PICICA: "Ao contrário do que afirmaram, em um estranho uníssono, a mídia conservadora e parte de nossos intelectuais à gauche,
uma parcela da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. Mesmo
o MPL não apareceu do nada: criado em 2005, ele somou forças a outras
movimentações sociais, urbanas e rurais. São jovens, principalmente, os
que ocupam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas
vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes
empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas
das vadias”; protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas
“Paradas da Diversidade”. São jovens, principalmente, os que chamam a
atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa
educação; que dão as mãos a trabalhadores de diferentes categorias em
seus movimentos reivindicatórios; que acusam o nosso racismo; que sofrem
no corpo e denunciam corajosamente as muitas e cotidianas formas de
violência policial."
Cidades e corpos rebeldes
26/03/2014
Por Clóvis Gruner
Por Clóvis Gruner, historiador e professor da UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
–
Foi como em um roteiro
de filme experimental, improvisado e imprevisível. E o que começou com
as mobilizações organizadas pelo Movimento Passe Livre para reivindicar a
revogação do aumento de 20 centavos nas passagens do transporte público
paulistano, tornou-se a maior onda de manifestações desde a campanha
pelas “Diretas Já!”, no começo dos anos 80. Passados alguns meses, olhar
para as “Jornadas de junho”, como vêm sendo romanticamente chamadas por
alguns, é assumir desde logo uma posição ambígua frente aos eventos.
Se, por um lado não
cessam de aparecer análises as mais diversas; por outro qualquer coisa
que se diga é provisório. E não apenas porque os ecos das manifestações
ainda ressoam, mas porque elas próprias ainda não cessaram
completamente. Seguindo caminhos improvisados e imprevisíveis, elas
continuam nos confrontos entre PMs e manifestantes; nas intensidades
discursivas das redes sociais, virtuais ou não, que denunciam as muitas
formas de violência do Estado; nas narrativas autônomas das mídias
alternativas, a problematizar as coberturas e os discursos autorizados
da chamada “imprensa tradicional”.
Minha contribuição ao
debate se dará a partir de duas perspectivas que se entrelaçam.
Primeiro, tento situar o lugar das manifestações de junho em uma
temporalidade mais longa e estruturada, pensando-a como tributária das
rupturas provocadas pelos eventos do quase mítico Maio de 68, tomado
aqui como um símbolo que permite sintetizar outros tantos eventos mais
ou menos próximos e mesmo anteriores a ele – a participação anarquista
na Guerra Civil espanhola, a Primavera de Praga, as grandes
manifestações contra a guerra do Vietnã, algumas das formas de
resistência às ditaduras na América Latina, etc… Depois, busco
compreender as singularidades das manifestações frente às décadas de
retomada democrática, iniciada com a chamada “Nova República”,
aprofundada e sob certo ponto de vista consolidada pelos três últimos
governos.
***
Em um texto escrito em 1950, O que é política,
a filósofa Hannah Arendt propõe uma chave de leitura que me interessa
explorar rapidamente. A pensadora alemã define a política como um lugar
de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades
porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer
explodir singularidades – movimentos, desejos, ações singulares. A
multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos:
a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que
constituem relações naqueles interstícios – nos intervalos ou nos
“espaços entre os homens” – que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a
diferença. “A política”, diz, “baseia-se no fato da pluralidade dos
homens”. Ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes,
não de iguais. Razão porque, para Arendt, o “sentido da política é a
liberdade”.
Entre os eventos
políticos do século 20, o Maio francês talvez seja o que melhor
sintetize esse potencial emancipador da política. Ao recusar as utopias
clássicas, – o liberalismo de mercado e o socialismo estatizante, – os
jovens franceses recusaram, igualmente, a fusão do indivíduo na
totalidade (seja o partido, a igreja ou Estado), o mundo burocratizado
da política tradicional e as noções tradicionais de militância e
revolução. Sabemos que do ponto de vista das demandas mais estritamente
institucionais, os estudantes parisienses mal e parcamente conquistaram
aquilo que os motivou a ir às ruas, a reforma universitária. Mas o “Maio
de 68” transformou por outro lado nossa forma de ouvir música, de ler,
de assistir um filme, de trepar etc… Principalmente, alterou
radicalmente nossa maneira de pensar e fazer política, nos chamando a
atenção para a necessidade de mantermo-nos sensíveis aquilo que é atual
no contemporâneo.
