PICICA: "A liberdade absoluta de Espinosa não é a
ausência de constrangimentos externos ou internos, mas a potência
interna de agir, a efetividade do corpo político, tanto mais forte
quanto mais o homem for instigado, motivado, mobilizado e relacionado
com os demais e para os demais, com o mundo e para o mundo. Jamais em
busca de alguma harmonia universal dos contrários, de um universal
singular, mas do conflito imanente, na ruptura e reabertura de
encontros, na recombinação de desejos, no clamor pela enésima potência
de agir e existir e amar. A liberdade espinosana nada tem a ver com a
vontade tomada como vontade de escolher isto ou aquilo, de poder fazer e
poder não fazer, e muito menos como vontade disciplinada por limites
impostos coativamente de fora ou aceitos racionalmente de dentro. Não se
trata de uma vontade de determinar-se na existência por um modelo
ideal, seja qual for o processo de seu estabelecimento: comunicativo,
consensual, contratual ou natural. Nada disso serve senão para a
impotência, a tristeza e a submissão, diz Espinosa."
A ética de Espinosa
- por Bruno Cava, do site Quadrado dos Loucos
Espinosa
rejeita e refuta as explicações do mundo com base no finalismo ou no
idealismo, em todas as suas versões medievais, modernas e
contemporâneas. As causas finais não passam de ficções, projeções
antropomórficas sobre a realidade. Sequer as ações humanas explicam-se
por causas finais, mas tão-somente pelas causas eficientes que articulam
as coisas singulares. Não há plano divino, decretos de providência,
sistema moral, ordem supra-real, nenhum modelo de dever-ser que possa
ser aplicado sobre o plano do ser — que é o plano de imanência absoluta.
Mais do que um engodo teórico ou artigo de fé, o mundo das causas
finais — grego, cristão, iluminista ou constitucionalista — é um
instrumento para submeter o homem à obediência e ao controle, tentando
provar-lhe que é menos livre do que pode ser e, assim, querendo que seja
menos homem do que é.
Se Goethe propõe que nos tornemos o que
somos, o finalismo pretende que deixemos de ser. A lei moral é um dever.
Nada daí pode ser conhecido. A obediência é o seu único objetivo. O
dever-ser e suas tábuas não ensinam nada, senão o respeito à autoridade
que os enuncia e os interpreta. Diversa da moral, a ética propugna por
um modus vivendi: a ética espinosana uma vida da potência. Ademais, na
pior das hipóteses, a lei moral interdita o verdadeiro conhecimento,
porque o sabe nocivo à manutenção da ordem autoritária. O plano das
causas eficientes de Espinosa não pode ser o da moral, da culpa, da
punição, das leis; mas sim o plano do apetite e do desejo. Se os
finalismos dizem que é preciso ter menos apetites e reprimir os desejos,
isto é, ser menos homem, numa vida casta de moderações e privações,
para que se possa um dia chegar a Deus (ao Bem, ao Justo, ao Belo); a
filosofia espinosana declara o contrário: quanto mais homem se é, quanto
mais apetites desenvolvermos, quanto mais conseguirmos combinar nosso
desejo com aqueles que nos convêm, então mais divinos seremos. A
ontologia da liberdade livra-nos do Deus moral, criador e transcendente,
e põe fim à história de um longo erro. Para Espinosa, não se é mais
divino sendo menos homem, mas justamente sendo homem ao máximo, na
plenitude, só assim que se é divino.
Se por “direito natural” entendermos o
que o homem pode num estado de não-coação, hipoteticamente antes do
estado, é certo que esse estado de não-coação se constitui do próprio
homem. Aliás sempre foi este homem, aqui e agora. Afinal, ao
efetivar-se, a causa eficiente não desaparece, mas persevera imanente –
essentia actuosa que é o sentido da potentia espinosana. No que difere
da causa transitiva, que se dá e some, assim como o potestas (a
autoridade legal, o poder titularizado). Na também hipotética passagem
do “direito natural” ao direito civil, conclui-se que a essência do
homem permanece atuante. De modo que o único direito social que convenha
ao homem, que aumenta a sua potência de existir, que o faz alegre — é
um “direito natural” comum. Este resguarda integralmente a essência humana, ou seja, tudo o que ele pode, o infinito de Giordano Bruno. A relação entre o “direito natural” e o direito comum – ou direito do comum —
é a mesma relação entre a essência humana e sua plena expansão no bojo
das relações sociais, no processo constituinte, quer dizer, de travessia
do finito ao infinito. Porque a potência de existir somente se desdobra
com os bons encontros, nos quais o homem se orquestra com aqueles
outros ou aquelas coisas que lhe convêm e apetecem, que com ele compõem
novas relações e devires.
Portanto, no direito comum, as relações
sociais não se pautam por um soberano legislador que, de cima pra baixo e
de fora pra dentro, como o Deus pessoal dos cristãos, determina o que é
certo e o que é errado, punindo o pecado e retificando o pecador. Muito
pelo contrário, no direito comum, as relações sociais se autovalorizam
conforme o imperativo categórico da máxima potência, com o
entretecimento de redes expansivas de afetos ativos que, no conjunto, todos juntos,
convenham ao máximo entre si, função cujo limite diferencial (na
acepção do Cálculo) não pode ser outro que não o infinito. A
auto-organização do processo só pode dar-se por uma lógica interna que
é, precisamente, a liberdade de agir segundo a natureza que (se) convém, — quando a essência se funde à potência e escapa de qualquer essencialismo metafísico.
