PICICA: "Nesse
momento, reafirma-se uma meritocracia conservadora, uma exaltação ao
trabalho que critica qualquer outra forma de obtenção de sobrevivência
que não seja a venda da força de trabalho. A autoafirmação enquanto
trabalhador se torna sinônimo de dignidade e apelo moral: “eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”,
disse o menino preso ao poste no Flamengo. Os pobres que recebem a
bolsa família do Estado são acusados, assim como os camelôs ou
ambulantes que vendem suas mercadorias nas ruas, os mendigos que recebem
trocados de transeuntes, os abastados que recebem mesadas dos pais, os
indígenas que cobram um pedágio para “estrangeiros” que almejam
transitar em sua reserva, os estudantes profissionais que recebem bolsas
de pesquisa. São todos chamados pejorativamente de “vagabundos”, de
“não-trabalhadores”, a partir de um discurso de criminalização do ócio
quase sempre acompanhado por julgamentos morais: o indígena é um
“alcoólatra” e gasta o que obtém para beber num bar ou comprar roupas de
marca, o pobre é burro e compra uma televisão grande, o “filhinho de
papai mimado” é “rebelde sem causa” e ocupa as ruas pois não tem mais o
que fazer, o ambulante “suja” a cidade, o favelado é um “potencial
marginal”, o hippie é “maconheiro”…"
O “perspectivismo multinaturalista” contra a estética da empregabilidade
12/03/2014
Por Vinícius Ximenes
Por Vinícius Ximenes, graduando em Ciências Sociais na UFRJ.
Apontando a
antropologia na base do modelo de inclusão social, num cenário de
expansivo mercado brasileiro de trabalho e consumo, o autor propõe o
multinaturalismo como método de resistência, e como antídoto a qualquer
relativismo ontológico ou multiculturalismo, que se resuma a enquadrar a
alteridade ao exótico, à curiosidade catalogável. A antropologia
imanentista, como formulada por Viveiros de Castro a partir de Deleuze e
Lévi Strauss, sugere outra maneira de conhecer, agenciar e potenciar as
formas de vida e estéticas da cidade, num arquivo agente de memórias de
luta, e que resistem ao rolo compressor antropológico deste novo
Brasil, o Brasil maior de sucesso e por derradeiro desenvolvido. Eis aí
as manifestações em seu devir, como produção incessante de modos de
cooperar, viver e relacionar-se além do trabalho.
–
Na
nova composição do trabalho metropolitano, a empregabilidade, mecanismo
de organização da sociedade e do mercado de trabalho, é em primeiro
lugar uma disciplina estética. Roupas, cabelo, contato com a rede,
smartphone, disponibilidade. A padronização, conformação e normalização
visual aparecem como aspecto primeiro da empregabilidade. A centralidade
ontológica do trabalho na cosmologia metropolitana, na qual a
autoafirmação se dá por organização de símbolos de “status” advindos do
consumo, eleva a empregabilidade a fundamento ético. A resistência
estética à empregabilidade aparece, então, como fundante de conflitos.
Portanto,
o que gera grande incômodo ao “trabalhador” é o exótico. Esse se
manifesta no “visual” “hippie”, “rastafári”, “punk”, “índio”, “mendigo”,
“playboy”, “pobre/favelado”. O que “não trabalha” vaga e se relaciona
diretamente com a temática do direito à cidade, desvelando as fronteiras
simbólicas e explicitando a coerção estética da empregabilidade.
Um
“piercing”, uma tatuagem mais exposta, uma barba/cabelo fora do padrão
ou uma roupa mais justa representam que aquela pessoa automaticamente
não está concorrendo a/ocupando uma vaga em postos de trabalho
tradicionais. Ela tem o privilégio ou a ausência de requisitos que a
qualifiquem para tal, pois muitas das empresas não contratam pessoas
cuja aparência pode colocar em jogo sua vendável imagem de “seriedade”.
