condições de contorno da luta pela democracia?

Foi a primeira vez que grandes mobilizações aconteceram por fora da máquina representativa de partidos, sindicatos e movimentos sociais tradicionais, com muita contundência. Talvez, neste ciclo, não se possa falar em movimento, mas em movimentos, no plural. A multiplicidade do levante se desdobrou não só numa constelação de novos grupos autônomos, coletivos e midiativismos, mas também numa mudança qualitativa da composição das lutas: outras formas de fazer política, mobilizar-se e agir (ver, por exemplo, o mapeamento militante por Bernardo Gutiérrez). O levante de junho foi a condição para uma requalificação do cenário ativista, repercutindo nos recentes atos pela mobilidade urbana, #NãovaiterCopa, greve dos garis, rolezinhos de shopping e novos sujeitos auto-organizados desde as favelas, periferias e grupos marginalizados, como os sem teto.

A tese do esvaziamento das manifestações é simplesmente falsa. Não passa de wishful thinking de quem torce para que tudo volte a ser como era antes de junho. As manifestações não pararam. As ruas e redes não se esvaziaram. Tanto transmitiram o impulso para várias lutas sociais, fortalecendo-as; quanto geraram uma mudança no nível da percepção, que mobiliza a gente a lutar por direitos. Com a diversificação de frentes, a palavra “manifestação”, possivelmente, não capte bem a extensão e profundidade que o ciclo iniciado em 2013 exprima.

Outra tese falsa é a da captura pela direita. Geralmente elaborada por quem vê um “conservadorismo de fundo” na sociedade brasileira, e por isso teme as ruas e redes, onde esse fascismo geral dominaria a cena. É uma esquerda que só consegue elogiar o “povo” em livros ou revoluções distantes, protegido pela distância do exótico, mas que imediatamente se põe na defensiva quando acontece em seu país e em seu tempo (sobretudo, em seu governo). Essa esquerda que se apaixonou pelo (pequeno) poder só consegue enxergar pensamento estratégico e direção política nos lugares tradicionais, ou seja, nela própria. Aí, a pergunta “mas quem são essas pessoas?”, tantas vezes enunciada em meio aos protestos, ganha uma conotação paranoica e reativa, em vez de prospectiva. Para a esquerda que se sente ameaçada em sua zona de conforto existencial, o levante ativa antes uma máquina neurótica de identificação, do que uma abertura à alteridade, a capacidade de compor com o diferente e transformarem-se todos no processo — precisamente o que deveria significar ser de esquerda ou, melhor dizendo, devir-esquerda. Mas não. Ser de esquerda, para várias pessoas de esquerda confrontadas com o levante, os fez refugiar-se em bandeiras, tradições e redes minúsculas de conhecidos, contra o perigo fascista que trariam ruas e redes repletas de gente “desconhecida”.

O fiasco da marcha da família de 22 de março mostrou, primeiro, quão erradas e mesmo cínicas eram as avaliações geralmente governistas de que a direita protagonizava ou manipulava o levante de junho, chegando a aproximar figuras tão antagônicas como os black blocs e a Globo e, segundo, mostra que o conservadorismo da família brasileira não está precisando tanto ir às ruas e redes, na medida em que todas as pautas libertárias — legalização do aborto, direitos LGBT, políticas anti-homofobia, legalização das drogas — se encontram irremediavelmente bloqueadas pelo próprio governo Dilma, sempre em nome de uma governabilidade redentora. Os reaças não precisam ir às praças, quando a polícia, forças do governo e gangues de justiceiros já fazem o trabalho por eles, enquanto eles podem sentar confortavelmente em casa e gozar com o Jornal Nacional.

Mas o que aconteceu para que tenha gente se aferrando tão firmemente na ordem instituída, nessa luta superior por hegemonia que sempre nos exige calma, moderação e paciência? Na crença que o governo “vai chegar lá”, no método lento e seguro de um reformismo muito fraco, um reformismo medroso da direita, tolerante com a direita, e finalmente curvado à direita. Essa direita toda-poderosa e fantasmática que teria o poder nas mãos, o poder de mobilizar o “conservadorismo de fundo” e, com as massas fascistas insufladas pela Globo, derrubar a esquerda e fazer retroceder todas as (tímidas) conquistas da última década.

O debate de fundo é o destino da redemocratização brasileira.

O levante de junho contesta o projeto da transição lenta e segura, no quadro de uma cultura antidemocrática, repleta de laços autoritários, que as elites brasileiras encontraram para manter os privilégios e conservar a desigualdade, no final da ditadura nos anos 1980. Tudo para bloquear os anseios de libertação expressos pela auto-organização de movimentos e lutas sociais fortíssimas, que proliferavam pelo país. Esse bloqueio foi bem sucedido, amortecendo o impacto da mudança social nas décadas seguintes. Desde então, o governo Lula, apesar das muitas limitações e insuficiências, foi capaz de deixar-se afetar por parte das forças de transformação. Elas racharam o sistema político conservador, e propiciaram algumas políticas sociais fundamentais que, principalmente graças à massificação, cevaram novos atores na disputa democrática, ainda que dispersos, em processo de adensamento.

Nesse debate, André Singer defende que a nova composição social surgida nos anos lulistas foi o “subproletariado”. É um agregado desorganizado e inorgânico da classe trabalhadora, incapaz de política autônoma e, quase naturalmente, tendente a posições conservadoras: é contra o aborto, as drogas, os gays e, especialmente, pronto a repercutir o argumento reaça que luta social é igual a baderna. O governo Lula teria “conquistado” essa fatia do eleitorado superando a chantagem da desordem usualmente manejada pela direita, dando garantias de que faria um crescimento econômico com ordem. A solução arbitral “por cima”, num pacto conservador com as elites e o capital, é compensada por um conjunto de políticas sociais “por baixo” — uma operação de engenharia política interclassista, o limite máximo da correlação de forças sob o pano de fundo de um Brasil eminentemente conservador. Eis aí o lulismo de Singer.

