PICICA: "Nos últimos anos, mais de 20 mil migrantes haitianos já chegaram
ao Brasil por Brasileia, no Acre, num processo de diáspora mundial
causado pelas guerras, invasões e miséria na ilha de origem. A busca por
uma El Dorado brasileira, no entanto, se depara as péssimas
condições de acolhimento de refugiados de uma região onde o estado
brasileiro mantém uma missão militar, com mandato da ONU. Num país que
tanto almeja ingressar no Ocidente, inclusive delirando por um assento
no Conselho de Segurança, a única política para encarar a imigração
haitiana tem sido sua conversão apressada em força-trabalho
superexplorada. (NE)"
Brasileia, Brasília e o Brasil nas margens.
20/03/2014
Por F. Toledo e D. Tomaz
Por Fabricio Toledo e Diana Thomaz
Nos últimos anos, mais de 20 mil migrantes haitianos já chegaram ao Brasil por Brasileia, no Acre, num processo de diáspora mundial causado pelas guerras, invasões e miséria na ilha de origem. A busca por uma El Dorado brasileira, no entanto, se depara as péssimas condições de acolhimento de refugiados de uma região onde o estado brasileiro mantém uma missão militar, com mandato da ONU. Num país que tanto almeja ingressar no Ocidente, inclusive delirando por um assento no Conselho de Segurança, a única política para encarar a imigração haitiana tem sido sua conversão apressada em força-trabalho superexplorada. (NE)
–
A
pequena cidade de Brasileia, no estado do Acre, teve que ceder seu nome
original, Brasília, para a nova capital federal, desenhada nos planos
modernizantes de Juscelino Kubitschek e forjada por um sem número de
trabalhadores, quase todos migrantes, deslocados de regiões mais próximas ou distantes. Desde 2010, aquela pequena cidade passou a ser o ponto de chegada de um crescente fluxo de migrantes haitianos, que se dirigem ao Brasil depois que seu país foi devastado por um terremoto de alta magnitude.
Diferentemente
do que se passou em países como os EUA e a França, onde há uma diáspora
haitiana consolidada e pujante, o governo brasileiro buscou regularizar
o fluxo de migrantes haitianos por meio dos chamados “vistos
humanitários”, levando em consideração o grave contexto que se
verificava no Haiti. Quatro anos depois do terremoto, a situação
permanece crítica naquele país e o número de pessoas vindo ao Brasil tem
crescido cada vez mais. Guiados por “coiotes”, aproveitadores que
cobram caro pela jornada, e segundo uma rota marcada por extorsões e
violências, os migrantes haitianos têm se dirigido, em sua maioria, à
cidade de Brasileia, onde um esforço de acolhida provisório e
excepcional foi organizado. No entanto, a estrutura montada de forma
precária para atender à situação de urgência se estende até hoje e o que
era pra ser provisório tornou-se permanente e normal.
Segundo
dados fornecidos pela administração do abrigo de Brasileia, dos
estimados 21 mil migrantes haitianos que chegaram ao Brasil após o
terremoto, cerca de 18 mil teriam passado pela cidade. Desde 2010, sete
diferentes abrigos, contando com o atual, foram improvisados para
acolher esses migrantes; sempre em
condições precárias. A população local da cidade tem sentido diretamente
o impacto da chegada dos migrantes e a disputa por serviços gerada pela
demanda extra desse grupo vem sendo respondida
através da limitação do atendimento aos migrantes. A unidade de saúde
mais próxima ao abrigo atual, por exemplo, muito requisitada pelos
migrantes que adoecem pelas próprias condições de viagem e do abrigo, destinou
um de seus três médicos para atender aos migrantes. O Banco do Brasil e
os Correios também passaram a impor uma limitação ao acesso de
estrangeiros para não prejudicar o atendimento à população local e gerar
mais ressentimentos.
Damião
Borges, até 2010 funcionário da Secretaria de Esportes do Estado do
Acre, foi transferido para a Secretaria de Direitos Humanos para atuar,
por um período estimado de 20 dias, na acolhida dos migrantes. Ainda
hoje Damião está encarregado de coordenar sozinho o abrigo, acumulando
inúmeras atribuições e responsabilidades. As práticas diárias do abrigo
acabam por refletir as contradições de uma política que permite a
entrada dos migrantes vulneráveis, mas deixa às empresas que se
encarreguem de sua integração no país.