Nesse sentido, há “tipos” ideais, quase sempre masculinos, que
acompanham os salários; o homem de terno e gravata ou a mulher com roupa
masculinizada nos táxis; o homem de camisa e calça social nos carros; o
homem de bermuda e camiseta nos ônibus e trens. A padronização da
empregabilidade, entretanto, é difusa e não abarca toda a sociedade,
especialmente com a flexibilização dos postos de trabalho e uma ampla
redefinição do que é trabalho.
Nesse
momento, reafirma-se uma meritocracia conservadora, uma exaltação ao
trabalho que critica qualquer outra forma de obtenção de sobrevivência
que não seja a venda da força de trabalho. A autoafirmação enquanto
trabalhador se torna sinônimo de dignidade e apelo moral: “eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”,
disse o menino preso ao poste no Flamengo. Os pobres que recebem a
bolsa família do Estado são acusados, assim como os camelôs ou
ambulantes que vendem suas mercadorias nas ruas, os mendigos que recebem
trocados de transeuntes, os abastados que recebem mesadas dos pais, os
indígenas que cobram um pedágio para “estrangeiros” que almejam
transitar em sua reserva, os estudantes profissionais que recebem bolsas
de pesquisa. São todos chamados pejorativamente de “vagabundos”, de
“não-trabalhadores”, a partir de um discurso de criminalização do ócio
quase sempre acompanhado por julgamentos morais: o indígena é um
“alcoólatra” e gasta o que obtém para beber num bar ou comprar roupas de
marca, o pobre é burro e compra uma televisão grande, o “filhinho de
papai mimado” é “rebelde sem causa” e ocupa as ruas pois não tem mais o
que fazer, o ambulante “suja” a cidade, o favelado é um “potencial
marginal”, o hippie é “maconheiro”…
Num
escopo mais amplo, isso se aplica de forma mais enraizada e
cotidianamente violenta contra as mulheres e os não-humanos. A Terra é a
primeira explorada no mundo antropocêntrico, e muitas mulheres, a
partir do não-reconhecimento já institucionalizado do trabalho
doméstico, são também consideradas “não-trabalhadoras” e sofrem nas mãos
de um patriarcalismo machista, que organiza tanto o capitalismo quanto
boa parte das lutas contra ele, ao longo da tradição da esquerda
operária.
Muitas
vezes, os mesmos que usam esse discurso de criminalização são os que
exaltam as sextas-feiras e seus happy hours, que reclamam das
segundas-feiras e da volta à rotina insuportável. Esse consenso em torno
do trabalho que dignifica o homem remete ao nazismo, mas ainda assim
uma parcela da população se volta contra os que negam o padrão, quando
violento é o trabalho, desde sua fundação e separação de outras “esferas
da vida”.
A
estética se relaciona diretamente com a temática das jornadas de
junho-em-diante, ao assumirmos o que Eduardo Viveiros de Castro aponta
sobre a importância do corpo nas cosmologias indígenas:
“O corpo, sendo o lugar da perspectiva diferenciante, deve ser
maximamente diferenciado para exprimi-la completamente. (…) Ele é o
instrumento fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo tempo o
objeto por excelência, aquilo que se dá a ver a outrem (…). [N]ão há
mudança “espiritual” que não passe por uma transformação do corpo, por
uma redefinição de (…) afetos, afecções ou capacidades que singularizam
cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica,
onde vive, se é gregário ou solitário.” (Viveiros de Castro, 1996)
Performática,
a multidão que luta na forma de singularidades cooperantes reafirma as
diferenças. O desafio é garantir a vida dos que estão para além da
empregabilidade, do emprego formal, do sonho do “pleno emprego” e da
estabilidade. Dos moradores de rua, dos indígenas, dos pobres, das
mulheres, dos homossexuais, dos não-humanos, que são os alvos da
violência física no momento de polarização acerca dos direitos humanos.
Machismo, homofobia, racismo, capitalismo, patriarcalismo,
eurocentrismo, antropocentrismo, militarismo, nacionalismo, estão todos
intimamente ligados.
