março 26, 2014

"A ética de Espinosa", por Bruno Cava

PICICA: "A liberdade absoluta de Espinosa não é a ausência de constrangimentos externos ou internos, mas a potência interna de agir, a efetividade do corpo político, tanto mais forte quanto mais o homem for instigado, motivado, mobilizado e relacionado com os demais e para os demais, com o mundo e para o mundo. Jamais em busca de alguma harmonia universal dos contrários, de um universal singular, mas do conflito imanente, na ruptura e reabertura de encontros, na recombinação de desejos, no clamor pela enésima potência de agir e existir e amar. A liberdade espinosana nada tem a ver com a vontade tomada como vontade de escolher isto ou aquilo, de poder fazer e poder não fazer, e muito menos como vontade disciplinada por limites impostos coativamente de fora ou aceitos racionalmente de dentro. Não se trata de uma vontade de determinar-se na existência por um modelo ideal, seja qual for o processo de seu estabelecimento: comunicativo, consensual, contratual ou natural. Nada disso serve senão para a impotência, a tristeza e a submissão, diz Espinosa."


A ética de Espinosa


- por Bruno Cava, do site Quadrado dos Loucos

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Espinosa rejeita e refuta as explicações do mundo com base no finalismo ou no idealismo, em todas as suas versões medievais, modernas e contemporâneas. As causas finais não passam de ficções, projeções antropomórficas sobre a realidade. Sequer as ações humanas explicam-se por causas finais, mas tão-somente pelas causas eficientes que articulam as coisas singulares. Não há plano divino, decretos de providência, sistema moral, ordem supra-real, nenhum modelo de dever-ser que possa ser aplicado sobre o plano do ser — que é o plano de imanência absoluta. Mais do que um engodo teórico ou artigo de fé, o mundo das causas finais — grego, cristão, iluminista ou constitucionalista — é um instrumento para submeter o homem à obediência e ao controle, tentando provar-lhe que é menos livre do que pode ser e, assim, querendo que seja menos homem do que é.

Se Goethe propõe que nos tornemos o que somos, o finalismo pretende que deixemos de ser. A lei moral é um dever. Nada daí pode ser conhecido. A obediência é o seu único objetivo. O dever-ser e suas tábuas não ensinam nada, senão o respeito à autoridade que os enuncia e os interpreta. Diversa da moral, a ética propugna por um modus vivendi: a ética espinosana uma vida da potência. Ademais, na pior das hipóteses, a lei moral interdita o verdadeiro conhecimento, porque o sabe nocivo à manutenção da ordem autoritária. O plano das causas eficientes de Espinosa não pode ser o da moral, da culpa, da punição, das leis; mas sim o plano do apetite e do desejo. Se os finalismos dizem que é preciso ter menos apetites e reprimir os desejos, isto é, ser menos homem, numa vida casta de moderações e privações, para que se possa um dia chegar a Deus (ao Bem, ao Justo, ao Belo); a filosofia espinosana declara o contrário: quanto mais homem se é, quanto mais apetites desenvolvermos, quanto mais conseguirmos combinar nosso desejo com aqueles que nos convêm, então mais divinos seremos. A ontologia da liberdade livra-nos do Deus moral, criador e transcendente, e põe fim à história de um longo erro. Para Espinosa, não se é mais divino sendo menos homem, mas justamente sendo homem ao máximo, na plenitude, só assim que se é divino.

Se por “direito natural” entendermos o que o homem pode num estado de não-coação, hipoteticamente antes do estado, é certo que esse estado de não-coação se constitui do próprio homem. Aliás sempre foi este homem, aqui e agora. Afinal, ao efetivar-se, a causa eficiente não desaparece, mas persevera imanente – essentia actuosa que é o sentido da potentia espinosana. No que difere da causa transitiva, que se dá e some, assim como o potestas (a autoridade legal, o poder titularizado). Na também hipotética passagem do “direito natural” ao direito civil, conclui-se que a essência do homem permanece atuante. De modo que o único direito social que convenha ao homem, que aumenta a sua potência de existir, que o faz alegre — é um “direito natural” comum. Este resguarda integralmente a essência humana, ou seja, tudo o que ele pode, o infinito de Giordano Bruno. A relação entre o “direito natural” e o direito comum – ou direito do comum — é a mesma relação entre a essência humana e sua plena expansão no bojo das relações sociais, no processo constituinte, quer dizer, de travessia do finito ao infinito. Porque a potência de existir somente se desdobra com os bons encontros, nos quais o homem se orquestra com aqueles outros ou aquelas coisas que lhe convêm e apetecem, que com ele compõem novas relações e devires.

Portanto, no direito comum, as relações sociais não se pautam por um soberano legislador que, de cima pra baixo e de fora pra dentro, como o Deus pessoal dos cristãos, determina o que é certo e o que é errado, punindo o pecado e retificando o pecador. Muito pelo contrário, no direito comum, as relações sociais se autovalorizam conforme o imperativo categórico da máxima potência, com o entretecimento de redes expansivas de afetos ativos que, no conjunto, todos juntos, convenham ao máximo entre si, função cujo limite diferencial (na acepção do Cálculo) não pode ser outro que não o infinito. A auto-organização do processo só pode dar-se por uma lógica interna que é, precisamente, a liberdade de agir segundo a natureza que (se) convém, — quando a essência se funde à potência e escapa de qualquer essencialismo metafísico.

