PICICA: "Segundo
dados da ONU, mais de 50% da população mundial já vive nas cidades.
Estima-se que até 2050 cerca de dois terços da população mundial
habitarão áreas urbanas. Essas pessoas se veem obrigadas a moldar seu
modo de vida e seus ritmos para se integrar ao contingente que vive na
urbe"
3ª MOSTRA ECOFALANTE DE CINEMA AMBIENTAL |
Moldamos cidades ou elas nos moldam? |
Segundo
dados da ONU, mais de 50% da população mundial já vive nas cidades.
Estima-se que até 2050 cerca de dois terços da população mundial
habitarão áreas urbanas. Essas pessoas se veem obrigadas a moldar seu
modo de vida e seus ritmos para se integrar ao contingente que vive na
urbe
|
por Mônica C. Ribeiro |
Cena do filme a Escala Humana, de Andreas M. Dalsgaard
Em 1967, o
arquiteto grego Constantinos Apostolos Doxiadis criou o termo
Ecumenópolis, referindo-se à ideia de que, no futuro, as áreas urbanas e
as metrópoles seriam fundidas numa única e gigantesca cidade global, em
razão da urbanização e do crescimento populacional, num processo de
crescimento sem limites. A imagem foi bastante apropriada pela
literatura e por filmes de ficção científica.
Em nossa dimensão, as grandes cidades parecem
saltadas de uma mesma ficção. Os prédios e ruas que rasgam suas
fisionomias cabem dentro de um mesmo molde – de onde se fabricam os skylines
homogêneos que se espalham pelo globo. Os problemas gerados por essa
homogeneidade, também. Com a migração para os centros urbanos, acentuada
a partir da segunda metade do século XX, a escala tornou-se a rapidez
para os carros, espaços “introvertidos”, capazes de garantir privacidade
e segurança, e a supressão dos chamados espaços públicos.
A
cidade moderna foi concebida como uma espécie de máquina, onde fluxos
são pensados de maneira a garantir eficiência e rapidez, e casas são
“máquinas de morar”, na concepção do arquiteto Le Corbusier. Em 1922,
este apresentou a Ville Contemporaine,1 primeiro
estudo urbanístico estruturado e que trazia já em seu centro as questões
da mobilidade. Essa cidade passa a ser o lugar menos aprazível para o flâneur
de Baudelaire, tendo seus espaços públicos transformados em “não
lugares”, em locais de passagem em função da mobilidade rápida.
Planos
de urbanização foram concebidos para organizar as cidades em zonas
específicas para cada uso. Em meio a esse desenho, figura o homem. Onde
se encaixam suas particularidades, especificidades e singularidades
nesse design urbano?
Segundo
dados da ONU, mais de 50% da população mundial já vive nas cidades.
Estima-se que até 2050 cerca de dois terços da população mundial
habitarão áreas urbanas. Essas pessoas se veem obrigadas a moldar seu
modo de vida e seus ritmos para se integrar ao contingente que vive na
urbe.
Transformar
a fisionomia de um lugar numa cidade global tem custos, em especial
para as populações que são expulsas de suas moradias em nome do
progresso e da especulação imobiliária; expulsas dos modos tradicionais
de existir e das formas de interação nesses espaços.
Um dos lugares do planeta onde a urbanização hoje tem se desenvolvido mais rapidamente é a China. No filme The human scale,2
de Andreas M. Dalsgaard, vemos como a mudança faz que se percam muitas
das características tradicionais na opção pelo molde-que-já-deu-defeito
no Ocidente: construção de centros financeiros, moradias empilhadas nas
franjas das cidades, quase nenhum espaço para a interação. As casas
tradicionais da China são dispostas em espécies de vilas, chamadas hutongs,
e se organizam em torno de pátios e becos. O que acontece quando um
corredor, uma esquina ou um beco socialmente compartilhados desaparecem
para dar lugar a novos quarteirões remodelados segundo planos
urbanísticos modernos?
