março 26, 2014

"A Grande Beleza: O Vazio e a Cosmética do Pós-Moderno", por Hugo Albuquerque e Isabella Eid

PICICA: "A Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência elegante que é, certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco” certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes como Um Castelo na Itália de Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se pertence, a desterritorialização promovida pela globalização arrancou o solo histórico europeu." 

A Grande Beleza: O Vazio e a Cosmética do Pós-Moderno



Por Hugo Albuquerque e Isabella Eid,

Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, o italiano A Grande Beleza de Paolo Sorrentino (2013) é um belo, vibrante e inquietante espetáculo estético que lança questões importantes sobre a pós-modernidade e a Europa atual – além de apresentar algumas respostas que, antes de tudo, merecem ser entendidas. O protagonista, Jap Gambardella (Toni Servillo), é um escritor sexagenário, uma versão dândi do homem (pós-)moderno: um eu central que é fio de ligação para inúmeros retalhos de memórias, circunstâncias e sensações em um mundo no qual o vácuo e o nada se tornam dolorosamente presentes; autor de apenas uma única – e aclamada – obra publicada há décadas, ele está sempre confrontado com o fato de não ter escrito mais nada, enquanto promove festas de arromba, ajuda amigos falidos e trabalha como jornalista cultural.

A Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência elegante que é, certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco” certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes como Um Castelo na Itália de Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se pertence, a desterritorialização promovida pela globalização arrancou o solo histórico europeu.

Mas antes de qualquer julgamento, ou acima de qualquer tentativa de julgar, é preciso entender. E a persona de Jap, desenhada por Sorrentino, ainda que acuse o estado da arte do paradigma [de supremacia] europeu é uma entidade trágica – o que torna a película trágica, mas não pelos motivos que o autor dela talvez desejasse. Não é a tragédia da cultura e da civilização europeia face à invasão dos bárbaros, da passagem do tempo em que a doce foi a vida – quando Jep e uma de suas musas passa do lado da Fontana de Trevi, um marco óbvio de Roma e do cinema italiano – , mas a da própria condição trágica em si de estar nessa situação, precisando apelar, talvez inconscientemente para esse recurso, para essa muleta.

Há, contudo, algo de relevante quando o filme escapa à Europa, e que interessa, quando ele aporta no pós-moderno em si. E aí, ele passa a interessar mais nas linhas do que nas entrelinhas. É a bem desenhada expressão do kitsch pós-moderno, feito de baladas tecno, da miscelânea estética pronta à “surpreender” – tanto que resta absolutamente previsível –, do torpor. E aí poucos filmes foram tão bem-sucedidos na exposição estética dessas formas. É difícil sair do cinema sem a sensação de termos nos dado conta do óbvio; antes de dar a pensar, algo se faz sentir, mas é possível criar experiências que estejam no sensível em um grau maior: e aqui, depois de se deparar com as festas incrivelmente animadas e vazias, da alegria triste do nosso tempo, é impossível não se dar conta de quantas situações parecidas não vemos em qualquer parte: festas de formatura, baladas, carnavais. Pura casca sem conteúdo.

Difícil não lembrar também de uma obra como O Homem sem Conteúdo, de Giorgio Agamben, que já no início dos anos 1970, dissecando “a estética moderna” já antevia o aprofundamento de uma produção artística desprovida de carne, um objeto morto produzido pela subjetividade absolutamente livre de “um artista”. É certo que Agamben talvez entenda a estética com uma cosmética, mas superado esse ponto, é exatamente essa sensação que se tem quando nos deparamos, nessa película, com o vazio aleatório da performance de um artista que, nua, choca sua cabeça contra as paredes de uma ruína.

Enquanto isso, Jap se vê engolfado pela presença de presenças femininas fortes; uma recém-falecida ex-namorada, que sempre o amou -- apesar dele só ter descobrido isso após a morte dela -- torna-se objeto constante de suas lembranças; a filha de um amigo (Sabrina Ferilli) que se dedica a ser stripper de luxo e a quem este lhe confia os “cuidados”; uma velha conhecida de círculo intelectual que lhe desafia por sua inércia artística.

Em duas cenas, temos um complemento interessante: a editora de Jep, uma simpática anã, lhe serve uma sopa quando lhe trata pelo diminutivo; indagada do porquê daquilo, ela responde sobre a importância dos amigos fazerem uns aos outros se sentirem crianças novamente; no outro flanco, quando depois de uma de suas festas, Jep confessa que não escreveu mais nada porque “nem Flaubert foi capaz de escrever sobre o Nada”. O devir-criança e um pessimismo niilista aparecem lado a lado no paradoxo constitutivo de uma Europa, uma Itália e um tempo na encruzilhada.

No fim, aparecem um pomposo cardeal papável e uma centenária missionária considerada “santa”, os quais trazem o filme para a zona das respostas, ou da tentativa de fazê-las; e elas apontam, de um lado, para crítica à decadência da Igreja pelo abandono da espiritualidade em detrimento da glória mundana na figura do cardeal e, por outro lado, para o valor da espiritualidade “verdadeira” na forma de uma volta às “raízes” – que é a única coisa que a velha monja diz comer, justamente por “saber da sua importância”.

Cabe apontar, quanto a esta aura tradicionalista que envolve a zona de respostas do filme, que a estética do homem, enquanto maioria, é vítima do retorno do Mesmo. Explica-se: O ser do homem médio racional, desapegado de qualquer elaboração cultural, ou de qualquer manifestação sensível, equivale ao espírito majoritário que norteia, também, o homem pós-moderno – flashs, luxúria, música alta, luzes, dinheiro, dinheiro!  --, ambos possuem um liame secreto e mais potente do que parece.

Se seguíssemos essa lógica cíclica, não seria impossível antever a sucessão de uma sociedade voltada a preservação da tradição, da família e da religião, a tendência à estrutura simples ou à ilusão da pulsão de morte como resposta ao exaurimento hedonista -- exaurimento este como uma das possibilidades do Moderno.

O filme aponta  para esta reação como uma saída, mas não deixa de mostrar outro aspecto: o retorno da humanidade, da paixão, do sensível. Se analisarmos a escola romântica, verificamos que esta representou uma volta de valores tradicionais e medievalistas -- o herói burguês perfeito, forte, lindo e corajoso e honesto -- mas também, paradoxalmente, da paixão e do singelo. E isso, apesar dos pesares, isso se aplica aqui, ao mesmo tempo em que ele se fecha, também se abre a algo pré-moderno que resiste ao pós-moderno -- e mesmo decidindo pela captura no final, a questão é que aqui é deixado um em-aberto que tem lá sua potência.

No fim, no entanto, não há como sublinhar a conclusão definitiva: em um mundo vazio, nos quais as certezas, incontestavelmente, se chocaram no rochedo, a resposta final seria a religião, a tradição e a privação como âncora necessária – algo capcioso, sobretudo em um momento no qual um Putin reconstrói a Rússia justamente calcado nesses valores, isto é,  se apresentando como condutor de um reduto conservador face a um mundo em caos. Se é isso que nos resta nessa ida para o futuro, o que será de nós? Como ser felizes se a solução ao alcance seria, apenas e tão somente, um refúgio interior e deslocado no passado? 

Fonte: O Descurvo

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