Pergunta-se: e como proteger os fracos
dos fortes? como conservar o equilíbrio da malha social? Responderá
Hobbes: somente um soberano acima e fora, que transcende o sistema.
Responderão também todos os outros que, seguindo-lhe, adotam soluções ex
machina nos mais diversos níveis de transcendência, mais ou menos
disfarçados. Esta não é a resposta de Espinosa. Inaceitável um soberano
ativo diante de súditos passivos, ditando uma ordem moral cujo
desrespeito tem por conseqüência lógica a punição, suprimindo a
conflitividade que é a própria vida dos homens. Ainda que o soberano
seja vestido com o normativismo de uma democracia constitucional de
modelo ocidental (isto é, dos países do Atlântico Norte).
A democracia radical que se conjuga com a
ética espinosana demanda a dissolução completa do soberano no meio
social. O estabelecimento de uma ordem jurídico-moral pelo soberano, ao
fim e ao cabo, induz à proteção dos fracos proprietários e dominantes
contra os fortes escravizados e despossuídos. E não pode haver direito
novo que se restrinja a torcer o bastão para o outro lado, o esquerdo.
Tais tentativas porcamente revolucionárias substituem a classe dos
fracos dominantes por outra classe, num eterno retorno do mesmo tão bem
expresso na cosmogonia política orwelliana, contada por Emmanuel
Goldstein. É preciso romper o bastão.
A democracia radical opera pela defesa
dos fortes contra os fracos, colocando um ponto final no homem das
paixões tristes e nos sacerdores que o manipulam. Se o tirano está
implicado no medo e na tristeza dos homens, os sacerdotes laicos da
ordem constituída exploram-lhe os afetos, preservando seu quinhão de
poder e propriedade. A democracia radical aproxima-se quando a
organização social orienta-se pela ética da potência. Isto hoje pode ser
lido na formação e a valoração de redes imanentes de comunicação,
interação, produção de sentidos, afetos, amores e apetites. Longe de
anarquias românticas, de ainda outro utopismo, trata-se de pensar e
fazer agir um direito do comum que finque o desejo do homem — de
relacionar-se, compartilhar, expandir-se e multiplicar os mundos — como
princípio interno de funcionamento. Contra o encadeamento dos afetos
passivos (a tristeza, o ódio, a indignação, a mesquinharia, a inveja, a
vergonha), o homem de ação – o cidadão virtuoso e corajoso no seu
sentido pleno e máximo, tal qual Cesare Bórgia, Honoré de Mirabeau,
Luísa Mahin ou Che Guevara. Quando a existência política, no sentido
amplo, sobreleva e confere sentido a todas as outras, irrompe um
incessante desejo de mudança digno da virtù renascentista. Os
problemas práticos da democracia radical são: como atingir o máximo de
afetos ativos, como formar o máximo de idéias adequadas ao empoderamento
de todos, como chegar a ser consciente de si mesmo, de tudo o que
podemos, ou seja, de Deus e das coisas. A política consiste na
organização dos afetos visando à produção máxima de desejo e amor —
essência divina do homem — e se concretiza mediante a arte dos bons
encontros.
A liberdade absoluta de Espinosa não é a
ausência de constrangimentos externos ou internos, mas a potência
interna de agir, a efetividade do corpo político, tanto mais forte
quanto mais o homem for instigado, motivado, mobilizado e relacionado
com os demais e para os demais, com o mundo e para o mundo. Jamais em
busca de alguma harmonia universal dos contrários, de um universal
singular, mas do conflito imanente, na ruptura e reabertura de
encontros, na recombinação de desejos, no clamor pela enésima potência
de agir e existir e amar. A liberdade espinosana nada tem a ver com a
vontade tomada como vontade de escolher isto ou aquilo, de poder fazer e
poder não fazer, e muito menos como vontade disciplinada por limites
impostos coativamente de fora ou aceitos racionalmente de dentro. Não se
trata de uma vontade de determinar-se na existência por um modelo
ideal, seja qual for o processo de seu estabelecimento: comunicativo,
consensual, contratual ou natural. Nada disso serve senão para a
impotência, a tristeza e a submissão, diz Espinosa.
O homem, o mais potente dos modos
finitos, é livre quando extravasa a sua potência de existir, quando seu
desejo determina-se pelas idéias adequadas, isto é, conhecimento que
explica o caminho da potência, dos bons encontros, da combinação de
desejos e apetites num mundo compartilhado e sempre em renovação. A
liberdade conecta-se assim à essência e sua única modalidade, a
necessidade, e não à vontade e seus limites, nem à consciência e seus
regramentos. O mais livre, o forte define-se pela coragem e a virtude:
capacidade de doar o pensamento e o corpo a tudo o que eles podem, a sua
essência-potência, à revelia e ultrapassando coações e ameaças
exteriores, culpas e egoísmos interiores. Assim se combina somente com
aquilo que, para ele, o faz enredar-se e vibrar com outros e outras
coisas. A liberdade, mais que condição para a vida política, é condição
do próprio homem — todos juntos! — de sua alegria, seu amor, sua força e, afinal, sua beatitude.
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