PICICA: "A
Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência
elegante que é,
certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a
decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de
vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da
História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é
certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco”
certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de
turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por
diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É
possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes
como Um Castelo na Itália de
Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se
pertence, a desterritorialização promovida pela globalização
arrancou o solo histórico europeu."
A Grande Beleza: O Vazio e a Cosmética do Pós-Moderno
Por Hugo Albuquerque e Isabella Eid,
Vencedor
do Oscar de melhor filme estrangeiro, o italiano A
Grande Beleza de Paolo Sorrentino (2013) é um belo, vibrante e inquietante
espetáculo estético que lança questões importantes sobre a
pós-modernidade e a Europa atual – além de apresentar algumas
respostas que, antes de tudo, merecem ser entendidas. O protagonista,
Jap Gambardella (Toni Servillo), é um escritor sexagenário, uma
versão dândi do homem (pós-)moderno: um eu central que é fio de ligação
para inúmeros retalhos de memórias, circunstâncias e sensações
em um mundo no qual o vácuo e o nada se tornam dolorosamente
presentes; autor de apenas uma única – e aclamada – obra
publicada há décadas, ele está sempre confrontado com o fato de
não ter escrito mais nada, enquanto promove festas de arromba, ajuda
amigos falidos e trabalha como jornalista cultural.
A
Grande Beleza traz a carga dramática, um ar de decadência
elegante que é,
certamente, uma das formas de se enxergar o momento europeu. É a
decadência vista de dentro, não do continente, mas do ponto de
vista do europeísmo na forma em que ele tomou no “fim da
História”. Se a História acabou e não chegamos à utopia, é
certo que o futuro faliu “conosco” dentro. E o “conosco”
certamente se refere aos europeus, rifados neste mundo cheio de
turistas asiáticos, consumidores árabes muçulmanos e assim por
diante – que aparecem às revoadas em cenas específicas. É
possível sentir um fundo melancólico, comum a outras obras recentes
como Um Castelo na Itália de
Valéria Bruni Tedeschi, também de 2013 – a Europa não mais se
pertence, a desterritorialização promovida pela globalização
arrancou o solo histórico europeu.
Mas
antes de qualquer julgamento, ou acima de qualquer tentativa de
julgar, é preciso entender. E a persona de Jap, desenhada por
Sorrentino, ainda que acuse o estado da arte do paradigma [de
supremacia]
europeu é uma entidade trágica – o que torna a película trágica,
mas não pelos motivos que o autor dela talvez desejasse. Não é a
tragédia da cultura e da civilização europeia face à invasão dos
bárbaros, da passagem do tempo em
que a doce foi a vida
– quando Jep e uma de suas musas passa do lado da Fontana
de Trevi,
um marco óbvio de
Roma e do
cinema italiano – , mas a da própria condição trágica em si
de estar nessa situação, precisando apelar, talvez
inconscientemente para esse recurso, para essa muleta.
Há, contudo, algo de relevante quando o filme escapa à Europa, e que
interessa, quando ele aporta no pós-moderno em si. E aí, ele passa
a interessar mais nas linhas do que nas entrelinhas. É a bem
desenhada expressão do
kitsch
pós-moderno, feito de baladas tecno, da miscelânea estética pronta
à “surpreender” – tanto que resta absolutamente previsível –,
do torpor. E aí poucos filmes foram tão bem-sucedidos na exposição
estética dessas formas. É difícil sair do cinema sem a sensação
de termos nos dado conta do óbvio; antes de dar a pensar, algo se
faz sentir, mas é possível criar experiências que estejam no
sensível em um grau maior: e aqui, depois de se deparar com as
festas incrivelmente animadas e vazias, da alegria triste do nosso
tempo, é impossível não se dar conta de quantas situações
parecidas não vemos em qualquer parte: festas de formatura, baladas,
carnavais. Pura casca sem conteúdo.
