março 27, 2014

"Cidades e corpos rebeldes", por Clóvis Gruner

PICICA: "Ao contrário do que afirmaram, em um estranho uníssono, a mídia conservadora e parte de nossos intelectuais à gauche, uma parcela da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. Mesmo o MPL não apareceu do nada: criado em 2005, ele somou forças a outras movimentações sociais, urbanas e rurais. São jovens, principalmente, os que ocupam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas “Paradas da Diversidade”. São jovens, principalmente, os que chamam a atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa educação; que dão as mãos a trabalhadores de diferentes categorias em seus movimentos reivindicatórios; que acusam o nosso racismo; que sofrem no corpo e denunciam corajosamente as muitas e cotidianas formas de violência policial."

 

Cidades e corpos rebeldes

26/03/2014
Por Clóvis Gruner


Por Clóvis Gruner, historiador e professor da UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações



Foi como em um roteiro de filme experimental, improvisado e imprevisível. E o que começou com as mobilizações organizadas pelo Movimento Passe Livre para reivindicar a revogação do aumento de 20 centavos nas passagens do transporte público paulistano, tornou-se a maior onda de manifestações desde a campanha pelas “Diretas Já!”, no começo dos anos 80. Passados alguns meses, olhar para as “Jornadas de junho”, como vêm sendo romanticamente chamadas por alguns, é assumir desde logo uma posição ambígua frente aos eventos.

Se, por um lado não cessam de aparecer análises as mais diversas; por outro qualquer coisa que se diga é provisório. E não apenas porque os ecos das manifestações ainda ressoam, mas porque elas próprias ainda não cessaram completamente. Seguindo caminhos improvisados e imprevisíveis, elas continuam nos confrontos entre PMs e manifestantes; nas intensidades discursivas das redes sociais, virtuais ou não, que denunciam as muitas formas de violência do Estado; nas narrativas autônomas das mídias alternativas, a problematizar as coberturas e os discursos autorizados da chamada “imprensa tradicional”.

Minha contribuição ao debate se dará a partir de duas perspectivas que se entrelaçam. Primeiro, tento situar o lugar das manifestações de junho em uma temporalidade mais longa e estruturada, pensando-a como tributária das rupturas provocadas pelos eventos do quase mítico Maio de 68, tomado aqui como um símbolo que permite sintetizar outros tantos eventos mais ou menos próximos e mesmo anteriores a ele – a participação anarquista na Guerra Civil espanhola, a Primavera de Praga, as grandes manifestações contra a guerra do Vietnã, algumas das formas de resistência às ditaduras na América Latina, etc… Depois, busco compreender as singularidades das manifestações frente às décadas de retomada democrática, iniciada com a chamada “Nova República”, aprofundada e sob certo ponto de vista consolidada pelos três últimos governos.

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Em um texto escrito em 1950, O que é política, a filósofa Hannah Arendt propõe uma chave de leitura que me interessa explorar rapidamente. A pensadora alemã define a política como um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades – movimentos, desejos, ações singulares. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem relações naqueles interstícios – nos intervalos ou nos “espaços entre os homens” – que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a diferença. “A política”, diz, “baseia-se no fato da pluralidade dos homens”. Ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão porque, para Arendt, o “sentido da política é a liberdade”.

Entre os eventos políticos do século 20, o Maio francês talvez seja o que melhor sintetize esse potencial emancipador da política. Ao recusar as utopias clássicas, – o liberalismo de mercado e o socialismo estatizante, – os jovens franceses recusaram, igualmente, a fusão do indivíduo na totalidade (seja o partido, a igreja ou Estado), o mundo burocratizado da política tradicional e as noções tradicionais de militância e revolução. Sabemos que do ponto de vista das demandas mais estritamente institucionais, os estudantes parisienses mal e parcamente conquistaram aquilo que os motivou a ir às ruas, a reforma universitária. Mas o “Maio de 68” transformou por outro lado nossa forma de ouvir música, de ler, de assistir um filme, de trepar etc… Principalmente, alterou radicalmente nossa maneira de pensar e fazer política, nos chamando a atenção para a necessidade de mantermo-nos sensíveis aquilo que é atual no contemporâneo.

Se por um lado é inegável a sobrevivência dos velhos modos de fazer política, também o é a força e a pertinência dos chamados “novos movimentos sociais” que nas últimas décadas pautaram boa parte do debate público – os grupos gays, feministas, negros, indígenas, ambientalistas; as movimentações e ocupações de ruas e edificações urbanas pelos punks; das universidades pelos estudantes; a sublevação dos guetos e bairros periféricos pelos imigrantes e seus descendentes, etc… Em que pese suas muitas diferenças, essas movimentações tem em comum uma aspiração a uma singularização irredutível às muitas tentativas de alinhamento e apropriação de suas reivindicações pelas formas tradicionais de política. Principalmente, uma espécie de recusa teimosa, de inspiração libertária, do Estado e suas instituições.

O filósofo italiano Giorgio Agamben, comentando aquilo que define como “política da singularidade qualquer”, observa que na maioria das manifestações pós-Maio chama atenção a “relativa ausência de conteúdos determinados de reivindicação”. Principalmente, a ausência de uma reivindicação ou um projeto específico de poder ou de controle das instituições políticas tradicionais. Para Agamben, não se trata mais de uma “luta pela conquista ou controle do Estado, mas luta entre o Estado e o não-Estado”, ou seja, a própria humanidade. A ausência de um projeto de poder e de uma identificação imediata com o Estado são duas entre outras características que aproximam estes movimentos: a inexistência de um centro ou direção comuns; a busca constante da autonomia, com a constituição de agrupamentos sem uma direção, hierarquia ou disciplina centralizadas; o diálogo não raro conflituoso com os partidos políticos, mesmo os de esquerda e, enfim, a inexistência mesmo de uma identidade fixa comum ao próprio grupo: o que constitui a comunidade são interesses que não impedem o aparecimento e a pertinência de singularidades.

