PICICA: "Talvez
seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no
Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com
essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam
com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto?"
Poética dos protestos entre nacional-popular e tropical-concreto
28/03/2014
Por Everton Moraes
Por Everton Moraes, doutorando em história pela UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“A experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular.”
foto: Projeto HO
–
Toda
uma série de discursos não cessa de falar da novidade indomável e da
enorme dificuldade de explicar as manifestações que tomam de assalto as
ruas do país desde junho de 2013. Não se sabe bem o que querem os
manifestantes, já que as pautas são difusas e mutantes, ora
reivindicando a redução da tarifa e a mudança da lógica da política de
mobilidade urbana, ora com as “famílias” nas ruas gritando contra a
corrupção, passando pela Copa do Mundo (com críticas que vão dos
excessos nos gastos com os estádios até as desapropriações violentas
realizadas em função das obras do evento); também não se sabe quem são
os “verdadeiros” manifestantes, já que nem sempre parece fácil
distinguir entre os violentos, os vândalos, os baderneiros e os
“legítimos” cidadãos protestando “democraticamente”; nem se sabe, enfim,
aonde pode levar a “crise de representação” que eles parecem escancarar
e radicalizar.
Mas
para além dessa leitura em que tudo é novo e ainda inenarrável, me
proponho aqui a analisar como essas movimentações se relacionam com um
certo passado, com certas memórias da resistência no Brasil. Penso
sobretudo, em tradições de resistência que, apesar de possuírem origens
remotas e difíceis de precisar, se consolidam e entram em uma disputa
explícita por espaço na querela entre o “nacional-popular” e o
“tropical-concreto”: de um lado, no caso da primeira, uma rigidez (às
vezes quase militar), uma seriedade, uma confiança inabalável nos
poderes da razão e da consciência, que acreditava que sua missão era
levar a consciência da exploração e das possibilidades de transformação
social para os “trabalhadores” explorados (estes desprovidos dessa
consciência idealizada). Na qual era preciso falar a linguagem do
“povo”, ser didático, dar-lhe a mão e ajudar-lhe a sair da condição de
“subdesenvolvido” que o país lhe impunha. Essa esquerda talvez remonte
aos Centros Populares de Cultura (CPCs), deixando marcas indeléveis em
frações do Partido dos Trabalhadores e colocando o “desenvolvimento”
como condição fundamental para a superação da desigualdade e a
participação política comum.
De outro lado, no tropical-concreto (me refiro às experiências e trocas
de neoconcretos e tropicalistas a partir do final da década de 1960 e
não aos posteriores desdobramentos identitários e mercadológicos que
reivindicaram uma herança associada ao nome ao “tropical”), nomes tão
diferentes entre si quanto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica,
Haroldo de Campos, Torquato Neto e Waly Salomão, entre outros,
apostavam em uma outra forma de resistir: alegre, festiva, não
racionalista, não didática, que preferia antropofagizar o “povo” ao
invés de “ensinar” lições; que se deixava afetar pelas potências
“marginais”, essas que os adeptos do nacional-popular consideravam
subdesenvolvidas e incapazes de transformar a história por si próprias.
Parangolés,
suplementos culturais, festivais de música popular viravam o espaço de
uma relação outra com o “público”, com a “realidade” do país, com a
pobreza, com a alteridade etc. Apostar na alegria, na festa, na
provocação, no desafio escandaloso mais do que no braço em riste, nos
gritos de guerra, no embate armado contra o Estado. Mais do que buscar o
“desenvolvimento” era preciso, segundo eles, criar as condições para o
livre uso do comum, sem o qual qualquer desenvolvimento ficaria restrito
a reiterar as forças dominantes. E era a partir dessa leitura
micropolítica, ou antes, infrapolítica, que se buscava atuar frente a
demandas macropolíticas como luta contra a ditadura ou a disputa entre
“projetos” de Brasil.
Talvez
seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no
Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com
essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam
com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto?
Não,
certamente, para negar a novidade e a irredutibilidade das
manifestações, mas porque talvez, a partir dessa pergunta, se possa
pensar uma poética da resistência, ou antes, em termos de poéticas da
resistência. Entendendo que estas são produzidas historicamente e
orientam posturas e práticas adotadas durante os protestos. Penso que
sua análise é fundamental não apenas para entender o que se passa com as
manifestações, mas também para pensar o que estamos fazendo de nós
mesmos enquanto “manifestantes” ou quais as implicações políticas e
infrapolíticas do modo como nos relacionamos com as multidões que tomam
de assalto as ruas do país.