Difícil
não lembrar também de uma obra como
O Homem sem Conteúdo,
de Giorgio Agamben, que já no início dos anos 1970, dissecando “a
estética moderna” já antevia o aprofundamento de uma produção
artística desprovida de carne, um objeto morto produzido pela
subjetividade absolutamente livre de “um artista”. É certo que
Agamben talvez entenda a estética com uma cosmética, mas superado
esse ponto, é exatamente essa sensação que se tem quando nos
deparamos, nessa película, com o vazio aleatório da performance de um artista que,
nua, choca sua cabeça contra as paredes de uma ruína.
Enquanto
isso, Jap se vê engolfado pela presença de presenças femininas
fortes; uma recém-falecida ex-namorada, que sempre o amou -- apesar dele só ter descobrido isso após a morte dela -- torna-se
objeto constante de suas lembranças; a filha de um amigo (Sabrina Ferilli) que se
dedica a ser stripper de luxo e a quem este lhe confia os
“cuidados”; uma velha conhecida de círculo intelectual que lhe desafia
por sua inércia artística.
Em
duas
cenas, temos um complemento interessante: a editora de Jep, uma
simpática anã, lhe serve uma sopa quando lhe trata pelo diminutivo;
indagada do porquê daquilo, ela responde sobre a importância dos
amigos fazerem uns aos outros se sentirem crianças novamente; no
outro flanco, quando depois de uma de suas festas, Jep confessa que
não escreveu mais nada porque “nem Flaubert foi capaz de escrever
sobre o Nada”. O devir-criança e um pessimismo niilista aparecem lado a
lado no paradoxo constitutivo de uma Europa, uma Itália e um tempo na
encruzilhada.
No
fim, aparecem um pomposo cardeal papável e uma centenária
missionária considerada “santa”, os quais trazem o filme para a
zona das respostas, ou da tentativa de fazê-las; e elas apontam, de
um lado, para crítica à decadência da Igreja pelo abandono da
espiritualidade em detrimento da glória mundana na figura do cardeal
e, por outro lado, para o valor da espiritualidade “verdadeira”
na forma de uma volta às “raízes” – que é a única coisa
que a velha monja diz comer, justamente por “saber da sua
importância”.
Cabe
apontar,
quanto a esta aura tradicionalista que envolve a zona de
respostas do filme, que a estética do homem, enquanto maioria, é vítima
do retorno do Mesmo. Explica-se: O ser do homem médio racional,
desapegado
de qualquer elaboração cultural, ou de qualquer manifestação
sensível, equivale ao espírito majoritário que norteia, também, o homem
pós-moderno – flashs, luxúria, música alta, luzes, dinheiro,
dinheiro! --, ambos possuem um liame secreto e mais potente do que parece.
Se
seguíssemos essa lógica cíclica, não seria impossível
antever a sucessão de uma sociedade voltada a preservação da
tradição, da família e da religião, a tendência à estrutura simples ou à
ilusão da pulsão de morte como resposta ao exaurimento hedonista --
exaurimento este como uma das possibilidades do Moderno.
O
filme aponta para esta reação como uma saída, mas não deixa de
mostrar outro aspecto: o retorno da humanidade, da paixão, do
sensível. Se analisarmos a escola romântica, verificamos que esta
representou uma volta de valores tradicionais e medievalistas -- o
herói burguês perfeito, forte, lindo e corajoso e honesto -- mas
também, paradoxalmente, da paixão e do singelo. E isso, apesar dos
pesares, isso se aplica aqui, ao mesmo tempo em que ele se fecha, também
se abre a algo pré-moderno que resiste ao pós-moderno -- e mesmo
decidindo pela captura no final, a questão é que aqui é deixado um em-aberto que tem lá sua potência.
No
fim, no entanto, não há como sublinhar a conclusão definitiva: em um
mundo vazio, nos quais as certezas, incontestavelmente, se chocaram no
rochedo, a resposta final seria a religião, a tradição e a
privação como âncora necessária – algo capcioso, sobretudo em
um momento no qual um Putin reconstrói a Rússia justamente calcado
nesses valores, isto é, se
apresentando como condutor de um reduto conservador face a um mundo em caos.
Se é isso que nos resta nessa ida para o futuro, o que será de nós?
Como ser felizes se a solução ao alcance seria, apenas e tão somente, um refúgio interior e
deslocado no passado?
Fonte: O Descurvo
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