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Ora, me parece é este também um perfil possível das manifestações de junho. Em um primeiro momento, o motivo das manifestações foi minimizado, como se se tratasse de coisa pouco importante o direito a um transporte público acessível e de qualidade. Perdeu-se de vista que estavam em jogo alguns direitos fundamentais, entre eles a humanização das cidades, a mobilidade urbana e a ocupação do espaço público. E garantir o acesso ao transporte público é condição fundamental ao exercício destes direitos. À medida que as movimentações ganharam volume e legitimidade, passou-se a martelar, principalmente nas mídias tradicionais, a ideia de que “o gigante acordou”, como se estivéssemos de fato “adormecidos”.

Ao contrário do que afirmaram, em um estranho uníssono, a mídia conservadora e parte de nossos intelectuais à gauche, uma parcela da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. Mesmo o MPL não apareceu do nada: criado em 2005, ele somou forças a outras movimentações sociais, urbanas e rurais. São jovens, principalmente, os que ocupam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas “Paradas da Diversidade”. São jovens, principalmente, os que chamam a atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa educação; que dão as mãos a trabalhadores de diferentes categorias em seus movimentos reivindicatórios; que acusam o nosso racismo; que sofrem no corpo e denunciam corajosamente as muitas e cotidianas formas de violência policial.

Principalmente entre a esquerda governista, criticaram-se as muitas “caras” das manifestações, a falta de foco e de objetivos claros, temeu-se e especulou-se sobre quem se apropriou de que e para que fins. Ora, essa pluralidade e dispersão não apenas são um traço das democracias e das manifestações coletivas, mas foram em grande medida resposta a um crescente distanciamento entre o governo e os movimentos sociais. A estratégia do desenvolvimento a qualquer custo, hoje vigente no país, complementa o esforço por diluir o tema dos direitos humanos nos índices de diminuição da pobreza percebidos na última década. Nada tenho contra as ações sociais patrocinadas pelo atual e pelos dois últimos governos; quaisquer iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos índices de miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema. Uma política ativa de respeito aos direitos humanos precisa assegurar a laicidade do Estado e a igualdade dos direitos civis; conduzir firmemente o processo de acerto de contas com nossa ditadura civil militar; respeitar e fazer respeitar as diferenças de gênero, étnicas e religiosas, entre outras; afiançar o acesso à saúde; investir na educação pública e de qualidade, em todos os níveis; combater a violência institucional, dentro e fora das penitenciárias; etc.

Mas o que vemos é o contrário disso: enquanto os critérios pelos quais medimos nosso nível de civilização continuam a basear-se quase exclusivamente no acesso ao mercado e na ampliação do consumo, vemos avançar, com a conivência silenciosa do governo, o ódio contra as minorias, gays em especial; a desocupação violenta de comunidades como Pinheirinho; a militarização dos morros cariocas e o assassinato de moradores da periferia; a proliferação da tortura principalmente nas penitenciárias, presídios e delegacias; a construção de Belo Monte e a violência crescente contra as comunidades indígenas; o uso recorrente do poderio militar do Estado contra os movimentos e manifestações sociais, frequentemente criminalizados etc.

E é nesse aspecto que reside a singularidade das manifestações de junho frente à experiência histórica de que é também tributária, o Maio de 68. Vivemos até recentemente um idílio democrático compreensível em função de nosso passado recente. Por outro lado, renunciamos quase inteiramente a um exercício fundamental para a renovação e o aprofundamento democráticos, que é a crítica à própria democracia. Para as gerações formadas sob o jugo da experiência autoritária, criticá-la parecia implicar o risco de retornarmos aquele estado de coisas de que buscamos nos afastar. Mas a crítica à democracia é necessária não apenas porque faz avançar as instituições e a experiência democráticas mas, no caso específico do Brasil, só por ela conseguiremos lidar com e nos livrar dos entulhos autoritários ainda presentes na nossa cultura e instituições políticas.

Nesse sentido, as manifestações de junho revelam uma sensibilidade capaz de captar demandas que, por dispersas que pareçam, são parte da experiência de uma geração felizmente desacostumada à ditadura e, por isso, mais atenta às fragilidades e contradições da democracia, bem como à necessidade de fazê-la avançar, inclusive confrontando e denunciando suas muitas formas de violências físicas e simbólicas. Além disso, trata-se de buscar construir alternativas de participação e ocupação do espaço público que não exclusivamente as institucionais, e de valorizarmos outros critérios de inserção na vida pública além dos índices de consumo.

Por último, mas não menos importante, as manifestações de junho e seus principais protagonistas – tais como o MPL – nos alertaram para o caráter trágico da política. Se as utopias tranquilizam, a tragédia nos obriga a encarar os desafios e os limites, as frustrações e fracassos, mas também as possibilidades de uma política que se faz voltada ao presente e que recusa as promessas messiânicas de um amanhã de redenção e realizações plenas. Não há futuro, apenas um presente que é o mundo que precisamos encarar. Michel Foucault chamou a isso “heterotopia”; o historiador e crítico de arte inglês T. J. Clark cunhou a expressão “política antiutópica”; eu prefiro chamar essa geração que toma de assalto as ruas de “pós-utópica”. Mas talvez o nome não seja o mais importante, e sim certa clareza que me parece atravessar as manifestações de junho e suas muitas narrativas: a de que a política, pelo menos a que se vive cotidianamente nas ruas, é imprevisível e, como tal, não nos é possível saber o que nos espera logo ali. O futuro, afinal, é indisciplinado. 


Contato do autor: clovisgruner@gmail.com

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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