março 13, 2014

"O “perspectivismo multinaturalista” contra a estética da empregabilidade", por Vinícius Ximenes

PICICA: "Nesse momento, reafirma-se uma meritocracia conservadora, uma exaltação ao trabalho que critica qualquer outra forma de obtenção de sobrevivência que não seja a venda da força de trabalho. A autoafirmação enquanto trabalhador se torna sinônimo de dignidade e apelo moral: “eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”, disse o menino preso ao poste no Flamengo. Os pobres que recebem a bolsa família do Estado são acusados, assim como os camelôs ou ambulantes que vendem suas mercadorias nas ruas, os mendigos que recebem trocados de transeuntes, os abastados que recebem mesadas dos pais, os indígenas que cobram um pedágio para “estrangeiros” que almejam transitar em sua reserva, os estudantes profissionais que recebem bolsas de pesquisa. São todos chamados pejorativamente de “vagabundos”, de “não-trabalhadores”, a partir de um discurso de criminalização do ócio quase sempre acompanhado por julgamentos morais: o indígena é um “alcoólatra” e gasta o que obtém para beber num bar ou comprar roupas de marca, o pobre é burro e compra uma televisão grande, o “filhinho de papai mimado” é “rebelde sem causa” e ocupa as ruas pois não tem mais o que fazer, o ambulante “suja” a cidade, o favelado é um “potencial marginal”, o hippie é “maconheiro”…"


O “perspectivismo multinaturalista” contra a estética da empregabilidade

12/03/2014
Por Vinícius Ximenes


Por Vinícius Ximenes, graduando em Ciências Sociais na UFRJ.

Apontando a antropologia na base do modelo de inclusão social, num cenário de expansivo mercado brasileiro de trabalho e consumo, o autor propõe o multinaturalismo como método de resistência, e como antídoto a qualquer relativismo ontológico ou multiculturalismo, que se resuma a enquadrar a alteridade ao exótico, à curiosidade catalogável. A antropologia imanentista, como formulada por Viveiros de Castro a partir de Deleuze e Lévi Strauss, sugere outra maneira de conhecer, agenciar e potenciar as formas de vida e estéticas da cidade, num arquivo agente de memórias de luta, e que resistem ao rolo compressor antropológico deste novo Brasil, o Brasil maior de sucesso e por derradeiro desenvolvido. Eis aí as manifestações em seu devir, como produção incessante de modos de cooperar, viver e relacionar-se além do trabalho.

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Na nova composição do trabalho metropolitano, a empregabilidade, mecanismo de organização da sociedade e do mercado de trabalho, é em primeiro lugar uma disciplina estética. Roupas, cabelo, contato com a rede, smartphone, disponibilidade. A padronização, conformação e normalização visual aparecem como aspecto primeiro da empregabilidade. A centralidade ontológica do trabalho na cosmologia metropolitana, na qual a autoafirmação se dá por organização de símbolos de “status” advindos do consumo, eleva a empregabilidade a fundamento ético. A resistência estética à empregabilidade aparece, então, como fundante de conflitos.

Portanto, o que gera grande incômodo ao “trabalhador” é o exótico. Esse se manifesta no “visual” “hippie”, “rastafári”, “punk”, “índio”, “mendigo”, “playboy”, “pobre/favelado”. O que “não trabalha” vaga e se relaciona diretamente com a temática do direito à cidade, desvelando as fronteiras simbólicas e explicitando a coerção estética da empregabilidade.

Um “piercing”, uma tatuagem mais exposta, uma barba/cabelo fora do padrão ou uma roupa mais justa representam que aquela pessoa automaticamente não está concorrendo a/ocupando uma vaga em postos de trabalho tradicionais. Ela tem o privilégio ou a ausência de requisitos que a qualifiquem para tal, pois muitas das empresas não contratam pessoas cuja aparência pode colocar em jogo sua vendável imagem de “seriedade”. Nesse sentido, há “tipos” ideais, quase sempre masculinos, que acompanham os salários; o homem de terno e gravata ou a mulher com roupa masculinizada nos táxis; o homem de camisa e calça social nos carros; o homem de bermuda e camiseta nos ônibus e trens. A padronização da empregabilidade, entretanto, é difusa e não abarca toda a sociedade, especialmente com a flexibilização dos postos de trabalho e uma ampla redefinição do que é trabalho.