Pergunta-se: e como proteger os fracos dos fortes? como conservar o equilíbrio da malha social? Responderá Hobbes: somente um soberano acima e fora, que transcende o sistema. Responderão também todos os outros que, seguindo-lhe, adotam soluções ex machina nos mais diversos níveis de transcendência, mais ou menos disfarçados. Esta não é a resposta de Espinosa. Inaceitável um soberano ativo diante de súditos passivos, ditando uma ordem moral cujo desrespeito tem por conseqüência lógica a punição, suprimindo a conflitividade que é a própria vida dos homens. Ainda que o soberano seja vestido com o normativismo de uma democracia constitucional de modelo ocidental (isto é, dos países do Atlântico Norte).

A democracia radical que se conjuga com a ética espinosana demanda a dissolução completa do soberano no meio social. O estabelecimento de uma ordem jurídico-moral pelo soberano, ao fim e ao cabo, induz à proteção dos fracos proprietários e dominantes contra os fortes escravizados e despossuídos. E não pode haver direito novo que se restrinja a torcer o bastão para o outro lado, o esquerdo. Tais tentativas porcamente revolucionárias substituem a classe dos fracos dominantes por outra classe, num eterno retorno do mesmo tão bem expresso na cosmogonia política orwelliana, contada por Emmanuel Goldstein. É preciso romper o bastão.

A democracia radical opera pela defesa dos fortes contra os fracos, colocando um ponto final no homem das paixões tristes e nos sacerdores que o manipulam. Se o tirano está implicado no medo e na tristeza dos homens, os sacerdotes laicos da ordem constituída exploram-lhe os afetos, preservando seu quinhão de poder e propriedade. A democracia radical aproxima-se quando a organização social orienta-se pela ética da potência. Isto hoje pode ser lido na formação e a valoração de redes imanentes de comunicação, interação, produção de sentidos, afetos, amores e apetites. Longe de anarquias românticas, de ainda outro utopismo, trata-se de pensar e fazer agir um direito do comum que finque o desejo do homem — de relacionar-se, compartilhar, expandir-se e multiplicar os mundos — como princípio interno de funcionamento. Contra o encadeamento dos afetos passivos (a tristeza, o ódio, a indignação, a mesquinharia, a inveja, a vergonha), o homem de ação – o cidadão virtuoso e corajoso no seu sentido pleno e máximo, tal qual Cesare Bórgia, Honoré de Mirabeau, Luísa Mahin ou Che Guevara. Quando a existência política, no sentido amplo, sobreleva e confere sentido a todas as outras, irrompe um incessante desejo de mudança digno da virtù renascentista. Os problemas práticos da democracia radical são: como atingir o máximo de afetos ativos, como formar o máximo de idéias adequadas ao empoderamento de todos, como chegar a ser consciente de si mesmo, de tudo o que podemos, ou seja, de Deus e das coisas. A política consiste na organização dos afetos visando à produção máxima de desejo e amor — essência divina do homem — e se concretiza mediante a arte dos bons encontros.

A liberdade absoluta de Espinosa não é a ausência de constrangimentos externos ou internos, mas a potência interna de agir, a efetividade do corpo político, tanto mais forte quanto mais o homem for instigado, motivado, mobilizado e relacionado com os demais e para os demais, com o mundo e para o mundo. Jamais em busca de alguma harmonia universal dos contrários, de um universal singular, mas do conflito imanente, na ruptura e reabertura de encontros, na recombinação de desejos, no clamor pela enésima potência de agir e existir e amar. A liberdade espinosana nada tem a ver com a vontade tomada como vontade de escolher isto ou aquilo, de poder fazer e poder não fazer, e muito menos como vontade disciplinada por limites impostos coativamente de fora ou aceitos racionalmente de dentro. Não se trata de uma vontade de determinar-se na existência por um modelo ideal, seja qual for o processo de seu estabelecimento: comunicativo, consensual, contratual ou natural. Nada disso serve senão para a impotência, a tristeza e a submissão, diz Espinosa.

O homem, o mais potente dos modos finitos, é livre quando extravasa a sua potência de existir, quando seu desejo determina-se pelas idéias adequadas, isto é, conhecimento que explica o caminho da potência, dos bons encontros, da combinação de desejos e apetites num mundo compartilhado e sempre em renovação. A liberdade conecta-se assim à essência e sua única modalidade, a necessidade, e não à vontade e seus limites, nem à consciência e seus regramentos. O mais livre, o forte define-se pela coragem e a virtude: capacidade de doar o pensamento e o corpo a tudo o que eles podem, a sua essência-potência, à revelia e ultrapassando coações e ameaças exteriores, culpas e egoísmos interiores. Assim se combina somente com aquilo que, para ele, o faz enredar-se e vibrar com outros e outras coisas. A liberdade, mais que condição para a vida política, é condição do próprio homem —  todos juntos! — de sua alegria, seu amor, sua força e, afinal, sua beatitude.

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Fonte: Razão Inadequada

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