janeiro 10, 2015

"Foucault: administrando o sexo", por Rafael Trindade

PICICA: "Fomos levados a pensar que através do sexo encontraríamos a liberdade, mas caímos em um jogo ardiloso. Quanto mais falamos (ou gritamos) sobre nossa sexualidade, quanto mais nos mostramos, mais nos embrenhamos nas malhas estendidas pelo saber-poder. Nosso sexo fala de si. O foco de luz colocado em cima dele o imobiliza, as teias de aranha se estendem, o poder se disfarça para melhor vê-lo, cheirá-lo, ouvi-lo e depois comê-lo, até que não sobre nada.

Sexo se tornou nossa identidade, mas por que? O que motiva essa obsessão ocidental pelo sexo? Entender o que causa esta fixação nos faz passar longe da questão jurídica ou de poder como algo centralizado. O discurso sexual é algo que atravessa nossa sociedade horizontalmente. As relações de saber-poder se dão de forma descentralizada. Estendem seus tentáculos em numerosas direções, interligando-os e fazendo-os interagir. A sexualidade é algo onde se pode e deve intervir."

Foucault: administrando o sexo

Eikon Hesoe
Eikon Hosoe

Fomos levados a pensar que através do sexo encontraríamos a liberdade, mas caímos em um jogo ardiloso. Quanto mais falamos (ou gritamos) sobre nossa sexualidade, quanto mais nos mostramos, mais nos embrenhamos nas malhas estendidas pelo saber-poder. Nosso sexo fala de si. O foco de luz colocado em cima dele o imobiliza, as teias de aranha se estendem, o poder se disfarça para melhor vê-lo, cheirá-lo, ouvi-lo e depois comê-lo, até que não sobre nada.

Sexo se tornou nossa identidade, mas por que? O que motiva essa obsessão ocidental pelo sexo? Entender o que causa esta fixação nos faz passar longe da questão jurídica ou de poder como algo centralizado. O discurso sexual é algo que atravessa nossa sociedade horizontalmente. As relações de saber-poder se dão de forma descentralizada. Estendem seus tentáculos em numerosas direções, interligando-os e fazendo-os interagir. A sexualidade é algo onde se pode e deve intervir.

Com o advento da modernidade, novos modos de vida se moldaram. Esta nova economia exigiu novos modos de produção, a nova rotina por sua vez, deu lugar a novos seres humanos. Se antes o poder do rei era organizado de forma a “fazer morrer ou deixar viver”, o novo mundo, sem rei, estava se auto-estruturando em torno de “fazer viver ou deixar morrer”. A população se tornou algo administrável, um problema a ser gerido para sua máxima efetividade.

A psicologia, a geografia, a medicina, economia e outros ramos do saber se desenvolveram para estudar e administrar a população. Contágio das doenças, prostituição, distribuição geográfica, família nuclear, se tornaram problemas desta nova época. Dentro destas novas disciplinas, apareceram novos personagens a serem avaliados e condicionados. A criança ganhou teorias que versavam sobre sua natureza sexual, muito importante e alvo de cuidados especiais. A mulher ganhou seu status de mãe, figura importante, essencial para o desenvolvimento da criança. Sua natureza neurótica, altamente sedutora e sexual, também foi exaltada como merecedora de atenção. As preocupações com o crescimento populacional também surgiram nesta época, bem como as etiologias dos chamados adultos perversos, por sua desestruturação das famílias tradicionais.
“Um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de por a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar […] uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” – Foucault, História da Sexualidade I
A centralização dos dispositivos de sexualidade nos leva a crer em um pansexualismo. Já dissemos anteriormente que o sexo não traz a essência da pessoa (veja aqui), não somos puritanos, mas o sexo não é o motor da humanidade, a pulsão não é nosso combustível. Isso decorre de uma saturação dos dispositivos de sexualidade. A família nuclear burguesa foi seu principal alvo. Com o discurso de evitar a degeneração das futuras gerações, a estrutura edípica desenvolveu-se. A saúde mental e física dos pais refletia a saúde e desenvolvimento apropriado da criança. O pecado foi trocado pela patologia, o sangue azul dos nobres deu lugar aos discursos sexuais burgueses.