Nesse momento, reafirma-se uma meritocracia conservadora, uma exaltação ao trabalho que critica qualquer outra forma de obtenção de sobrevivência que não seja a venda da força de trabalho. A autoafirmação enquanto trabalhador se torna sinônimo de dignidade e apelo moral: “eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”, disse o menino preso ao poste no Flamengo. Os pobres que recebem a bolsa família do Estado são acusados, assim como os camelôs ou ambulantes que vendem suas mercadorias nas ruas, os mendigos que recebem trocados de transeuntes, os abastados que recebem mesadas dos pais, os indígenas que cobram um pedágio para “estrangeiros” que almejam transitar em sua reserva, os estudantes profissionais que recebem bolsas de pesquisa. São todos chamados pejorativamente de “vagabundos”, de “não-trabalhadores”, a partir de um discurso de criminalização do ócio quase sempre acompanhado por julgamentos morais: o indígena é um “alcoólatra” e gasta o que obtém para beber num bar ou comprar roupas de marca, o pobre é burro e compra uma televisão grande, o “filhinho de papai mimado” é “rebelde sem causa” e ocupa as ruas pois não tem mais o que fazer, o ambulante “suja” a cidade, o favelado é um “potencial marginal”, o hippie é “maconheiro”…

Num escopo mais amplo, isso se aplica de forma mais enraizada e cotidianamente violenta contra as mulheres e os não-humanos. A Terra é a primeira explorada no mundo antropocêntrico, e muitas mulheres, a partir do não-reconhecimento já institucionalizado do trabalho doméstico, são também consideradas “não-trabalhadoras” e sofrem nas mãos de um patriarcalismo machista, que organiza tanto o capitalismo quanto boa parte das lutas contra ele, ao longo da tradição da esquerda operária. 

Muitas vezes, os mesmos que usam esse discurso de criminalização são os que exaltam as sextas-feiras e seus happy hours, que reclamam das segundas-feiras e da volta à rotina insuportável. Esse consenso em torno do trabalho que dignifica o homem remete ao nazismo, mas ainda assim uma parcela da população se volta contra os que negam o padrão, quando violento é o trabalho, desde sua fundação e separação de outras “esferas da vida”.

A estética se relaciona diretamente com a temática das jornadas de junho-em-diante, ao assumirmos o que Eduardo Viveiros de Castro aponta sobre a importância do corpo nas cosmologias indígenas:
“O corpo, sendo o lugar da perspectiva diferenciante, deve ser maximamente diferenciado para exprimi-la completamente. (…) Ele é o instrumento fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo tempo o objeto por excelência, aquilo que se dá a ver a outrem (…). [N]ão há mudança “espiritual” que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de (…) afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário.” (Viveiros de Castro, 1996)

Performática, a multidão que luta na forma de singularidades cooperantes reafirma as diferenças. O desafio é garantir a vida dos que estão para além da empregabilidade, do emprego formal, do sonho do “pleno emprego” e da estabilidade. Dos moradores de rua, dos indígenas, dos pobres, das mulheres, dos homossexuais, dos não-humanos, que são os alvos da violência física no momento de polarização acerca dos direitos humanos. Machismo, homofobia, racismo, capitalismo, patriarcalismo, eurocentrismo, antropocentrismo, militarismo, nacionalismo, estão todos intimamente ligados.

