março 23, 2014

"Brasileia, Brasília e o Brasil nas margens". Por F. Toledo e D. Tomaz

PICICA: "Nos últimos anos, mais de 20 mil migrantes haitianos já chegaram ao Brasil por Brasileia, no Acre, num processo de diáspora mundial causado pelas guerras, invasões e miséria na ilha de origem. A busca por uma El Dorado brasileira, no entanto, se depara as péssimas condições de acolhimento de refugiados de uma região onde o estado brasileiro mantém uma missão militar, com mandato da ONU. Num país que tanto almeja ingressar no Ocidente, inclusive delirando por um assento no Conselho de Segurança, a única política para encarar a imigração haitiana tem sido sua conversão apressada em força-trabalho superexplorada. (NE)"


Brasileia, Brasília e o Brasil nas margens.

20/03/2014
Por F. Toledo e D. Tomaz


Por Fabricio Toledo e Diana Thomaz

Nos últimos anos, mais de 20 mil migrantes haitianos já chegaram ao Brasil por Brasileia, no Acre, num processo de diáspora mundial causado pelas guerras, invasões e miséria na ilha de origem. A busca por uma El Dorado brasileira, no entanto, se depara as péssimas condições de acolhimento de refugiados de uma região onde o estado brasileiro mantém uma missão militar, com mandato da ONU. Num país que tanto almeja ingressar no Ocidente, inclusive delirando por um assento no Conselho de Segurança, a única política para encarar a imigração haitiana tem sido sua conversão apressada em força-trabalho superexplorada. (NE)

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A pequena cidade de Brasileia, no estado do Acre, teve que ceder seu nome original, Brasília, para a nova capital federal, desenhada nos planos modernizantes de Juscelino Kubitschek e forjada por um sem número de trabalhadores, quase todos migrantes, deslocados de regiões mais próximas ou distantes. Desde 2010, aquela pequena cidade passou a ser o ponto de chegada de um crescente fluxo de migrantes haitianos, que se dirigem ao Brasil depois que seu país foi devastado por um terremoto de alta magnitude. 

Diferentemente do que se passou em países como os EUA e a França, onde há uma diáspora haitiana consolidada e pujante, o governo brasileiro buscou regularizar o fluxo de migrantes haitianos por meio dos chamados “vistos humanitários”, levando em consideração o grave contexto que se verificava no Haiti. Quatro anos depois do terremoto, a situação permanece crítica naquele país e o número de pessoas vindo ao Brasil tem crescido cada vez mais. Guiados por “coiotes”, aproveitadores que cobram caro pela jornada, e segundo uma rota marcada por extorsões e violências, os migrantes haitianos têm se dirigido, em sua maioria, à cidade de Brasileia, onde um esforço de acolhida provisório e excepcional foi organizado. No entanto, a estrutura montada de forma precária para atender à situação de urgência se estende até hoje e o que era pra ser provisório tornou-se permanente e normal.

Segundo dados fornecidos pela administração do abrigo de Brasileia, dos estimados 21 mil migrantes haitianos que chegaram ao Brasil após o terremoto, cerca de 18 mil teriam passado pela cidade. Desde 2010, sete diferentes abrigos, contando com o atual, foram improvisados para acolher esses migrantes; sempre em condições precárias. A população local da cidade tem sentido diretamente o impacto da chegada dos migrantes e a disputa por serviços gerada pela demanda extra desse grupo vem sendo respondida através da limitação do atendimento aos migrantes. A unidade de saúde mais próxima ao abrigo atual, por exemplo, muito requisitada pelos migrantes que adoecem pelas próprias condições de viagem e do abrigo, destinou um de seus três médicos para atender aos migrantes. O Banco do Brasil e os Correios também passaram a impor uma limitação ao acesso de estrangeiros para não prejudicar o atendimento à população local e gerar mais ressentimentos.

Damião Borges, até 2010 funcionário da Secretaria de Esportes do Estado do Acre, foi transferido para a Secretaria de Direitos Humanos para atuar, por um período estimado de 20 dias, na acolhida dos migrantes. Ainda hoje Damião está encarregado de coordenar sozinho o abrigo, acumulando inúmeras atribuições e responsabilidades. As práticas diárias do abrigo acabam por refletir as contradições de uma política que permite a entrada dos migrantes vulneráveis, mas deixa às empresas que se encarreguem de sua integração no país.