É neste contexto que a psicanálise se desenvolve. Centralizando o impulso sexual e codificando os discursos em torno de papai-mamãe-filhinho. Refinamento da confissão em sua melhor forma, um tipo de “pague-para-contar-sobre-sua-miséria-sexual”. A psicanálise não descobriu os segredos do inconsciente, ela sistematizou o inconsciente que era produzido na superfície da época,  um significante tirânico organizando o desenvolvimento. Exatamente quando a questão do incesto também passou a ser uma questão de saúde pública.
“A noção de ‘sexo’ permitiu agrupar, de acordo com uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal, sentido onipresente segredo a descobrir a toda parte: o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e como significado universal” – Foucault, História da Sexualidade I
Novos modos de vida exigem novos modos de produção e vice-versa. Corpos disciplinados para o trabalho braçal, caso contrário, polícia e cadeia. Para os abastados, psicanálise ou prozac. O efeito é o mesmo, aliviar tensão, manter o controle, gerir pessoas. Uma máquina de produzir indivíduos dóceis, disciplinados e úteis foi posta em prática. Além de um discurso de regulação, que abrangia, claro, todo desenvolvimento psico-sexual para satisfazer uma economia e produção. Produzir, vender, incitar o desejo, conhecer e produzir conhecimentos para então novamente produzir e vender.
“O problema está em apreender quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela maneira acarretam efeitos de miséria” – Foucault, Micro-física do poder
Qual revista feminina hoje não fala de gozar mais? O poder tira com uma mão para dar com a outra. Somos tragados pelo jogo dos prazeres, mas só caímos em seus joguinhos depois de acreditar em nossa mais profunda miséria sexual. Os comerciais de TV, as brincadeiras e sorrisinhos, as músicas, as dançarinas dos programas de domingo. Tudo cria uma sexualidade, cria corpos, produz subjetividades. O marido no divã reclamando de sua vida sexual, a mulher histérica porque não consegue trabalhar e também cuidar do filho. A mão que acaricia é a mesma que esbofeteia. Nesse jogo de consumo de imagens, nunca alcançamos nosso objetivo.

Os dispositivos de sexualidade produzem corpos, prescrevem dietas, dão diretrizes. Este mundo novo, novas instituições e novos disposições exigem corpos novos, que se comportem de maneira determinada. A tensão é elevada ao máximo, a saturação é constante, o movimento é contínuo, mas as possibilidades são reguladas e limitadas, tendo a repressão apenas como última cartada. Através destes dispositivos pode-se gerir a vida. Tudo que você disser pode e será usado contra você: “diga-me quem tu és, ou melhor, eu te direi quem tu és, repita depois de mim…”.

Sabemos que é impossível escapar das relações de poder, elas nos cercam por todos os lados. Mas é possível encontrar brechas, a liberdade está no pontos de resistência, nos pontos escuros onde o poder afrouxa suas imposições. Ser autônomo é estar sob suas próprias regras, é estabelecer relações de emancipação, particular ou coletiva. É possível ir para além dos dispositivos de sexualidade.
“Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” – Foucault, História da Sexualidade
O verdadeiro sexo, o sexo imposto, é aquele que se torna ao mesmo tempo, através dos discursos de saber-poder, previsível e condicionável. Homem joga bola e usa azul, quer sexo o tempo todo. Mulher vai ao cabeleireiro e usa rosa, é recatada. Todo discurso impõe comportamentos regulados socialmente. A implicação econômica é de máxima efetividade. A sexualidade, gênero, preferências, vontades, desejos, tudo isso não é causal, é causado.

Não reduzir-se ao sexo implica não centralizar seu modo de vida em torno de um único fator. A sexualidade, ampliada e supervalorizada é imposta como único modo de existência através de inúmeros dispositivos sexuais que a normatizam. Ampliar o discurso da sexualidade tornou-se uma forma tirânica de regular as subjetividades e por sua vez os encontros possíveis entre as pessoas. Ir para além destes dispositivos de saber-poder é encontrar novos modos de se posicionar no mundo, um devir-criativo mais preocupado com a ampliação dos próprios potenciais do que com a busca pela sua verdadeira identidade sexual. A verdadeira liberação sexual, se é que ainda podemos usar este termo, não se dá seguindo pela avenida construída pelo saber-poder, onde os discursos e as práticas seguem todos à mesma velocidade e sentido, ela se dá na verdade através das trilhas paralelas, que são confusas e pouco trilhadas, mas certamente muito mais singulares.

"Sex Silicone Dolls"
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Fonte: Razão Inadequada

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