Entre “direitos humanos para todos” x “direitos humanos para humanos direitos”, em vez de glorificar o mérito e o esforço, um desafio nítido e urgente que se apresenta é garantir a reexistência desses que diariamente desfilam outras formas de vida, que “desautorizam” o estilo disciplinado do trabalhador, ao lançarem pelo simples fato de serem olhados com estranheza ou desprezo uma constatação de que existe sociabilidade fora do Estado e do trabalho. Nada pode ser mais ofensivo para o trabalhador do que alguém que não passa diariamente pelo suplício idêntico, ainda que todos esses vivenciem diversos outros suplícios. 

A defesa do exótico como epicentro do êxodo constituinte, então, vai além de um “relativismo multiculturalista”, chegando a um “perspectivismo multinaturalista” onde a troca de pontos de vista entre as minorias da multidão em luta constituem um novo horizonte de vida, no qual assume-se uma cultura-base comum a todos e as diferenças se manifestam nos corpos singulares “naturalizados”. O Black Bloc aparece como “entificação do não-id” em vez de identificação coletiva.

O relativismo é um bom ponto de partida para entender e “tolerar” reações mais extremas nas manifestações, por exemplo, ao assumir que para muitos é um momento oportuno de descontar a enorme violência que sofrem diariamente e a revolta que são obrigados a reprimir internamente. Mas apenas entender e “tolerar” podem não ser suficientes; e o “perspectivismo”, o viver ao menos por alguns momentos uma realidade diferente, aproximar-se da realidade do camelô ao ser reprimido pela polícia, ocupar os espaços “públicos”, apreender novos códigos de comunicação, educação e solidariedades, é mudança “espiritual” através da mudança do ponto de vista. Ocupar um lugar periférico e sentir as aflições e afecções decorrentes desse modo de ser, desse cotidiano.

O perspectivismo ajuda também a entender a nova composição do trabalho metropolitano, a estabelecer novas alianças na e para a luta. Sob essa ótica, podemos pensar a reação violenta das elites estabilizadas como desdobramento de uma revolta contra a inclusão (Cava, 2013) que parte da multidão “precária”, pois “quando o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar” (Clastres apud Viveiros de Castro, 2011). E o que observam é a existência de vida fora dos moldes do trabalho, que se metamorfoseia na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, e se explicita agora na “greve da metrópole”.

“A própria inclusão social no Brasil, onde todos são levados a trabalhar muito e com um peso enorme de cobranças e expectativas (obter sucesso, construir futuro, ascender, ser feliz), opera segundo esse dispositivo que joga o controle para dentro da subjetividade” (Cava, 2013)

“Para vencer, não é preciso apenas estar qualificado para trabalhar, mas estar preparado emocionalmente, ter um perfil empreender, ser polivalente em qualidades e virtudes, ser bonito, arrojado, simpático, estar bem dotado de capital cultural e intelectual. Isso tudo carrega a subjetividade de uma enorme pressão.” (Cava, 2013)

Mas “haverá sempre algo em nós que permite que nos tornemos Aranda [tribo da Austrália]. O trabalho crítico da antropologia nos expõe à possibilidade de sermos outros do que somos, e faz dessa possibilidade uma força em nossas vidas. A sociologia crítica nos convida a ver como nosso mundo social é constituído e como pode ser feito e refeito por nós. A antropologia crítica assemelha-se antes ao ato xamânico de induzir uma presença obsedante (haunting): ela nos encoraja a nos sentirmos “frequentados” (haunted) a cada momento de nossas vidas pelo que poderíamos ser mas que não somos.” (Hage apud Viveiros de Castro, 2012)


REFERÊNCIAS

CAVA, Bruno. “A multidão foi ao deserto”. Editora Annablume. (2013)

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.” Mana 2.2 (1996): 115-144.

___.“Posfácio: O intempestivo, ainda”. Em: Clastres, Pierre. “Arqueologia da Violência”. Editora Cosac Naify. 2ª Edição. (2011)

___.”Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia.” Mana 18.1 (2012): 151-171.

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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