Para Jessé Souza, diferentemente, o período lulista produziu uma composição social de “batalhadores”. São trabalhadores que já surgem precarizados, superexplorados e angustiadamente envoltos em cobranças, dívidas, exigências de sucesso e medo do fracasso, da vergonha de reincidir na miséria, na “ralé”. Os batalhadores vivem as dores da inglória ascensão social no capitalismo à brasileira, mas, por outro lado, eles são capazes de organização. Jessé descreve novos arranjos de organização produtiva, apresentando as qualidades criativas da nova composição.

Quanto à dimensão política, Jessé diz que os batalhadores reconfiguram a arena pública do debate, hegemonicamente dominada pelas credenciais intelectuais burguesas. Eles trazem “motivações democráticas e morais” à cena política, com potencial de reconfigurá-la, para espanto e escândalo das velhas elites enraizadas nos faróis intelectuais da universidade e da grande imprensa. Falando dos rolezinhos, por exemplo, Jessé explica como a simples aparição dos novos sujeitos assume um caráter propriamente político, contestando as próprias linhas de separação entre o que é e não é considerado político.


Marcos Nobre, por sua vez, enxerga no levante de junho (“revoltas”) o esgotamento do ciclo de redemocratização marcado pelo sistema/cultura político conservador e autoritário. É o “pemedebismo”, que é uma lógica, um modo de funcionamento, e que transcende o PMDB. As revoltas, em vez de expressão conservadora do “subproletariado”, tratam-se antes de um choque de democracia vindo desde as bases sociais, diante do fechamento progressivo da representação brasileira, especialmente de sua face esquerda, cada vez mais tomada pelo pemedebismo. O esgotamento do lulismo como caminho para aprofundar o desenvolvimento social levou à urgência da ação política por fora dos mecanismos de representação, além dos limites estreitos da “correlação de forças” internos ao sistema político. Essa ação direta, esse horizonte de radical auto-organização, é que foi capaz de abrir a fórceps o consenso institucional e provocar um debate até então bloqueado, catalisando um espaço público ampliado, isto é, uma cultura democrática imprevista.

Portanto, enquanto alguns analistas insistem em dizer que a ação direta inviabiliza o debate (geralmente classificando-a como violência, voluntarismo e caos), foi justamente essa ação direta do levante que abriu um terreno onde o debate voltou a acontecer, inclusive com a redução do preço das passagens, bem como a promessa de pacotes para saúde e mobilidade urbana, reforma política e miniconstituinte, por parte dos governantes. Até então, qualquer debate público sobre questões estruturais era ou automaticamente neutralizado em termos anódinos, justificado pelo governo como inviável ante a “correlação de forças”, ou então acolhido cinicamente mediante esboços nunca realizados de abertura. Na lógica “naturalizada” do pemedebismo, a “disposição ao debate” é elogiada em si mesma, enquanto o dissenso e o conflito condenados como antipolíticos. Por isso, o método “rápido e sujo” — dissensual— das manifestações talvez seja a melhor forma de regenerar verdadeiramente o método “lento e seguro” do governo, uma vez que uma guinada política parece impossível por dentro do sistema político, da correlação de forças, das eleições, e muito menos a partir das “disputas internas do PT”.

O que nenhum dos três analistas, Singer, Jessé e Nobre enxergam, é o ponto de vista de classe.

Singer insiste que está fazendo análise de classe, mas ali a classe aparece apenas como agregado amorfo que apoia o governo, trocando concessões pela manutenção da estrutura classista, por não ser capaz de organizar-se (ver, sobre isso, a crítica de Silvio Pedrosa). Além disso, Singer confere um valor exagerado às pesquisas eleitorais, chegando a dizer que o efeito de junho sobre a sustentação política do governo teria sido apenas um “soluço” (!).

Jessé reduz a classe social a um conceito sociológico e descritivo, situando os batalhadores entre a velha classe média elitizada e — termo infeliz — a “ralé”. Assim, a classe aparece apenas como escalonada dentro da ordem sociocultural do “espírito do capitalismo”, organicamente atrelada às predisposições sociais, morais e intelectuais de sua inserção nesse mundo do trabalho (aqui, a referência contra Jessé é Giuseppe Cocco, neste artigo, p. 48-51).

Nobre se distancia conscientemente da palavra “classe”, preferindo falar em modelos de regulação social, numa figura de integração das várias esferas: econômica, social e política. Seriam modelos mais “abrangentes”, como se o ponto de vista de classe fosse limitado — e não a própria multiplicação perspectivista e qualitativa de pontos de vista. Isto não somente parte de uma concepção de classe como economicista, própria de certo marxismo vulgar (mas também liberalismo vulgar), como ainda cria um campo cego em sua própria análise, de resto muito bem fundamentada sobre os limites e paradoxos da redemocratização brasileira.

Enfim, quem são os sujeitos portadores de qualidades constituintes, de um projeto de refundação da democracia, abrindo um rombo no condomínio pemedebista, seus consensos e entraves endêmicos? Quem está fissurando a representação? Esta pergunta faria a passagem dos modelos estruturais aos sujeitos e subjetividades, da composição social à política, noutras palavras, da sociedade à classe.

A desenvolver.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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