Entre
“direitos humanos para todos” x “direitos humanos para humanos
direitos”, em vez de glorificar o mérito e o esforço, um desafio nítido e
urgente que se apresenta é garantir a reexistência desses que
diariamente desfilam outras formas de vida, que “desautorizam” o estilo
disciplinado do trabalhador, ao lançarem pelo simples fato de serem
olhados com estranheza ou desprezo uma constatação de que existe
sociabilidade fora do Estado e do trabalho. Nada pode ser mais ofensivo
para o trabalhador do que alguém que não passa diariamente pelo suplício
idêntico, ainda que todos esses vivenciem diversos outros suplícios.
A
defesa do exótico como epicentro do êxodo constituinte, então, vai além
de um “relativismo multiculturalista”, chegando a um “perspectivismo
multinaturalista” onde a troca de pontos de vista entre as minorias da
multidão em luta constituem um novo horizonte de vida, no qual assume-se
uma cultura-base comum a todos e as diferenças se manifestam nos corpos
singulares “naturalizados”. O Black Bloc aparece como “entificação do
não-id” em vez de identificação coletiva.
O
relativismo é um bom ponto de partida para entender e “tolerar” reações
mais extremas nas manifestações, por exemplo, ao assumir que para
muitos é um momento oportuno de descontar a enorme violência que sofrem
diariamente e a revolta que são obrigados a reprimir internamente. Mas
apenas entender e “tolerar” podem não ser suficientes; e o
“perspectivismo”, o viver ao menos por alguns momentos uma realidade
diferente, aproximar-se da realidade do camelô ao ser reprimido pela
polícia, ocupar os espaços “públicos”, apreender novos códigos de
comunicação, educação e solidariedades, é mudança “espiritual” através
da mudança do ponto de vista. Ocupar um lugar periférico e sentir as
aflições e afecções decorrentes desse modo de ser, desse cotidiano.
O
perspectivismo ajuda também a entender a nova composição do trabalho
metropolitano, a estabelecer novas alianças na e para a luta. Sob essa
ótica, podemos pensar a reação violenta das elites estabilizadas como
desdobramento de uma revolta contra a inclusão (Cava, 2013) que parte da
multidão “precária”, pois “quando o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja
nada a observar” (Clastres apud Viveiros de Castro, 2011). E o que
observam é a existência de vida fora dos moldes do trabalho, que se
metamorfoseia na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de
controle, e se explicita agora na “greve da metrópole”.
“A própria
inclusão social no Brasil, onde todos são levados a trabalhar muito e
com um peso enorme de cobranças e expectativas (obter sucesso, construir
futuro, ascender, ser feliz), opera segundo esse dispositivo que joga o
controle para dentro da subjetividade” (Cava, 2013)
“Para vencer,
não é preciso apenas estar qualificado para trabalhar, mas estar
preparado emocionalmente, ter um perfil empreender, ser polivalente em
qualidades e virtudes, ser bonito, arrojado, simpático, estar bem dotado
de capital cultural e intelectual. Isso tudo carrega a subjetividade de
uma enorme pressão.” (Cava, 2013)
Mas “haverá sempre algo em nós que permite que nos tornemos Aranda [tribo da Austrália]. O
trabalho crítico da antropologia nos expõe à possibilidade de sermos
outros do que somos, e faz dessa possibilidade uma força em nossas
vidas. A
sociologia crítica nos convida a ver como nosso mundo social é
constituído e como pode ser feito e refeito por nós. A antropologia
crítica assemelha-se antes ao ato xamânico de induzir uma presença
obsedante (haunting): ela nos encoraja a nos sentirmos “frequentados” (haunted) a cada momento de nossas vidas pelo que poderíamos ser mas que não somos.” (Hage apud Viveiros de Castro, 2012)
–
REFERÊNCIAS
CAVA, Bruno. “A multidão foi ao deserto”. Editora Annablume. (2013)
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.” Mana 2.2 (1996): 115-144.
___.“Posfácio: O intempestivo, ainda”. Em: Clastres, Pierre. “Arqueologia da Violência”. Editora Cosac Naify. 2ª Edição. (2011)
___.”Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia.” Mana 18.1 (2012): 151-171.
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