Se por um lado é
inegável a sobrevivência dos velhos modos de fazer política, também o é a
força e a pertinência dos chamados “novos movimentos sociais” que nas
últimas décadas pautaram boa parte do debate público – os grupos gays,
feministas, negros, indígenas, ambientalistas; as movimentações e
ocupações de ruas e edificações urbanas pelos punks; das universidades
pelos estudantes; a sublevação dos guetos e bairros periféricos pelos
imigrantes e seus descendentes, etc… Em que pese suas muitas diferenças,
essas movimentações tem em comum uma aspiração a uma singularização
irredutível às muitas tentativas de alinhamento e apropriação de suas
reivindicações pelas formas tradicionais de política. Principalmente,
uma espécie de recusa teimosa, de inspiração libertária, do Estado e
suas instituições.
O filósofo italiano
Giorgio Agamben, comentando aquilo que define como “política da
singularidade qualquer”, observa que na maioria das manifestações
pós-Maio chama atenção a “relativa ausência de conteúdos determinados de
reivindicação”. Principalmente, a ausência de uma reivindicação ou um
projeto específico de poder ou de controle das instituições políticas
tradicionais. Para Agamben, não se trata mais de uma “luta pela
conquista ou controle do Estado, mas luta entre o Estado e o
não-Estado”, ou seja, a própria humanidade. A ausência de um projeto de
poder e de uma identificação imediata com o Estado são duas entre outras
características que aproximam estes movimentos: a inexistência de um
centro ou direção comuns; a busca constante da autonomia, com a
constituição de agrupamentos sem uma direção, hierarquia ou disciplina
centralizadas; o diálogo não raro conflituoso com os partidos políticos,
mesmo os de esquerda e, enfim, a inexistência mesmo de uma identidade
fixa comum ao próprio grupo: o que constitui a comunidade são interesses
que não impedem o aparecimento e a pertinência de singularidades.
***
Ora, me parece é
este também um perfil possível das manifestações de junho. Em um
primeiro momento, o motivo das manifestações foi minimizado, como se se
tratasse de coisa pouco importante o direito a um transporte público
acessível e de qualidade. Perdeu-se de vista que estavam em jogo alguns
direitos fundamentais, entre eles a humanização das cidades, a
mobilidade urbana e a ocupação do espaço público. E garantir o acesso ao
transporte público é condição fundamental ao exercício destes direitos.
À medida que as movimentações ganharam volume e legitimidade, passou-se
a martelar, principalmente nas mídias tradicionais, a ideia de que “o
gigante acordou”, como se estivéssemos de fato “adormecidos”.
Ao contrário do que afirmaram, em um estranho uníssono, a mídia conservadora e parte de nossos intelectuais à gauche,
uma parcela da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. Mesmo
o MPL não apareceu do nada: criado em 2005, ele somou forças a outras
movimentações sociais, urbanas e rurais. São jovens, principalmente, os
que ocupam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas
vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes
empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas
das vadias”; protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas
“Paradas da Diversidade”. São jovens, principalmente, os que chamam a
atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa
educação; que dão as mãos a trabalhadores de diferentes categorias em
seus movimentos reivindicatórios; que acusam o nosso racismo; que sofrem
no corpo e denunciam corajosamente as muitas e cotidianas formas de
violência policial.
Principalmente entre a
esquerda governista, criticaram-se as muitas “caras” das manifestações, a
falta de foco e de objetivos claros, temeu-se e especulou-se sobre quem
se apropriou de que e para que fins. Ora, essa pluralidade e dispersão
não apenas são um traço das democracias e das manifestações coletivas,
mas foram em grande medida resposta a um crescente distanciamento entre o
governo e os movimentos sociais. A estratégia do desenvolvimento a
qualquer custo, hoje vigente no país, complementa o esforço por diluir o
tema dos direitos humanos nos índices de diminuição da pobreza
percebidos na última década. Nada tenho contra as ações sociais
patrocinadas pelo atual e pelos dois últimos governos; quaisquer
iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos índices de
miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à
pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema.
