PICICA: "Fomos levados a pensar que através do
sexo encontraríamos a liberdade, mas caímos em um jogo ardiloso. Quanto
mais falamos (ou gritamos) sobre nossa sexualidade, quanto mais nos
mostramos, mais nos embrenhamos nas malhas estendidas pelo saber-poder.
Nosso sexo fala de si. O foco de luz colocado em cima dele o imobiliza,
as teias de aranha se estendem, o poder se disfarça para melhor vê-lo,
cheirá-lo, ouvi-lo e depois comê-lo, até que não sobre nada.
Sexo se tornou nossa identidade, mas por
que? O que motiva essa obsessão ocidental pelo sexo? Entender o que
causa esta fixação nos faz passar longe da questão jurídica ou de poder
como algo centralizado. O discurso sexual é algo que atravessa nossa
sociedade horizontalmente. As relações de saber-poder se dão de forma
descentralizada. Estendem seus tentáculos em numerosas direções,
interligando-os e fazendo-os interagir. A sexualidade é algo onde se
pode e deve intervir."
Foucault: administrando o sexo
Fomos levados a pensar que através do
sexo encontraríamos a liberdade, mas caímos em um jogo ardiloso. Quanto
mais falamos (ou gritamos) sobre nossa sexualidade, quanto mais nos
mostramos, mais nos embrenhamos nas malhas estendidas pelo saber-poder.
Nosso sexo fala de si. O foco de luz colocado em cima dele o imobiliza,
as teias de aranha se estendem, o poder se disfarça para melhor vê-lo,
cheirá-lo, ouvi-lo e depois comê-lo, até que não sobre nada.
Sexo se tornou nossa identidade, mas por
que? O que motiva essa obsessão ocidental pelo sexo? Entender o que
causa esta fixação nos faz passar longe da questão jurídica ou de poder
como algo centralizado. O discurso sexual é algo que atravessa nossa
sociedade horizontalmente. As relações de saber-poder se dão de forma
descentralizada. Estendem seus tentáculos em numerosas direções,
interligando-os e fazendo-os interagir. A sexualidade é algo onde se
pode e deve intervir.
Com o advento da modernidade, novos modos
de vida se moldaram. Esta nova economia exigiu novos modos de produção,
a nova rotina por sua vez, deu lugar a novos seres humanos. Se antes o
poder do rei era organizado de forma a “fazer morrer ou deixar viver”, o
novo mundo, sem rei, estava se auto-estruturando em torno de “fazer
viver ou deixar morrer”. A população se tornou algo administrável, um
problema a ser gerido para sua máxima efetividade.
A psicologia, a geografia, a medicina,
economia e outros ramos do saber se desenvolveram para estudar e
administrar a população. Contágio das doenças, prostituição,
distribuição geográfica, família nuclear, se tornaram problemas desta
nova época. Dentro destas novas disciplinas, apareceram novos
personagens a serem avaliados e condicionados. A criança ganhou
teorias que versavam sobre sua natureza sexual, muito importante e alvo
de cuidados especiais. A mulher ganhou seu status de mãe, figura
importante, essencial para o desenvolvimento da criança. Sua natureza
neurótica, altamente sedutora e sexual, também foi exaltada como
merecedora de atenção. As preocupações com o crescimento populacional
também surgiram nesta época, bem como as etiologias dos chamados adultos
perversos, por sua desestruturação das famílias tradicionais.
“Um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de por a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar […] uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” – Foucault, História da Sexualidade I
A centralização dos dispositivos de
sexualidade nos leva a crer em um pansexualismo. Já dissemos
anteriormente que o sexo não traz a essência da pessoa (veja aqui),
não somos puritanos, mas o sexo não é o motor da humanidade, a pulsão
não é nosso combustível. Isso decorre de uma saturação dos dispositivos
de sexualidade. A família nuclear burguesa foi seu principal alvo. Com o
discurso de evitar a degeneração das futuras gerações, a estrutura
edípica desenvolveu-se. A saúde mental e física dos pais refletia a
saúde e desenvolvimento apropriado da criança. O pecado foi trocado pela
patologia, o sangue azul dos nobres deu lugar aos discursos sexuais
burgueses.