Enquanto
algumas cidades, principalmente europeias, começam a abrir espaços de
convivência para seus habitantes e a reduzir o espaço do carro, as
cidades em desenvolvimento ou subdesenvolvidas obtêm financiamentos
mundiais para se transformar no antigo modelo. É o caso de Istambul,
retratada no documentário Ecumenópolis: cidade sem limites,3
de Imre Azem. Seguindo a orientação do Banco Mundial, a Turquia busca
modernizar cidades e orienta seu crescimento com base nas já conhecidas
indústrias da moradia, do automóvel e dos serviços, incrementando a
presença de corporações internacionais em seu solo. O filme acompanha a
história de uma família migrante desde a demolição de seu bairro – onde
será construído um condomínio luxuoso, envolto em verde, com piscina e
campo de golfe, graças à valorização do entorno causada pela construção
de um estádio olímpico – até a luta por moradia a partir desse episódio.4
Jan Gehl é o arquiteto conhecido pela mudança de
Copenhague nos anos 1960. Ele observou como as pessoas usavam os espaços
e fez uma espécie de mapa de comportamentos. Seu primeiro livro, Life between buildings,
publicado em 1972, analisava o comportamento das pessoas no espaço
público, usando como laboratório a primeira rua de pedestres da cidade, a
Strøget. À medida que carros perderam espaço nas ruas centrais da
cidade, que passaram a ser devotadas ao pedestre, a vida pública foi se
multiplicando.5
Processos semelhantes ao de Copenhague foram
desenvolvidos ou estão em desenvolvimento em outras cidades, que começam
a rever a escala e providenciar espaços de convivência, ampliando as
áreas para pedestres e ciclistas, considerando, finalmente, o lugar do
homem nesse desenho. A cidade de São Paulo vive boa parte desses
dilemas. Hoje estamos em processo de revisão do Plano Diretor
Estratégico,6 e o escritório de Jan Gehl está envolvido em um
projeto de requalificação para o centro da cidade, chamado Centro
Diálogo Aberto.7 Simultaneamente a isso, movimentos e pessoas
promovem ocupações de espaços de passagem, transformando-os em locais
de convívio e promovendo apropriações da cidade. É o caso de
mobilizações como A Batata Precisa de Você, Imargem, Hortelões Urbanos, Pedal Verde, Rios e Ruas,
Árvores Vivas, entre vários outras, que desenham, espalhadas por
diversas regiões – mas de certa forma em conjunto –, uma nova cidade,
sob uma nova ótica.
De
20 a 27 de março, salas do circuito de cinema da capital paulista
recebem os filmes citados neste artigo e muitos outros, que abordam
temas variados, dentro da programação da 3a Mostra
Ecofalante de Cinema Ambiental. Serão promovidos também debates com
realizadores e especialistas. A programação, totalmente gratuita, está
disponível no site do evento: ecofalante.org.br/mostra .
Mônica C. Ribeiro
é Jornalista e mestre em antropologia1 Le Corbusier preocupava-se com a cidade da era da máquina, imaginando que para acomodar a crescente população da Europa e do mundo seria necessário criar um novo modelo de assentamento. Os princípios do Plano para a Cidade Contemporânea eram basicamente descongestionamento do centro das cidades; aumento da densidade populacional; aumento das áreas verdes; separação entre usos e unidades de vizinhança; separação entre veículos e pedestres. Mais em:htpp://pessoal.ufpr.edu.br/rolando/arquivos/Le_Corbusier2.pdf . 2 The human scale (A escala humana), produção dinamarquesa de 2012 dirigida por Andreas M. Dalsgaard e inédita em São Paulo, documenta como cidades modernas repelem a interação humana e argumenta que podemos construir cidades de uma forma que leve em consideração necessidades humanas e intimidade. 3 Ecumenopolis: city without limits (Ecumenópolis: cidade sem limites), documentário de 2011 dirigido por Imre Azem e inédito no Brasil, aborda o caminho de Istambul e de outras cidades rumo à globalização. 4 No Brasil, os Comitês Populares da Copa divulgaram um dossiê abordando questões como violação ao direito de moradia, ao direito à informação e à participação nos processos decisórios envolvendo a Copa que se realizará no Brasil este ano e também as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, além de desrespeito à legislação e aos direitos ambientais e trabalhistas. Disponível em: goo.gl/gonvu 5 Informações sobre o trabalho de Jan Gehl podem ser acessadas em: www.gehlarchiects.com . 6 Mais informações em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretor-estrategico/ . 7 Ver mais em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/centro-dialogo-aberto/o-vale-do-anhangabau/ . |
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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