PICICA: "Na história o passado se torna presente porque se repete. É possível
vesti-lo com cores mais acesas. Disfarçá-lo com o progresso. A
construção de casas grandes e sobrados – construídos sem os critérios
que determinam o que é espaço público e o que é espaço privado – foi
feita sem critérios, sem planejamento e sem discussão pública. Não houve
uma discussão sobre as calçadas, sobre a distribuição dos terrenos e
sobre a construção de moradias em conformidade com as demandas sociais.
Pessoas foram expulsas sem saber a razão. A existência de sobrados e das
casas grandes era o sintoma da exclusão e da cidade pouco ecológica
porque era uma cidade para poucos. Uma cidade para os senhores e seus
descendentes. Hoje, vão-se os sobrados erguem-se os prédios. No
entanto, permanece a mentalidade do sobrado: construções que avançam nas
calçadas, nos rios, no espaço público. Construções que não obedecem às
leis ou aos estudos de impacto. Construções que subornam o estado, com o
pagamento, esporádico, de multas, para manterem a cidade vertical.
Estádios construídos sob o escombro dos mocambos. Mocambos que se
dissipam em nome do progresso que não lhes concerne, que não lhes
pertence. Construções que reconhecem nas questões ecológicas um
obstáculo a ser contornado, mas não um problema a ser resolvido."
Nem sobrado, nem prédio
por Érico Andrade, doutor em filosofia pela Sorbonne. Membro dos Direitos Urbanos e da Ameciclo. Professor da UFPE / ericoandrade@gmail.com
Casas
antigas que atravessam a cidade. Modelam o desenho do passado,
rarefeito. Sobrados descoloridos pelo tempo. Muita memória que se apaga
com os traços do progresso. Inexorável, o progresso segue derrubando a
memória dos sobrados, das casas grandes, dos pequenos sítios que
situavam a cidade na rota das grandes famílias. Poucas pessoas para
vários metros quadrados. Famílias que concentravam a cidade nos seus
quintais. Depois dos sobrados, o tempo presente se ramifica em
construções que revertem a falta de distribuição do espaço num modelo
que comporta mais famílias.
Os grandes sobrados e os condomínios de casas, nobres casas, são
dragados por arranha-céus que empatam o vento, a vista, a paisagem,
acima de tudo, o próprio céu. No entanto, diante de uma cidade marcada
ao longo da sua história pela divisão social, materializada na
existência de grandes sobrados, poucos em relação aos mocambos, a
existência de grandes construções poderia ser a redenção em face de um
passado turvo. Em uma palavra: excludente. No lugar onde habitava uma
família, várias famílias moram. No lugar do reino na terra, destinado a
poucas famílias, com sobrenomes bem definidos, temos agora o reino das
torres que embora não alcancem o céu, conseguem encobri-lo. Conseguem
encobrir o mar que, como diz o poeta, é o seu espelho. Devemos saudar as
torres para apagar nosso passado colonial e excludente?
Na história o passado se torna presente porque se repete. É possível
vesti-lo com cores mais acesas. Disfarçá-lo com o progresso. A
construção de casas grandes e sobrados – construídos sem os critérios
que determinam o que é espaço público e o que é espaço privado – foi
feita sem critérios, sem planejamento e sem discussão pública. Não houve
uma discussão sobre as calçadas, sobre a distribuição dos terrenos e
sobre a construção de moradias em conformidade com as demandas sociais.
Pessoas foram expulsas sem saber a razão. A existência de sobrados e das
casas grandes era o sintoma da exclusão e da cidade pouco ecológica
porque era uma cidade para poucos. Uma cidade para os senhores e seus
descendentes. Hoje, vão-se os sobrados erguem-se os prédios. No
entanto, permanece a mentalidade do sobrado: construções que avançam nas
calçadas, nos rios, no espaço público. Construções que não obedecem às
leis ou aos estudos de impacto. Construções que subornam o estado, com o
pagamento, esporádico, de multas, para manterem a cidade vertical.
Estádios construídos sob o escombro dos mocambos. Mocambos que se
dissipam em nome do progresso que não lhes concerne, que não lhes
pertence. Construções que reconhecem nas questões ecológicas um
obstáculo a ser contornado, mas não um problema a ser resolvido.
Fonte: Direitos Urbanos
Nenhum comentário:
Postar um comentário