É neste contexto que a psicanálise se
desenvolve. Centralizando o impulso sexual e codificando os discursos em
torno de papai-mamãe-filhinho. Refinamento da confissão em sua melhor
forma, um tipo de “pague-para-contar-sobre-sua-miséria-sexual”. A
psicanálise não descobriu os segredos do inconsciente, ela sistematizou o
inconsciente que era produzido na superfície da época, um significante
tirânico organizando o desenvolvimento. Exatamente quando a questão do
incesto também passou a ser uma questão de saúde pública.
“A noção de ‘sexo’ permitiu agrupar, de acordo com uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal, sentido onipresente segredo a descobrir a toda parte: o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e como significado universal” – Foucault, História da Sexualidade I
Novos modos de vida exigem novos modos de
produção e vice-versa. Corpos disciplinados para o trabalho braçal,
caso contrário, polícia e cadeia. Para os abastados, psicanálise ou prozac.
O efeito é o mesmo, aliviar tensão, manter o controle, gerir pessoas.
Uma máquina de produzir indivíduos dóceis, disciplinados e úteis foi
posta em prática. Além de um discurso de regulação, que abrangia, claro,
todo desenvolvimento psico-sexual para satisfazer uma economia e
produção. Produzir, vender, incitar o desejo, conhecer e produzir
conhecimentos para então novamente produzir e vender.
“O problema está em apreender quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela maneira acarretam efeitos de miséria” – Foucault, Micro-física do poder
Qual revista feminina hoje não fala de
gozar mais? O poder tira com uma mão para dar com a outra. Somos
tragados pelo jogo dos prazeres, mas só caímos em seus joguinhos depois
de acreditar em nossa mais profunda miséria sexual. Os comerciais de TV,
as brincadeiras e sorrisinhos, as músicas, as dançarinas dos programas
de domingo. Tudo cria uma sexualidade, cria corpos,
produz subjetividades. O marido no divã reclamando de sua vida sexual, a
mulher histérica porque não consegue trabalhar e também cuidar do
filho. A mão que acaricia é a mesma que esbofeteia. Nesse jogo de
consumo de imagens, nunca alcançamos nosso objetivo.
Os dispositivos de sexualidade produzem
corpos, prescrevem dietas, dão diretrizes. Este mundo novo, novas
instituições e novos disposições exigem corpos novos, que se comportem
de maneira determinada. A tensão é elevada ao máximo, a saturação é
constante, o movimento é contínuo, mas as possibilidades são reguladas e
limitadas, tendo a repressão apenas como última cartada. Através destes
dispositivos pode-se gerir a vida. Tudo que você disser pode e será
usado contra você: “diga-me quem tu és, ou melhor, eu te direi quem tu
és, repita depois de mim…”.
Sabemos que é impossível escapar das relações de poder, elas nos cercam por todos
os lados. Mas é possível encontrar brechas, a liberdade está no
pontos de resistência, nos pontos escuros onde o poder afrouxa suas
imposições. Ser autônomo é estar sob suas próprias regras, é
estabelecer relações de emancipação, particular ou coletiva. É possível
ir para além dos dispositivos de sexualidade.
“Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” – Foucault, História da Sexualidade
O verdadeiro sexo, o sexo imposto, é
aquele que se torna ao mesmo tempo, através dos discursos de
saber-poder, previsível e condicionável. Homem joga bola e usa azul,
quer sexo o tempo todo. Mulher vai ao cabeleireiro e usa rosa, é
recatada. Todo discurso impõe comportamentos regulados socialmente. A
implicação econômica é de máxima efetividade. A sexualidade, gênero,
preferências, vontades, desejos, tudo isso não é causal, é causado.
Não reduzir-se ao sexo implica não
centralizar seu modo de vida em torno de um único fator. A sexualidade,
ampliada e supervalorizada é imposta como único modo de existência
através de inúmeros dispositivos sexuais que a normatizam. Ampliar o
discurso da sexualidade tornou-se uma forma tirânica de regular as
subjetividades e por sua vez os encontros possíveis entre as pessoas. Ir
para além destes dispositivos de saber-poder é encontrar novos modos de
se posicionar no mundo, um devir-criativo mais preocupado com a
ampliação dos próprios potenciais do que com a busca pela sua
verdadeira identidade sexual. A verdadeira liberação sexual, se é que
ainda podemos usar este termo, não se dá seguindo pela avenida
construída pelo saber-poder, onde os discursos e as práticas seguem
todos à mesma velocidade e sentido, ela se dá na verdade através das
trilhas paralelas, que são confusas e pouco trilhadas, mas certamente
muito mais singulares.
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