O abrigo vem enfrentando uma superlotação crônica, com mais de mil migrantes disputando espaço e recursos em um ambiente insalubre que deveria acolher no máximo 300 a 400 pessoas. A principal forma de saída dos migrantes de Brasileia tem sido através da contratação por empresas, do sul, sudeste e centro do país, que levam ônibus até a cidade em busca de mão de obra barata. Munido de uma forte ética do trabalho, Damião não somente é o coordenador do abrigo, como também costuma atuar na intermediação com as empresas que vêm à cidade, em sua maioria da construção civil ou frigoríficos. Os critérios adotados por Damião e representantes das empresas, tais como a grossura das mãos e das canelas, são bastante representativos de uma lógica da docilidade do corpo em relação ao trabalho, remontando ao tráfico de escravos igualmente negros que apenas formalmente abolimos em 1888.

O Brasil teria agora seu próprio campo de refugiados? Certamente os paralelos e semelhanças são múltiplos, ainda que formalmente os haitianos acolhidos no abrigo não sejam refugiados, mas migrantes por “razões humanitárias”. Diferentemente de campos de refugiados, situados majoritariamente no Sul Global, o abrigo não é administrado por agências ou ONGs internacionais. A maior parte dos recursos usados para atendê-los é originária dos cofres do município de Brasileia, que se encontra desde 2010 saturado em sua capacidade de promover uma colhida minimamente digna. Também diferente de campos de refugados, os migrantes têm liberdade de circulação, podendo utilizar demais espaços da cidade, ainda que a expectativa de serem escolhidos na próxima seleção feita pelas empresas os obrigue a ficar no abrigo e seus arredores. 

Será certamente fácil verificar os paralelos entre a situação dos haitianos no abrigo de Brasiléia e os campos de refugiados espalhados pelo Sul do Mundo, ou com outros espaços de exceção, como as prisões ou até mesmo os campos de concentração. A força e a utilidade desta comparação, contudo, logo encontra sérios limites. Evidentemente, o tratamento destinado aos migrantes haitianos – e agora também os senegaleses, em um fluxo que tende a crescer — explicita o caráter excepcional, ou, de outro modo, a “nudez” de suas vidas, já que suas necessidades são pensadas apenas enquanto sobrevivência. O que de fato chama a atenção nesta situação — de provisoriedade estável ou de normalidade precária — a que estão submetidos é o esforço para reduzir sua subjetividade à mera força de trabalho. Isso significa não somente negação de cidadania, mas redução da possibilidade de resistir às formas de opressão e violência que o trabalho precário – insalubre, perigoso, mal-remunerado e socialmente invisível – concretamente impõe. 

O outro ponto importante a destacar é que a provisoriedade da política oficial de atenção aos migrantes é a regra, isto é, de provisório não há nada, uma vez que é nesta forma que ela se estabelece. Tudo aquilo que se apresenta como ausência ou falta, seja dinheiro, funcionários, atendimentos, etc. é de fato a presença do Estado em suas margens. Mesmo a presença do órgão fiscalizador, que se deu pela visita de uma equipe do Ministério Público Federal, no dia sete de fevereiro, não teve outro significado senão a extensão e permanência da provisoriedade e da precariedade. Suas únicas recomendações – que, aliás, foram feitas sem que tenha havido uma conversa aberta com os migrantes – resumem-se a medidas paliativas, como distribuição de kits de higiene e reforma do abrigo. 

Cerca de 70 anos depois de ceder seu nome à capital do país, essa pequena cidade do Acre de certa forma oferece não mais um elemento simbólico para a construção de um projeto de país, mas demonstra, de forma brutal e materializada, as contradições e perigos de uma agora “potência emergente” negligenciar as necessidades de migrantes vulneráveis, atraídos pela imagem da El Dorado tão sonhada por JK.


Fabrício Toledo é advogado trabalhando com refugiados, e doutorando em direito pela PUC-RJ.
Diana Thomaz é mestranda em Relações Internacionais pela PUC-RJ.

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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