A resistência nas manifestações se dá na própria prática do manifestar,
isto é, na ocupação da rua, nas relações horizontais com outros
manifestantes, na relação com a cidade, na invenção de novas táticas no
calor do momento; mas também produz demandas frente ao Estado e suas
instituições, como o Movimento Passe Livre (MPL) que, por exemplo, ao
reivindicar a diminuição do preço do transporte urbano, tendo no
horizonte a “tarifa zero”, vai do micropolítico ao macropolítico,
lutando pelo direito comum de acessar a cidade como um instrumento
fundamental para a participação política em sentido amplo. Assim, as
manifestações seriam uma máquina de produzir corpos indóceis.
E
ainda que os militantes do MPL demonstrem uma enorme habilidade de
expor suas pautas, a consciência que está em jogo é muito mais a de se
saber afetado e atravessado pelos diversos microfascismos que afetam o
cotidiano de todos nós, muito mais do que uma consciência idealizada de
um sujeito universal. Em suma, o manifestante é o “qualquer um” afetado
pela gigantesca fábrica de miséria humana que é o capitalismo
contemporâneo.
Apesar
das tentativas de captura à direita e da crença de certas parcelas das
esquerdas partidárias de que era fundamental estabelecer uma “liderança”
e um processo de conscientização das “massas”, das leituras enviesadas e
reducionistas da mídia ou mesmo da violenta repressão policial, as
manifestações são um espaço de experimentação onde as mais
contraditórias forças podem emergir; e é nessa experimentação que surgem
as disputas entre forças estético-políticas.
Cabe então perguntar: que forças estão emergindo? Quais poéticas da resistência estão em jogo nessas manifestações?
O
que, de alguma forma, emerge com as manifestações é a possibilidade de
tecer uma outra relação entre as dimensões social, política, cultural e
estética, isto é, realizar uma intervenção sem que haja a necessidade de
líderes explicando didaticamente como devem agir os manifestantes, mas
uma elevação destes a condição de agentes e não apenas objeto do
discurso político de outrem. Nem mesmo do discurso das mídias oficiais,
que apesar de produzirem narrativas que tentam capturar as múltiplas
formas de resistência em linguagens previamente codificadas, perdem seu
monopólio da “informação” com a emergência de uma miríade de filmagens e
fotografias que produzem narrativas de resistência.
E
ainda que as manifestações tragam signos ambíguos, paradoxais, a
experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do
tropical-concreto do que do nacional-popular (apesar da presença de
signos desta última estejam presentes), com toda a micropolítica
simbolizada pela adoção da figura mitológico-política do “marginal”:
aquele que, por estar à margem, tanto do “sistema” quanto do discurso
das esquerdas tradicionais, opta por não seguir as regras vigentes no
mundo social e político, ignorando a lógica da não-contradição, a
prevalência da consciência, a racionalidade instrumental, o recurso
obrigatório e prioritário as instituições tradicionais da luta política.
As muitas “caras”, as demandas difusas, a ausência de um sujeito
privilegiado, a não necessidade de uma consciência soberana e o
imanentismo das manifestações são um exemplo disso.
Em
suma, a transformação que esse personagem conceitual, o “marginal”,
hoje transfigurado em uma multiplicidade de rostos, propicia, é o
aparecimento de novas formas de resistir: o desejo concreto, não
harmonioso dos oprimidos, ou mesmo seu dissenso, mais do que a bela
consciência idealizada dos “engajados” no progresso da nação; a
antropofagia que hibridiza estéticas distintas, mais do que a coerência e
a linearidade do discurso desenvolvimentista das “esquerdas
tradicionais”, que hoje se encarna o “governo”; a desrazão e o caos como
forma de “desordenar” as formas de pensamento dominante. Como se os
manifestantes estivessem tomados por um devir-marginal.
Mais
do que desejar e lutar por uma nova sociedade, o marginal é aquele que
sabota o funcionamento normal da sociedade atual. E esse caráter de
“sabotagem” e de desorganização é fundamental para entender a poética
das manifestações, isto é, entender que forma imprimem às suas práticas
de protesto. Certamente não se trata mais daquela forma rígida, com uma
ideia fixa de “desenvolvimento” econômico, que privilegiava um sujeito
pseudo-popular como agente e apostava no combate a alienação através de
uma racionalidade progressista. Ao contrário, a poética que parece estar
em jogo é muito mais criativa, mutante, sabotadora, de-formante, muito
mais do que formadora de identidade, capaz de fugir cada vez mais rápido
de um Capital cada vez mais ágil em suas capturas.
Entender
os manifestantes de hoje como reativadores das potências marginais de
outros tempos não é reduzir o presente ao passado, ou hierarquizá-los de
modo a exaurir a potência dos acontecimentos, mas abrir o presente à
múltiplas possibilidades de releitura.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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