O
abrigo vem enfrentando uma superlotação crônica, com mais de mil
migrantes disputando espaço e recursos em um ambiente insalubre que
deveria acolher no máximo 300 a 400 pessoas. A principal forma de saída
dos migrantes de Brasileia tem sido através da contratação por empresas,
do sul, sudeste e centro do país, que levam ônibus até a cidade em
busca de mão de obra barata. Munido de uma forte ética do trabalho,
Damião não somente é o coordenador do abrigo, como também costuma atuar
na intermediação com as empresas que vêm à cidade, em sua maioria da
construção civil ou frigoríficos. Os critérios adotados por Damião e
representantes das empresas, tais como a grossura das mãos e das
canelas, são bastante representativos de uma lógica da docilidade do
corpo em relação ao trabalho, remontando ao tráfico de escravos
igualmente negros que apenas formalmente abolimos em 1888.
O
Brasil teria agora seu próprio campo de refugiados? Certamente os
paralelos e semelhanças são múltiplos, ainda que formalmente os
haitianos acolhidos no abrigo não sejam refugiados, mas migrantes por
“razões humanitárias”. Diferentemente de campos de refugiados, situados
majoritariamente no Sul Global, o abrigo não é administrado por agências
ou ONGs internacionais. A maior parte dos recursos usados para
atendê-los é originária dos cofres do município de Brasileia, que se
encontra desde 2010 saturado em sua capacidade de promover uma colhida
minimamente digna. Também diferente de campos de refugados, os migrantes
têm liberdade de circulação, podendo utilizar demais espaços da cidade,
ainda que a expectativa de serem escolhidos na próxima seleção feita
pelas empresas os obrigue a ficar no abrigo e seus arredores.
Será
certamente fácil verificar os paralelos entre a situação dos haitianos
no abrigo de Brasiléia e os campos de refugiados espalhados pelo Sul do
Mundo, ou com outros espaços de exceção, como as prisões ou até mesmo os
campos de concentração. A força e a utilidade desta comparação,
contudo, logo encontra sérios limites. Evidentemente, o tratamento
destinado aos migrantes haitianos – e agora também os senegaleses, em um
fluxo que tende a crescer — explicita o caráter excepcional, ou, de
outro modo, a “nudez” de suas vidas, já que suas necessidades são
pensadas apenas enquanto sobrevivência. O que de fato chama a atenção
nesta situação — de provisoriedade estável ou de normalidade precária — a
que estão submetidos é o esforço para reduzir sua subjetividade à mera
força de trabalho. Isso significa não somente negação de cidadania, mas
redução da possibilidade de resistir às formas de opressão e violência
que o trabalho precário – insalubre, perigoso, mal-remunerado e
socialmente invisível – concretamente impõe.
O
outro ponto importante a destacar é que a provisoriedade da política
oficial de atenção aos migrantes é a regra, isto é, de provisório não há
nada, uma vez que é nesta forma que ela se estabelece. Tudo aquilo que
se apresenta como ausência ou falta, seja dinheiro, funcionários, atendimentos,
etc. é de fato a presença do Estado em suas margens. Mesmo a presença
do órgão fiscalizador, que se deu pela visita de uma equipe do
Ministério Público Federal, no dia sete de fevereiro, não teve outro
significado senão a extensão e permanência da provisoriedade e da
precariedade. Suas únicas recomendações – que, aliás, foram feitas sem que tenha havido uma conversa aberta com os migrantes – resumem-se a medidas paliativas, como distribuição de kits de higiene e reforma do abrigo.
Cerca
de 70 anos depois de ceder seu nome à capital do país, essa pequena
cidade do Acre de certa forma oferece não mais um elemento simbólico
para a construção de um projeto de país, mas demonstra, de forma brutal e
materializada, as contradições e perigos de uma agora “potência
emergente” negligenciar as necessidades de migrantes vulneráveis,
atraídos pela imagem da El Dorado tão sonhada por JK.
–
Fabrício Toledo é advogado trabalhando com refugiados, e doutorando em direito pela PUC-RJ.
Diana Thomaz é mestranda em Relações Internacionais pela PUC-RJ.
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