Uma política ativa de respeito aos direitos humanos precisa assegurar a
laicidade do Estado e a igualdade dos direitos civis; conduzir
firmemente o processo de acerto de contas com nossa ditadura civil
militar; respeitar e fazer respeitar as diferenças de gênero, étnicas e
religiosas, entre outras; afiançar o acesso à saúde; investir na
educação pública e de qualidade, em todos os níveis; combater a
violência institucional, dentro e fora das penitenciárias; etc.
Mas o que vemos é o
contrário disso: enquanto os critérios pelos quais medimos nosso nível
de civilização continuam a basear-se quase exclusivamente no acesso ao
mercado e na ampliação do consumo, vemos avançar, com a conivência
silenciosa do governo, o ódio contra as minorias, gays em especial; a
desocupação violenta de comunidades como Pinheirinho; a militarização
dos morros cariocas e o assassinato de moradores da periferia; a
proliferação da tortura principalmente nas penitenciárias, presídios e
delegacias; a construção de Belo Monte e a violência crescente contra as
comunidades indígenas; o uso recorrente do poderio militar do Estado
contra os movimentos e manifestações sociais, frequentemente
criminalizados etc.
E é nesse aspecto que
reside a singularidade das manifestações de junho frente à experiência
histórica de que é também tributária, o Maio de 68. Vivemos até
recentemente um idílio democrático compreensível em função de nosso
passado recente. Por outro lado, renunciamos quase inteiramente a um
exercício fundamental para a renovação e o aprofundamento democráticos,
que é a crítica à própria democracia. Para as gerações formadas sob o
jugo da experiência autoritária, criticá-la parecia implicar o risco de
retornarmos aquele estado de coisas de que buscamos nos afastar. Mas a
crítica à democracia é necessária não apenas porque faz avançar as
instituições e a experiência democráticas mas, no caso específico do
Brasil, só por ela conseguiremos lidar com e nos livrar dos entulhos
autoritários ainda presentes na nossa cultura e instituições políticas.
Nesse sentido, as
manifestações de junho revelam uma sensibilidade capaz de captar
demandas que, por dispersas que pareçam, são parte da experiência de uma
geração felizmente desacostumada à ditadura e, por isso, mais atenta às
fragilidades e contradições da democracia, bem como à necessidade de
fazê-la avançar, inclusive confrontando e denunciando suas muitas formas
de violências físicas e simbólicas. Além disso, trata-se de buscar
construir alternativas de participação e ocupação do espaço público que
não exclusivamente as institucionais, e de valorizarmos outros critérios
de inserção na vida pública além dos índices de consumo.
Por último, mas não
menos importante, as manifestações de junho e seus principais
protagonistas – tais como o MPL – nos alertaram para o caráter trágico
da política. Se as utopias tranquilizam, a tragédia nos obriga a encarar
os desafios e os limites, as frustrações e fracassos, mas também as
possibilidades de uma política que se faz voltada ao presente e que
recusa as promessas messiânicas de um amanhã de redenção e realizações
plenas. Não há futuro, apenas um presente que é o mundo que precisamos
encarar. Michel Foucault chamou a isso “heterotopia”; o historiador e
crítico de arte inglês T. J. Clark cunhou a expressão “política
antiutópica”; eu prefiro chamar essa geração que toma de assalto as ruas
de “pós-utópica”. Mas talvez o nome não seja o mais importante, e sim
certa clareza que me parece atravessar as manifestações de junho e suas
muitas narrativas: a de que a política, pelo menos a que se vive
cotidianamente nas ruas, é imprevisível e, como tal, não nos é possível
saber o que nos espera logo ali. O futuro, afinal, é indisciplinado.
–
Contato do autor: clovisgruner@gmail.com
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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